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Tom e a onda
Uma celebração da bossa nova
ELIETE NEGREIROS
A Onda Que Se Ergueu no Mar -
Novos Mergulhos na Bossa Nova
Ruy Castro
Companhia das Letras (Tel. 0/ xx/11/3167-0801)
304 págs., R$ 31,50
Vou te contar: o título do livro de Ruy Castro é um
verso de "Wave" (1967), belíssima canção do Tom
Jobim e nome também do disco de Tom que tem
"Triste", "Diálogo", "Lamento", arranjos de Claus
Ogerman e Ron Carter no baixo. Quer mais? Essa
gravação é instrumental; com letra, "Wave" teve sua
versão impecável, delicada e definitiva com João Gilberto, no LP "Amoroso" (1976), um dos discos mais
lindos que já ouvi e continuo ouvindo em minha vida. Tom e a onda. Tom é a onda: onda que se ergue
no mar e que vira mar, já que as ondas vão e vêm e o
mar permanece o mesmo e essa onda ficou e virou
mar, água brilhante, salgada, princípio de vida, mistério e brincadeira, mar que alimenta, diverte, desafia, purifica, embala e inspira com sua beleza simples
e majestosa os agitados corações contemporâneos.
O projeto gráfico de Hélio de Almeida é belíssimo:
fotos lindas e históricas, uma composição bossa-nova, onde o fundamental é a beleza. Na capa, Tom fumando e pescando. Logo que você abre o livro, a foto
de Pixinguinha dando suas bênçãos ao novo gênero
musical. Em seguida, Luiz Bonfá, João Gilberto e
Tom Jobim inspirados, tocando violão na praia de
Copacabana. Depois, João Gilberto em Ipanema. Essa abertura fotográfica termina com uma foto de Brigitte Bardot em Búzios. Outras lindas fotos surgem
no percurso do livro, que termina com a foto de João
seguida da de Tom tocando no Arpoador.
Ruy Castro, jornalista e escritor, é um grande cronista, mestre em manter viva a nossa história cultural, escrevendo sobre temas e artistas brasileiros.
Basta citar "Chega de Saudade", sobre a bossa nova,
"O Anjo Pornográfico", sobre Nelson Rodrigues,
"Estrela Solitária", sobre Garrincha. No texto de
abertura, Ruy descreve o ambiente da época da bossa nova (1961): as garotas de Ipanema com seu existencialismo à brasileira, cultuando bossa nova, arte
abstrata, filmes da nouvelle vague, frequentando o
Beco das Garrafas, o Arpoador.
Tudo isso passou, diz ele, mas uma coisa continua:
a música que aquelas garotas escutavam continua a
ser ouvida hoje, e mais ouvida do que naquela época.
Os rapazes que criaram a bossa nova queriam que a
música que eles estavam inventando fosse bonita,
sofisticada e... eterna. Sonhavam com a eternidade:
"Eles sonhavam com um tipo de música que pairasse sobre o tempo, que os tornasse sempre jovens -e
tornasse jovem quem a ouvisse em qualquer época".
Esse sonho de eternidade, essa promessa de eterna
juventude, diz Ruy, cumpriu-se, pois o futuro com
que eles sonhavam é o nosso presente. E a bossa nova continua bela, continua viva, continua nova.
O segredo dessa eterna juventude, diz, é a seiva de
que ela é feita: a beleza. Beleza melódica, riqueza harmônica, encanto rítmico, delicadeza poética. Nada
disso se perdeu, é verdade, mas acho que hoje a ouvimos com outros ouvidos e vemos suas imagens poéticas com outros olhos. A sua beleza já não é mais
inesperada: é uma beleza conhecida, mas nem por
isso menos bela. Será que quem nunca ouviu João na
sua primeira escuta achará que o som que ele faz é
novo? Isso não sei, como não sei também se a arte
tem o poder de ser eterna. Só sei que a arte instaura
uma outra temporalidade e sobrevive ao seu criador.
Só sei que a bossa nova continua e que Chronos, de
uma certa forma, rendeu-se a Vênus sem resistência
e com muito prazer. Ainda hoje, ouvindo canções
como "Corcovado", "Dindi", "Wave" e tantas, tantas outras, a gente continua a experimentar um prazer quase hipnótico, e acho que esse prazer vem de
uma espécie de reconciliação com a beleza da vida.
Assim como a poesia sobrevive, escapa e transborda deste malformado mundo, a bossa nova sobrevive não só como saudade mas como presença e como
contraponto. Ela não tem nada a ver com a pressa,
com a tensão, com o barulho, com a violência que invade nossas cidades, casas, olhos e ouvidos, assim
como muitos de nós também não têm nada a ver
com isso. E aí a bossa nova acalma nossos sentidos e
alimenta nosso coração. A beleza nossa de cada dia.
Diz Ruy: "No dia em que se reescrever a Constituição, um dos novos artigos dirá: Todo brasileiro tem
direito a um cantinho e um violão".
Ele conta que entre 1958 e 1963, quando essas canções estavam sendo feitas, metade do mundo dançava ao som do rock and roll e a outra metade dançava
twist. "Jobim abriu o piano e libertou dezenas de melodias." Vinicius fez a letra, Silvinha Telles e João gravaram e João inventou um batida no violão que daria
nome ao movimento.
É bom a gente lembrar que este livro é um novo
mergulho na bossa nova. Em "Chega de Saudade"
(1990) a história da bossa nova já foi contada. Aqui
há a idéia central de que a bossa nova ainda hoje é
nova e está sendo mais ouvida do que no tempo de
sua criação.
Além disso, há a celebração de seus personagens: o
grande Tom Jobim, Menescal e Boscolli; o charme de
Brigitte Bardot em Búzios; a trágica história do precursor Orlando Silva; "as estrelas que esquecemos de
contar", Dick Farney e Lúcio Alves; a genialidade de
Johnny Alf; as estórias engraçadas do desligado e inventivo João Donato; a morte terrível e equivocada
do músico Tenório Jr.; uma sessão de estúdio e uma
conversa de despedida com a querida musa Nara
Leão e João Gilberto com seu jeito diferente de ser e
seu mais que direito de pedir silêncio para que sua
música seja ouvida. Abaixo o barulho! Viva o João!
Um livro gostoso, bonito, charmoso, com estórias
curiosas, comoventes, trágicas, engraçadas, delicadas. Ruy, ao se aproximar dos artistas com o cuidado
dos apaixonados, nos convida a amá-los também e a
conhecer melhor essas pessoas que tornaram a nossa vida melhor e mais bela. As canções transbordam
das páginas escritas e começam a tocar em nossa alma. E a nossa alma fica assim, só música cantada
com delicadeza, de um jeito bem baixinho, de um
jeito amoroso, de um jeito bossa-nova. Um cantinho, um violão e um abraço no Ruy.
Eliete Negreiros é cantora de música popular brasileira e mestranda em estética no departamento de filosofia da USP.
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