São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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O sentido e a letra

LUCIA TEIXEIRA

Análise Semiótica através das Letras
Luiz Tatit
Ateliê Editorial (Tel. 0/xx/11/4612-9666)
207 págs., R$ 22,00

O livro de Luiz Tatit, concebido para estabelecer uma ponte entre a teoria e a aplicação analítica, surge como obra de referência para todos aqueles que desejam estar em dia com os avanços da semiótica e também para os estudiosos da linguagem, de modo geral. Ao fazer a análise de 15 letras de canções da MPB, o autor percorre o plano do conteúdo dos textos, com algumas breves passagens pelo plano da expressão verbal, produzindo análises de grande beleza, rigorosamente balizadas pelo modelo teórico.
A semiótica concebe o sentido como um percurso constituído de três níveis. No primeiro, chamado profundo ou fundamental, identificam-se universos semânticos abstratos e abrangentes, percebidos como oposições. Assim, por exemplo, natureza e cultura seriam dois termos contrários capazes de abranger largos territórios do sentido. Num segundo nível, esses termos abstratos ressoam em uma organização narrativa, modelo de previsibilidade dos embates e acordos entre sujeitos no mundo, com direito às paixões que reorientam ou desorientam os percursos. Um ecologista, ao euforizar a natureza e disforizar a cultura, pode protagonizar uma sequência narrativa que entre em conflito com o percurso de um construtor, para exemplificar pelo estereótipo. Num terceiro nível de geração do sentido, essa narrativa é recoberta pelo discurso, que tanto pode concretizar-se em um panfleto quanto em sofisticada peça musical.
Em "Análise Semiótica através das Letras", esse modelo, aqui reduzido ao que tem de elementar, ganha novo fôlego, com a concepção do primeiro nível do percurso gerativo como um nível tensivo. Espécie de precondição para a aparição do sentido, aí entrariam em tensão percepções sensíveis e sentimentos de aproximação ou rejeição a sistemas axiológicos estabelecidos, que ressoam nos demais níveis, de certa maneira determinando as formas de organização da narrativa e as escolhas discursivas.
Logo no primeiro capítulo, o nível tensivo aparece caracterizado pela relação entre continuidade e descontinuidade, extensidade e intensidade. Em "Saudosa Maloca", o fio contínuo e extenso da recordação é cortado, descontinuado, pelo esquecimento, que alcança assim um traço de intensidade. A maloca saudosa e querida, ao produzir no sujeito o sentimento de falta, instala tensões decorrentes da impossibilidade de reconquistá-la, mesmo de revê-la. Afetado por injunções sociais que se organizam sob a forma de axiologias, ou sistemas de valores, o sujeito fica desmobilizado para a ação. Sente "doer o coração", mas não tem como impedir as "taubas" de caírem, conforma-se e relembra. A lembrança que perdura na extensão temporal concretiza-se como passividade, como desativação das possibilidades de operar transformações na narrativa.
Tem essa análise duplo efeito didático: tanto exemplifica um modo de dirigir o olhar para o texto, quanto demonstra as relações entre dois espetáculos, o do texto e o do mundo, igualmente feitos de simulações e representações. Mais que isso, a análise de "Saudosa Maloca" serve para demonstrar que o rigor teórico não é incompatível com a sensibilidade do analista, capaz de descobrir, nas letras das canções, uma certa exemplaridade existencial que não só redimensiona seu significado mas também o projeta na direção da vida de todos nós.
As demais análises reafirmam tanto a proposta metodológica quanto esse alcance mais amplo. Em "Gota d'Água", o compromisso da mulher que sofre com os valores extensos, que alongam sua paixão, reflete seu receio da velocidade, da interrupção brusca que ocasionaria uma fratura em sua própria identidade. No entanto "a evolução do estado passional é contínua mas não interminável. Quanto mais progride a tensão, mais vislumbra-se o seu limite", concretizado na figura da gota d'água.
Também em "Domingo no Parque", de Gilberto Gil, o ritmo básico do nível profundo é um excesso de retenção, que acaba por levar à distensão. Reitera-se aqui o poder do plano tensivo como previsibilidade dos sentidos, que explodem nas figuras da roda-gigante e da cor vermelha, concretizações do movimento de liberação do sujeito.
Já a letra de "Paciência", de Lenine, fala de um sujeito que, ao retardar o tempo, busca a valorização da vida justamente em sua desaceleração. O sujeito paciente espera o futuro em sua dimensão extensa, adiada, e rejeita sua dimensão intensa, de apressamento ou antecipação. Do mesmo modo, o sujeito de "Ovelha Negra", de Rita Lee, expande seu querer e rejeita as imposições do dever, para valorizar a realidade em sua dimensão extensa.
A idéia central que percorre o livro é a de que "qualquer momento da cadeia discursiva pode ser enfocado como um ponto tensivo em que colidem forças antagônicas representadas pelas categorias (ou valências) intensidade versus extensidade". Os valores intensos determinam os limites, as disjunções, as paradas, as formas de concentração, as descontinuidades. Os valores extensos dizem respeito às gradações, às conjunções, às aberturas, às formas de expansão, às continuidades. Reforça-se também a idéia de que o nível tensivo reverbera tanto nas paixões da narrativa quanto nas figuras do discurso.
Ainda que operando com a repetição de categorias de análise e conceitos teóricos, que se encontram indicados no ótimo índice remissivo, as análises de Tatit não fixam um modelo pronto. Ao contrário, ganham movimento e densidade porque se rendem aos textos. Habituado a analisar a música ("Semiótica da Canção", Escuta, 1994; "Musicando a Semiótica", Annablume,1997), o semioticista, compositor e professor da USP apresenta, neste livro, notável e bem-sucedido esforço de simplificação de uma teoria bastante densa, sem ceder à armadilha do reducionismo fácil.
Ainda por cima, seu estilo torna a leitura agradável e proveitosa não só para os iniciados em semiótica mas para todos os interessados em conhecer novos domínios da investigação científica voltada para a análise de textos e discursos.


Lucia Teixeira é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de "As Cores do Discurso" (editora da Universidade Federal Fluminense).



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