São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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O século atormentado

Uma radiografia da resistência à globalização

RICARDO ANTUNES

Resistências Mundiais - De Seattle a Porto Alegre
Organização: José Seoane e Emilio Taddei Vozes (Tel. 0/xx/21/2568-9900) 293 págs., R$ 29,00

Durante a década de 80, em pleno deslanche do neoliberalismo, Margaret Thatcher lançou sua máxima "There is no alternative", no que foi secundada, entre outros, pelo russo Mikhail Gorbachov. O ideário e a pragmática neoliberais viviam seu clímax. Uma parte do mundo acreditou na idéia de que, afinal, a história se completava.
Menos de duas décadas depois, o mundo está de pernas para o ar. Desde 11 de setembro presenciamos uma guerra movida por uma desrazão instrumental imperial, desmesurada e descontrolada. Mas há um outro mundo sendo desenhado, desde Chiapas, Seattle, passando por Nice, Praga, Gênova, pelas duas realizações do Fórum Social e pela rebelião da plebe na Argentina.
O livro "Resistências Mundiais" é um esforço para auxiliar na compreensão dos agentes que corporificam as lutas recentes. Trazendo gama variada de artigos e autores, o livro está dividido em duas partes: a primeira, voltada para uma reflexão acerca da mundialização do capital, do poder mundial hoje, do papel das transnacionais, do Estado e dos organismos financeiros internacionais, como FMI, Banco Mundial, OMC etc. A segunda oferece uma genealogia das novas lutas sociais globais: a rebelião de Chiapas, a batalha de Seattle e seus antecedentes nos EUA, a conflagração em Praga, a Marcha Mundial das Mulheres, o Fórum Social Mundial etc.
O livro se inicia com o artigo de Samir Amin que tematiza a questão da mundialização. Contra a vulgarização do conceito, que "serve para sugerir que se trata de uma tendência incontornável, independente da natureza dos sistemas sociais", Amin mostra a conformação ideológica que frequentemente vem associada ao seu uso. Sua idéia central é a de que a mundialização não é um fenômeno novo e que na era moderna se desenvolveu a partir do mercantilismo, assumindo mais recentemente a forma imperialista.
Aqui reside um dos traços distintivos do texto: a mundialização contemporânea está intrinsecamente associada ao imperialismo, não sendo, portanto, seu sucedâneo. Sua caracterização é dada pelos "cinco monopólios que modelam a mundialização": o controle das novas tecnologias; dos fluxos financeiros; dos recursos naturais; dos meios de comunicação e da produção bélica. Como são esses controles que definem as formas contemporâneas da lei do valor, eles acabam dando fundamento a uma nova divisão internacional do trabalho completamente desigual, cujos centros seriam, segundo Amin, os EUA, seguidos de Grã-Bretanha e Alemanha.
Como alternativa propõe a recuperação do "conceito progressista de nação e nacionalismo, distante de todas as formulações obscurantistas, etnicistas, religiosas, fundamentalistas e chauvinistas". Muitos poderão indagar: recuperar o conceito de nacionalismo já não é uma discussão superada?

Leviatãs modernos
Atilo Boron faz uma radiografia da estrutura de poder internacional, defendendo a tese de que nem estamos numa era marcada pela interdependência de Estados nacionais nem presenciando uma fase anárquica e caótica sem centros e comandos. Segundo o autor, a "estrutura de poder internacional apresenta em sua cúpula umas 200 megacorporações", verdadeiros "leviatãs modernos do mercado (que) têm um poderio econômico equivalente ao de 182 países". E adicionando polêmica em seu quadro analítico, acrescenta que estamos diante de um mundo imperial, com muitos traços novos, mas que não se confunde com ausência de responsáveis.
Ellen M. Wood aparece com artigo no qual problematiza as teses que entendem que o fenômeno da globalização estaria inviabilizando o Estado-nação. Segundo ela, paralelamente à retração de várias atividades estatais, outras novas atribuições estão sendo criadas, pois "no mercado global o capital precisa do Estado. Necessita dele para manter as condições de acumulação e competitividade. Precisa do Estado para preservar a disciplina trabalhista e a ordem social diante da austeridade e da "flexibilidade" e para acrescentar a mobilidade ao capital, ao mesmo tempo em que bloqueia a mobilidade dos trabalhadores". Wood concebe o binômio Estado-nação como o principal agente da globalização. Sendo o canal privilegiado por onde o capital se move na economia globalizada, o Estado ainda é o centro das lutas contra o capital.
François Houtart e Emir Sader completam essa parte do livro. Houtart examina alguns elementos transnacionais das lutas sociais e suas dificuldades e fragmentações; Sader contesta a visão de fundo liberal que calibra a ação política de modo bipolar, contrapondo Estado e sociedade civil.
Na segunda parte, apresenta-se uma radiografia dos novos movimentos sociais, com sua conformação heterogênea e polimorfa. Seoane e Taddei oferecem uma genealogia desses movimentos. Afirmam que a batalha de Seattle foi "a mais importante manifestação que conheceu a sociedade norte-americana" desde a Guerra do Vietnã. Acrescentam que essa ação "cristalizou a convergência", mesmo comportando matizes e diferenças, entre o movimento operário norte-americano e os "movimentos ecologistas, camponeses, de defesa dos consumidores, estudantis, de mulheres, contra a dívida do Terceiro Mundo". Mostram que os movimentos antiglobalização transcendem em muito o sindicalismo acomodado e tradicional do Norte, obrigando-o a retomar ações de maior envergadura e com certa dosagem crítica.
Ana Cecenã discorre sobre Chiapas. Marcado para nascer no dia da (des)integração do México ao NAFTA, em 1º/1/ 1994, o zapatismo singulariza-se por ser um movimento armado que não se referencia no Estado, mas na sociedade. Segundo a autora, a sua linguagem é metafórica; sua condição, indígena; sua convicção, democrática e seu ser, coletivo. O zapatismo ancora-se no sul agrário, procura falar para os precarizados de todo o México e olha para o mundo. Rebelou-se usando várias armas, no apogeu do culto das utopias desarmadas.
Alexander Cockburn e Jeffrey Clair agregam mais elementos para a compreensão de Seattle, suas causas e desdobramentos. Recordam a campanha "Fix It or Nix It" contra a OMC ou ainda a Aliança por Empregos Sustentáveis e o Meio Ambiente, organizada pela Earth First junto com os operários siderúrgicos aglutinados em torno da United Steelworkers of America. Lembram, com O'Connor, que o "esforço internacionalista em redistribuir a riqueza do capital para os trabalhadores é um "momento vermelho" da prática internacionalista; o "momento verde" internacionalista é o esforço para subordinar o valor de troca ao valor de uso".
Walden Bello explora os descaminhos da globalização recente (os colapsos financeiros e o fracasso do reajuste estrutural), lançando uma sugestiva hipótese: se a Primavera de Praga, em 1968, pressagiou o fim do mundo soviético, será que a confrontação de 2000 em Praga, juntamente com Seattle, não é um presságio do "início do fim da globalização controlada pelas corporações"?
Dianne Matte e Lorraine Guay evocam a Marcha Mundial das Mulheres, com seu sensível e belo slogan "pão e rosas", em outubro de 2000 nos EUA, desenhando os caminhos e atalhos da luta contra a dupla exploração a que se encontram submetidas as mulheres, tanto no plano produtivo quanto reprodutivo. Indicam as formas da interfecundação opressiva existentes entre capitalismo e patriarcalismo e mostram que, na contextualidade da desigual divisão internacional do trabalho, se intensificam as clivagens dadas pela divisão sexual do trabalho.
O livro ainda traz uma cronologia recente do protesto internacional. Temos, portanto, um bom começo para tentar compreender a nova morfologia dos movimentos sociais, seus significados e desafios, neste atormentado século 21 que acaba de começar. E que ninguém tem a menor idéia de como vai terminar.


Ricardo Antunes é professor de sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de, entre outros livros, "Addio al Lavoro?" (Biblioteca Franco Serantini) e "Os Sentidos do Trabalho" (Boitempo).



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