São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tom e a onda

Uma celebração da bossa nova

ELIETE NEGREIROS

A Onda Que Se Ergueu no Mar - Novos Mergulhos na Bossa Nova
Ruy Castro
Companhia das Letras (Tel. 0/ xx/11/3167-0801)
304 págs., R$ 31,50

Vou te contar: o título do livro de Ruy Castro é um verso de "Wave" (1967), belíssima canção do Tom Jobim e nome também do disco de Tom que tem "Triste", "Diálogo", "Lamento", arranjos de Claus Ogerman e Ron Carter no baixo. Quer mais? Essa gravação é instrumental; com letra, "Wave" teve sua versão impecável, delicada e definitiva com João Gilberto, no LP "Amoroso" (1976), um dos discos mais lindos que já ouvi e continuo ouvindo em minha vida. Tom e a onda. Tom é a onda: onda que se ergue no mar e que vira mar, já que as ondas vão e vêm e o mar permanece o mesmo e essa onda ficou e virou mar, água brilhante, salgada, princípio de vida, mistério e brincadeira, mar que alimenta, diverte, desafia, purifica, embala e inspira com sua beleza simples e majestosa os agitados corações contemporâneos.
O projeto gráfico de Hélio de Almeida é belíssimo: fotos lindas e históricas, uma composição bossa-nova, onde o fundamental é a beleza. Na capa, Tom fumando e pescando. Logo que você abre o livro, a foto de Pixinguinha dando suas bênçãos ao novo gênero musical. Em seguida, Luiz Bonfá, João Gilberto e Tom Jobim inspirados, tocando violão na praia de Copacabana. Depois, João Gilberto em Ipanema. Essa abertura fotográfica termina com uma foto de Brigitte Bardot em Búzios. Outras lindas fotos surgem no percurso do livro, que termina com a foto de João seguida da de Tom tocando no Arpoador.
Ruy Castro, jornalista e escritor, é um grande cronista, mestre em manter viva a nossa história cultural, escrevendo sobre temas e artistas brasileiros. Basta citar "Chega de Saudade", sobre a bossa nova, "O Anjo Pornográfico", sobre Nelson Rodrigues, "Estrela Solitária", sobre Garrincha. No texto de abertura, Ruy descreve o ambiente da época da bossa nova (1961): as garotas de Ipanema com seu existencialismo à brasileira, cultuando bossa nova, arte abstrata, filmes da nouvelle vague, frequentando o Beco das Garrafas, o Arpoador.
Tudo isso passou, diz ele, mas uma coisa continua: a música que aquelas garotas escutavam continua a ser ouvida hoje, e mais ouvida do que naquela época. Os rapazes que criaram a bossa nova queriam que a música que eles estavam inventando fosse bonita, sofisticada e... eterna. Sonhavam com a eternidade: "Eles sonhavam com um tipo de música que pairasse sobre o tempo, que os tornasse sempre jovens -e tornasse jovem quem a ouvisse em qualquer época". Esse sonho de eternidade, essa promessa de eterna juventude, diz Ruy, cumpriu-se, pois o futuro com que eles sonhavam é o nosso presente. E a bossa nova continua bela, continua viva, continua nova.
O segredo dessa eterna juventude, diz, é a seiva de que ela é feita: a beleza. Beleza melódica, riqueza harmônica, encanto rítmico, delicadeza poética. Nada disso se perdeu, é verdade, mas acho que hoje a ouvimos com outros ouvidos e vemos suas imagens poéticas com outros olhos. A sua beleza já não é mais inesperada: é uma beleza conhecida, mas nem por isso menos bela. Será que quem nunca ouviu João na sua primeira escuta achará que o som que ele faz é novo? Isso não sei, como não sei também se a arte tem o poder de ser eterna. Só sei que a arte instaura uma outra temporalidade e sobrevive ao seu criador. Só sei que a bossa nova continua e que Chronos, de uma certa forma, rendeu-se a Vênus sem resistência e com muito prazer. Ainda hoje, ouvindo canções como "Corcovado", "Dindi", "Wave" e tantas, tantas outras, a gente continua a experimentar um prazer quase hipnótico, e acho que esse prazer vem de uma espécie de reconciliação com a beleza da vida.
Assim como a poesia sobrevive, escapa e transborda deste malformado mundo, a bossa nova sobrevive não só como saudade mas como presença e como contraponto. Ela não tem nada a ver com a pressa, com a tensão, com o barulho, com a violência que invade nossas cidades, casas, olhos e ouvidos, assim como muitos de nós também não têm nada a ver com isso. E aí a bossa nova acalma nossos sentidos e alimenta nosso coração. A beleza nossa de cada dia. Diz Ruy: "No dia em que se reescrever a Constituição, um dos novos artigos dirá: Todo brasileiro tem direito a um cantinho e um violão".
Ele conta que entre 1958 e 1963, quando essas canções estavam sendo feitas, metade do mundo dançava ao som do rock and roll e a outra metade dançava twist. "Jobim abriu o piano e libertou dezenas de melodias." Vinicius fez a letra, Silvinha Telles e João gravaram e João inventou um batida no violão que daria nome ao movimento.
É bom a gente lembrar que este livro é um novo mergulho na bossa nova. Em "Chega de Saudade" (1990) a história da bossa nova já foi contada. Aqui há a idéia central de que a bossa nova ainda hoje é nova e está sendo mais ouvida do que no tempo de sua criação.
Além disso, há a celebração de seus personagens: o grande Tom Jobim, Menescal e Boscolli; o charme de Brigitte Bardot em Búzios; a trágica história do precursor Orlando Silva; "as estrelas que esquecemos de contar", Dick Farney e Lúcio Alves; a genialidade de Johnny Alf; as estórias engraçadas do desligado e inventivo João Donato; a morte terrível e equivocada do músico Tenório Jr.; uma sessão de estúdio e uma conversa de despedida com a querida musa Nara Leão e João Gilberto com seu jeito diferente de ser e seu mais que direito de pedir silêncio para que sua música seja ouvida. Abaixo o barulho! Viva o João!
Um livro gostoso, bonito, charmoso, com estórias curiosas, comoventes, trágicas, engraçadas, delicadas. Ruy, ao se aproximar dos artistas com o cuidado dos apaixonados, nos convida a amá-los também e a conhecer melhor essas pessoas que tornaram a nossa vida melhor e mais bela. As canções transbordam das páginas escritas e começam a tocar em nossa alma. E a nossa alma fica assim, só música cantada com delicadeza, de um jeito bem baixinho, de um jeito amoroso, de um jeito bossa-nova. Um cantinho, um violão e um abraço no Ruy.


Eliete Negreiros é cantora de música popular brasileira e mestranda em estética no departamento de filosofia da USP.



Texto Anterior: O sentido e a letra
Próximo Texto: Ciência e democracia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.