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O sentido e a letra
LUCIA TEIXEIRA
Análise Semiótica através das Letras
Luiz Tatit
Ateliê Editorial (Tel. 0/xx/11/4612-9666)
207 págs., R$ 22,00
O livro de Luiz Tatit, concebido para estabelecer uma ponte entre a teoria e a
aplicação analítica, surge como obra de referência para todos aqueles que desejam estar em dia com os avanços da semiótica e também para os estudiosos
da linguagem, de modo geral. Ao fazer a análise de 15 letras de canções da
MPB, o autor percorre o plano do conteúdo dos textos, com algumas breves
passagens pelo plano da expressão verbal, produzindo análises de grande beleza, rigorosamente balizadas pelo modelo teórico.
A semiótica concebe o sentido como um percurso constituído de três níveis.
No primeiro, chamado profundo ou fundamental, identificam-se universos
semânticos abstratos e abrangentes, percebidos como oposições. Assim, por
exemplo, natureza e cultura seriam dois termos contrários capazes de abranger largos territórios do sentido. Num segundo nível, esses termos abstratos
ressoam em uma organização narrativa, modelo de previsibilidade dos embates e acordos entre sujeitos no mundo, com direito às paixões que reorientam
ou desorientam os percursos. Um ecologista, ao euforizar a natureza e disforizar a cultura, pode protagonizar uma sequência narrativa que entre em conflito com o percurso de um construtor, para exemplificar pelo estereótipo. Num
terceiro nível de geração do sentido, essa narrativa é recoberta pelo discurso,
que tanto pode concretizar-se em um panfleto quanto em sofisticada peça
musical.
Em "Análise Semiótica através das Letras", esse modelo, aqui reduzido ao
que tem de elementar, ganha novo fôlego, com a concepção do primeiro nível
do percurso gerativo como um nível tensivo. Espécie de precondição para a
aparição do sentido, aí entrariam em tensão percepções sensíveis e sentimentos de aproximação ou rejeição a sistemas axiológicos estabelecidos, que ressoam nos demais níveis, de certa maneira determinando as formas de organização da narrativa e as escolhas discursivas.
Logo no primeiro capítulo, o nível tensivo aparece caracterizado pela relação entre continuidade e descontinuidade, extensidade e intensidade. Em
"Saudosa Maloca", o fio contínuo e extenso da recordação é cortado, descontinuado, pelo esquecimento, que alcança assim um traço de intensidade. A
maloca saudosa e querida, ao produzir no sujeito o sentimento de falta, instala
tensões decorrentes da impossibilidade de reconquistá-la, mesmo de revê-la.
Afetado por injunções sociais que se organizam sob a forma de axiologias, ou
sistemas de valores, o sujeito fica desmobilizado para a ação. Sente "doer o coração", mas não tem como impedir as "taubas" de caírem, conforma-se e relembra. A lembrança que perdura na extensão temporal concretiza-se como
passividade, como desativação das possibilidades de operar transformações
na narrativa.
Tem essa análise duplo efeito didático: tanto exemplifica um modo de dirigir o olhar para o texto, quanto demonstra as relações entre dois espetáculos,
o do texto e o do mundo, igualmente feitos de simulações e representações.
Mais que isso, a análise de "Saudosa Maloca" serve para demonstrar que o rigor teórico não é incompatível com a sensibilidade do analista, capaz de descobrir, nas letras das canções, uma certa exemplaridade existencial que não só
redimensiona seu significado mas também o projeta na direção da vida de todos nós.
As demais análises reafirmam tanto a proposta metodológica quanto esse
alcance mais amplo. Em "Gota d'Água", o compromisso da mulher que sofre
com os valores extensos, que alongam sua paixão, reflete seu receio da velocidade, da interrupção brusca que ocasionaria uma fratura em sua própria
identidade. No entanto "a evolução do estado passional é contínua mas não
interminável. Quanto mais progride a tensão, mais vislumbra-se o seu limite", concretizado na figura da gota d'água.
Também em "Domingo no Parque", de Gilberto Gil, o ritmo básico do nível
profundo é um excesso de retenção, que acaba por levar à distensão. Reitera-se aqui o poder do plano tensivo como previsibilidade dos sentidos, que explodem nas figuras da roda-gigante e da cor vermelha, concretizações do movimento de liberação do sujeito.
Já a letra de "Paciência", de Lenine, fala de um sujeito que, ao retardar o tempo, busca a valorização da vida justamente em sua desaceleração. O sujeito
paciente espera o futuro em sua dimensão extensa, adiada, e rejeita sua dimensão intensa, de apressamento ou antecipação. Do mesmo modo, o sujeito
de "Ovelha Negra", de Rita Lee, expande seu querer e rejeita as imposições do
dever, para valorizar a realidade em sua dimensão extensa.
A idéia central que percorre o livro é a de que "qualquer momento da cadeia
discursiva pode ser enfocado como um ponto tensivo em que colidem forças
antagônicas representadas pelas categorias (ou valências) intensidade versus
extensidade". Os valores intensos determinam os limites, as disjunções, as paradas, as formas de concentração, as descontinuidades. Os valores extensos
dizem respeito às gradações, às conjunções, às aberturas, às formas de expansão, às continuidades. Reforça-se também a idéia de que o nível tensivo reverbera tanto nas paixões da narrativa quanto nas figuras do discurso.
Ainda que operando com a repetição de categorias de análise e conceitos
teóricos, que se encontram indicados no ótimo índice remissivo, as análises
de Tatit não fixam um modelo pronto. Ao contrário, ganham movimento e
densidade porque se rendem aos textos. Habituado a analisar a música ("Semiótica da Canção", Escuta, 1994; "Musicando a Semiótica", Annablume,1997), o semioticista, compositor e professor da USP apresenta, neste livro, notável e bem-sucedido esforço de simplificação de uma teoria bastante
densa, sem ceder à armadilha do reducionismo fácil.
Ainda por cima, seu estilo torna a leitura agradável e proveitosa não só para
os iniciados em semiótica mas para todos os interessados em conhecer novos
domínios da investigação científica voltada para a análise de textos e discursos.
Lucia Teixeira é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de "As Cores do Discurso"
(editora da Universidade Federal Fluminense).
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