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Filósofo francês contemporâneo defende universalidade
Os novos sofistas
VLADIMIR SAFATLE
Nossa época produziu feitos notáveis.
Um deles foi engendrar uma suspeita geral contra todos os que defendem perspectivas universalistas. Para uma certa
contemporaneidade, todo universal tem
parte com discursos de cunho totalitário.
Sentimo-nos muito mais à vontade conjugando as gramáticas da multiplicidade
ou de um certo relativismo prudente que
encontrou sua realização política nas
práticas comunitaristas de reificação das
minorias.
Dentro de tal quadro consensual, o projeto filosófico de Alain Badiou tende a
provocar dissonâncias. Dono de um pensamento que trafega entre psicanálise, filosofia, matemática e a tradição política
da esquerda francesa pós-68, Badiou crê
que a contemporaneidade está à espera
de um "gesto platônico". Gesto filosófico
inaugural que consistiria na defesa do espaço da universalidade de um "logos"
matematizado contra a retórica sofista.
Pois nossa época seria marcada pela hegemonia dos "sofistas": uma nebulosa
ampla que engloba os que aceitaram os
dispositivos de relativização da unicidade
da verdade. Nela encontraríamos: Derrida, Lyotard, Rorty, a antifilosofia de
Nietzsche, Deleuze em momentos menos
inspirados e mesmo Wittgenstein com
sua reorientação do problema da verdade
mediante a multiplicidade de jogos de
linguagens. Uma articulação extremamente particular da história contemporânea da filosofia, é certo, mas que não
deixa de nos colocar novas questões.
Mas qual seria então o programa positivo de Badiou? Algumas de suas facetas
gerais podem ser encontradas em seu novo livro. Nele, Badiou utiliza uma linguagem introdutória para falar de ética, real,
subjetivação, antifilosofia e, principalmente, de política. De fato, "introdutório" diz respeito muito mais à contenção
conceitual que aos resultados propriamente apresentados. O livro é um conjunto de posições advindas de um questionamento ontológico cuja fonte se encontra em "O Ser e o Evento". Dessa forma, ele funciona como uma boa porta de
entrada às consequências do pensamento de Badiou.
Matemática e ontologia
Antes de passarmos às tais consequências, retornemos ao programa. É possível
esquematizá-lo a partir de duas estratégias fundamentais. Primeiro, trata-se de
recuperar a dimensão transcendental da
filosofia mediante uma ontologia fundada na matemática. Essa ontologia pode
ser vista como uma espécie de resposta
francesa à guinada logicista anglo-saxã. A
aposta de Badiou consiste em utilizar a
matemática como modalidade de apresentação formalizada do ser, já que a matemática diria o que é dizível do ser. Versão parisiense de um sonho positivista-lógico (acrescido do vocabulário do ser)?
Não exatamente, já que estamos distante de qualquer doutrina da verdade enquanto adequação. A complexidade do
projeto está na tentativa de pensar as condições de fundamentação da filosofia
mediante um modo de apresentação do
real que abra espaço à dimensão da universalidade, mas que, ao mesmo tempo,
forneça uma crítica às estratégias correspondenciais do pensamento representativo. A segunda estratégia de Badiou consiste em refundar uma teoria do sujeito.
Pois, se sua filosofia procura escapar do
regime correspondencial de verdade, é
porque a verdade tem, para ela, a forma
de um evento indecidível e originalmente
inominável.
A guinada ontológico-matemática apenas daria as condições para a formalização adequada desse espaço não saturado
onde ressoaria o evento. A astúcia consiste em utilizar a matemática para formalizar um limite à própria ação de formalização matemática e abrir, assim, as portas à contingência do evento. Fundamentar a filosofia por meio de uma operação
de apreensão da externalidade irredutível
do fundamento. A filosofia poderia apenas reconhecer a existência de verdades,
e não produzi-las, já que essa produção
viria dos campos da ciência, da política,
da arte e do encontro amoroso.
Dada tal estrutura da verdade, Badiou
precisa de uma teoria do sujeito a fim de
articular uma modalidade de reconhecimento da validade universal do evento.
Essa teoria do sujeito é a segunda estratégia de seu programa. Mas, como o evento-verdade é produzido, nesses quatro
campos, pelo ser (e não pelo sujeito), o
que Badiou realmente precisa é de uma
teoria da subjetivação, ou melhor, de
uma subjetivação sem sujeito original.
Basta ver sua conferência intitulada
"São Paulo: Um Contemporâneo". A
conversão de Paulo mostraria, na verdade, como o sujeito advém sujeito mediante um ato de reconhecimento e de ser
fiel a um evento que aspira validade universal (lembremo-nos que São Paulo é
exatamente aquele que declara a universalidade da lei cristã contra o comunitarismo judaico dos primeiros cristãos).
Slavoj Zizek percebeu bem que há aí uma
certa similitude estrutural com a interpelação subjetiva de Althusser: dispositivo
teórico construído para mostrar como
um sujeito advém sujeito por intermédio
do ato de se reconhecer na interpelação
do outro. A diferença é que, em Badiou, o
sujeito responde a uma interpelação do
ser. A semelhança é que o sujeito é agente, no máximo, do ato de reconhecimento, e não do evento, já que, do evento propriamente dito ele é apenas um suporte.
Vale a pena perceber a articulação política desse esquema filosófico. Por intermédio de sua teoria da subjetivação como identificação com a universalidade
do evento, Badiou pode fazer a crítica à
tendência contemporânea de reificação
das identidades particulares presente na
política comunitarista. Ele compartilha o
diagnóstico de uma certa esquerda que
vê, nessas práticas de minorias, o anverso
complementar da universalidade do automatismo do capital. Todas essas reivindicações identitárias (que se dão principalmente na esfera do mercado: para cada identidade um "target" com uma linha completa de produtos e uma linguagem publicitária específica), estão subordinadas à falsa universalidade do capital.
Mas quais seriam, na perspectiva política, as condições de possibilidade de um
ato que nos levaria para além dessa falsa
universalidade? Badiou nos dá duas: a recusa à idéia de representação e o abandono da noção de Estado e de política vinculada ao Estado.
De fato, essas são questões caras ao
pensamento contemporâneo de esquerda e, na maioria dos casos, elas o levam a
um diagnóstico similar: desconsiderar a
experiência ocidental de democracia representativa, já que se trataria de um regime atrelado à falsa universalidade do Capital, com seu sistema de diferenças controladas que impede o aparecimento de
novos eventos capazes de produzir a verdadeira universalidade. No limite, isso leva Badiou a afirmar que a distinção entre
um Estado totalitário (como, digamos, o
Chile de Pinochet) e um Estado que adota
a forma da democracia representativa
(como o Chile de Allende) limita-se a
uma diferença jurídica. Sem dúvida, a
afirmação é polêmica, mas ela materializa um dos problemas postos por uma filosofia que, longe de admitir a consolidação do vazio de uma história sem eventos, procura permitir o reconhecimento
de eventos não prescritos pela situação
histórica. E, desses problemas, ninguém
que defende a possibilidade do universalismo pode escapar.
Conferências de Alain Badiou no Brasil
Organização: Célio Garcia
Autêntica (Tel. 0/xx/31/481-4860)
134 págs., R$ 20,00.
Vladimir Safatle é doutorando em filosofia pela
Universidade Paris 8.
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