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O século atormentado
Uma radiografia da resistência à globalização
RICARDO ANTUNES
Resistências Mundiais -
De Seattle a Porto Alegre
Organização: José Seoane e Emilio Taddei
Vozes (Tel. 0/xx/21/2568-9900)
293 págs., R$ 29,00
Durante a década de 80, em pleno deslanche do neoliberalismo, Margaret
Thatcher lançou sua máxima "There is
no alternative", no que foi secundada, entre outros, pelo russo Mikhail Gorbachov. O ideário e a pragmática neoliberais viviam seu clímax. Uma parte do
mundo acreditou na idéia de que, afinal,
a história se completava.
Menos de duas décadas depois, o mundo está de pernas para o ar. Desde 11 de
setembro presenciamos uma guerra movida por uma desrazão instrumental imperial, desmesurada e descontrolada.
Mas há um outro mundo sendo desenhado, desde Chiapas, Seattle, passando por
Nice, Praga, Gênova, pelas duas realizações do Fórum Social e pela rebelião da
plebe na Argentina.
O livro "Resistências Mundiais" é um
esforço para auxiliar na compreensão
dos agentes que corporificam as lutas recentes. Trazendo gama variada de artigos
e autores, o livro está dividido em duas
partes: a primeira, voltada para uma reflexão acerca da mundialização do capital, do poder mundial hoje, do papel das
transnacionais, do Estado e dos organismos financeiros internacionais, como
FMI, Banco Mundial, OMC etc. A segunda oferece uma genealogia das novas lutas sociais globais: a rebelião de Chiapas,
a batalha de Seattle e seus antecedentes
nos EUA, a conflagração em Praga, a
Marcha Mundial das Mulheres, o Fórum
Social Mundial etc.
O livro se inicia com o artigo de Samir
Amin que tematiza a questão da mundialização. Contra a vulgarização do conceito, que "serve para sugerir que se trata de
uma tendência incontornável, independente da natureza dos sistemas sociais",
Amin mostra a conformação ideológica
que frequentemente vem associada ao
seu uso. Sua idéia central é a de que a
mundialização não é um fenômeno novo
e que na era moderna se desenvolveu a
partir do mercantilismo, assumindo
mais recentemente a forma imperialista.
Aqui reside um dos traços distintivos
do texto: a mundialização contemporânea está intrinsecamente associada ao
imperialismo, não sendo, portanto, seu
sucedâneo. Sua caracterização é dada pelos "cinco monopólios que modelam a
mundialização": o controle das novas
tecnologias; dos fluxos financeiros; dos
recursos naturais; dos meios de comunicação e da produção bélica. Como são esses controles que definem as formas contemporâneas da lei do valor, eles acabam
dando fundamento a uma nova divisão
internacional do trabalho completamente desigual, cujos centros seriam, segundo Amin, os EUA, seguidos de Grã-Bretanha e Alemanha.
Como alternativa propõe a recuperação do "conceito progressista de nação e
nacionalismo, distante de todas as formulações obscurantistas, etnicistas, religiosas, fundamentalistas e chauvinistas".
Muitos poderão indagar: recuperar o
conceito de nacionalismo já não é uma
discussão superada?
Leviatãs modernos
Atilo Boron faz uma radiografia da estrutura de poder internacional, defendendo a tese de que nem estamos numa
era marcada pela interdependência de
Estados nacionais nem presenciando
uma fase anárquica e caótica sem centros
e comandos. Segundo o autor, a "estrutura de poder internacional apresenta em
sua cúpula umas 200 megacorporações",
verdadeiros "leviatãs modernos do mercado (que) têm um poderio econômico
equivalente ao de 182 países". E adicionando polêmica em seu quadro analítico,
acrescenta que estamos diante de um
mundo imperial, com muitos traços novos, mas que não se confunde com ausência de responsáveis.
Ellen M. Wood aparece com artigo no
qual problematiza as teses que entendem
que o fenômeno da globalização estaria
inviabilizando o Estado-nação. Segundo
ela, paralelamente à retração de várias
atividades estatais, outras novas atribuições estão sendo criadas, pois "no mercado global o capital precisa do Estado. Necessita dele para manter as condições de
acumulação e competitividade. Precisa
do Estado para preservar a disciplina trabalhista e a ordem social diante da austeridade e da "flexibilidade" e para acrescentar a mobilidade ao capital, ao mesmo
tempo em que bloqueia a mobilidade dos
trabalhadores". Wood concebe o binômio Estado-nação como o principal
agente da globalização. Sendo o canal privilegiado por onde o capital se move na
economia globalizada, o Estado ainda é o
centro das lutas contra o capital.
François Houtart e Emir Sader completam essa parte do livro. Houtart examina
alguns elementos transnacionais das lutas sociais e suas dificuldades e fragmentações; Sader contesta a visão de fundo liberal que calibra a ação política de modo
bipolar, contrapondo Estado e sociedade
civil.
Na segunda parte, apresenta-se uma radiografia dos novos movimentos sociais,
com sua conformação heterogênea e polimorfa. Seoane e Taddei oferecem uma
genealogia desses movimentos. Afirmam
que a batalha de Seattle foi "a mais importante manifestação que conheceu a
sociedade norte-americana" desde a
Guerra do Vietnã. Acrescentam que essa
ação "cristalizou a convergência", mesmo comportando matizes e diferenças,
entre o movimento operário norte-americano e os "movimentos ecologistas,
camponeses, de defesa dos consumidores, estudantis, de mulheres, contra a dívida do Terceiro Mundo". Mostram que
os movimentos antiglobalização transcendem em muito o sindicalismo acomodado e tradicional do Norte, obrigando-o a retomar ações de maior envergadura e com certa dosagem crítica.
Ana Cecenã discorre sobre Chiapas.
Marcado para nascer no dia da (des)integração do México ao NAFTA, em 1º/1/
1994, o zapatismo singulariza-se por ser
um movimento armado que não se referencia no Estado, mas na sociedade. Segundo a autora, a sua linguagem é metafórica; sua condição, indígena; sua convicção, democrática e seu ser, coletivo. O
zapatismo ancora-se no sul agrário, procura falar para os precarizados de todo o
México e olha para o mundo. Rebelou-se
usando várias armas, no apogeu do culto
das utopias desarmadas.
Alexander Cockburn e Jeffrey Clair
agregam mais elementos para a compreensão de Seattle, suas causas e desdobramentos. Recordam a campanha "Fix
It or Nix It" contra a OMC ou ainda a
Aliança por Empregos Sustentáveis e o
Meio Ambiente, organizada pela Earth
First junto com os operários siderúrgicos
aglutinados em torno da United Steelworkers of America. Lembram, com
O'Connor, que o "esforço internacionalista em redistribuir a riqueza do capital
para os trabalhadores é um "momento
vermelho" da prática internacionalista; o
"momento verde" internacionalista é o esforço para subordinar o valor de troca ao
valor de uso".
Walden Bello explora os descaminhos
da globalização recente (os colapsos financeiros e o fracasso do reajuste estrutural), lançando uma sugestiva hipótese:
se a Primavera de Praga, em 1968, pressagiou o fim do mundo soviético, será que a
confrontação de 2000 em Praga, juntamente com Seattle, não é um presságio
do "início do fim da globalização controlada pelas corporações"?
Dianne Matte e Lorraine Guay evocam
a Marcha Mundial das Mulheres, com
seu sensível e belo slogan "pão e rosas",
em outubro de 2000 nos EUA, desenhando os caminhos e atalhos da luta contra a
dupla exploração a que se encontram
submetidas as mulheres, tanto no plano
produtivo quanto reprodutivo. Indicam
as formas da interfecundação opressiva
existentes entre capitalismo e patriarcalismo e mostram que, na contextualidade
da desigual divisão internacional do trabalho, se intensificam as clivagens dadas
pela divisão sexual do trabalho.
O livro ainda traz uma cronologia recente do protesto internacional. Temos,
portanto, um bom começo para tentar
compreender a nova morfologia dos movimentos sociais, seus significados e desafios, neste atormentado século 21 que
acaba de começar. E que ninguém tem a
menor idéia de como vai terminar.
Ricardo Antunes é professor de sociologia na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
autor de, entre outros livros, "Addio al Lavoro?"
(Biblioteca Franco Serantini) e "Os Sentidos do Trabalho" (Boitempo).
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