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No sofrimento, o conhecimento
YUDITH ROSENBAUM
O interesse da psicanálise freudiana pela tragédia grega está
presente pelo menos desde a "Interpretação dos Sonhos"
(1900), em que Freud se refere ao "Édipo Rei", de Sófocles, e reconhece na ação da peça "um processo que pode ser comparado ao trabalho de um psicanalista".
00Intrigado pelo mesmo tema, o psicanalista Mauro P. Meiches elege o fenômeno trágico como metáfora da travessia analítica e realiza um ensaio denso e atual, acrescentando matizes
novos aos estudos da área. Seu livro parte do gênero trágico para iluminar aspectos da clínica e da teoria psicanalíticas, afastando-se das visões detetivescas da psicanálise (que a encaram
como arqueologia de recalcados preexistentes) e evitando reduzir as obras abordadas a um conjunto de sintomas e complexos.
00O que vai se desenhando nos exemplos explorados por Meiches -das "Coéforas" ao "Prometeu Acorrentado", de Ésquilo, de "Ájax" a "Édipo Rei", de Sófocles- são dois operadores
analógicos para pensar o sujeito psíquico: o cidadão de Atenas,
cuja incipiente "vontade" vive os impasses entre a nova ordem
estatal e a antiga religiosidade (e é desse confronto entre o velho
e o novo que nasce o gênero trágico, bem como a dor das transformações na análise), e a própria cidade, a "pólis" recém-erguida, que se debate para expulsar de seu interior o que ainda se
esconde no cidadão, o selvagem, o incestuoso, o parricida.
Substituindo o cidadão ateniense pelo homem moderno, Meiches mostra que sempre haverá "restos antipolíticos", sedimentos não metabolizáveis, que resistem à vida em sociedade
(e que a psicanálise chamou de pulsional ou de "pulsão de morte"), constituindo, assim, o caráter trágico da condição humana.
00Inspirado desde a primeira linha pela máxima de Ésquilo
-"no sofrimento, o conhecimento" -, o autor surpreende aí
o sumo do trágico, mostrando que "sentir não seria suficiente
para definir uma condição trágica; é preciso também sabê-la
trágica". Como já havia notado Anatol Rosenfeld em "Texto/
Contexto" (Perspectiva) -cuja ausência na bibliografia deve
ser apontada-, Édipo "opta conscientemente pelo conhecimento da verdade e pela revelação pública do segredo terrível,
ainda que isso resulte em desgraça horrenda para ele e sua família. Édipo é um herói trágico por enfrentar, com dignidade e
de forma incondicional, o seu destino, e não por ser vítima de
seu inconsciente".
00Meiches, por seu lado, entende que a culpabilidade trágica,
ocasionada por um desígnio desconhecido, reverbera na idéia
psicanalítica de sintoma: "A semelhança reside nessa incrível
disposição da vida em nos contaminar com coisas, representações, ou o que se queira chamar, pelas quais um caminho começa a se desenhar até que o acontecido não possa mais deixar
de ter acontecido. E, nesse ponto, não resta mais ao sujeito outra opção que a de "se responsabilizar", como disse Lacan, pelo
seu sintoma, arcar com ele e pagar o preço dessa queda na paixão. Estamos absolutamente próximos do humano que o trágico inventa".
00Como essas, outras ressonâncias entre os campos trágico e
analítico vão sendo rastreadas pelo autor (por exemplo, o embate com a alteridade, a catarse, a busca da origem etc.), ressaltando-se o estudo "das zonas de opacidade e de incomunicabilidade" presentes nas falas dos homens nos textos gregos (e são
exemplares os casos de "Antígona" e "Édipo Rei", de Sófocles),
minuciosamente explorados na obra que dá referência a Meiches: "Mito e Tragédia na Grécia Antiga" (Duas Cidades), de
Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet. As personagens,
como os sujeitos em análise, sempre dizem mais (ou algo diferente) do que tencionam dizer, revelando que "o jogo do discurso oculta o familiar, cerne do recalcado" .
00Tendo de um lado "A Poética", de Aristóteles, e de outro "A
Origem da Tragédia", de Nietzsche, o autor constrói seus alicerces teóricos historicizando as visões antagônicas sobre o fenômeno da "hybris" (desmedida), elemento estrutural da tragédia. Para a ética grega, o excesso do herói seria a causa de sua
ruína; já no "pathos" nietzschiano, a desmedida é "substrato
dionisíaco da vida" e deve ser exaltado. Meiches faz dialogar o
conceito de "hybris" com o fenômeno da transgressão, da ruptura de posições adquiridas, da quebra dramática de limites.
Impossível não concordar com o autor de que aí se reconhece
demasiadamente o humano.
00Das relações entre o trágico grego, o moderno e a psicanálise,
Meiches desentranha duas vertentes comuns e que estruturam
o ensaio: a ambiguidade e a transitoriedade das formas. A ambivalência de posições e os deslocamentos subjetivos são passagens temporais, transições -daí a "travessia" do título-, que
implicam renúncia e destruição de lugares simbólicos. A identificação, referida às necessárias mutações psíquicas, surge ao final como conceito chave, contrastado com a idéia paralisante
de "identidade". Segundo o autor, iniciamos uma análise tentando tratar da identidade e acabamos por atravessar "não a
identidade, mas identificações que nos liberam de uma só imagem identitária".
00Há uma outra ordem de questões que, infelizmente, é apenas
esboçada pelo autor. Trata-se da idéia da "representação" (estética e psíquica) como operador de uma transformação de afetos. Se é verdade que o fundo insondável do humano demanda
uma estrutura contendora do estado puro das pulsões (sendo o
poeta aquele que daria forma à matéria pura do trágico), não
poderíamos propor o papel do analista como aquele que suporta a aparição das vivências informes e inaugura, pela interpretação, uma dimensão estética na análise? O texto de Meiches parece apontar para esse horizonte, sobretudo quando cita oportunamente Rilke: "O belo é somente o primeiro grau do terrível". Pena não ter o autor se detido mais na proposta entreaberta.
00Profundo e inspirador, o livro de Meiches peca apenas em
dois pontos menores: é excessivo nas citações e oferece pouco
espaço para os casos clínicos frente aos trechos teóricos. Porém
tal desequilíbrio não compromete em nada a inegável contribuição da obra para os estudos da interface entre estética e psicanálise.
A Travessia do Trágico em Análise
Mauro Pergaminik Meiches
Casa do Psicólogo (Tel. 0/xx/852-4633)
185 págs., R$ 17,00.
Yudith Rosenbaum é psicóloga e doutora em teoria literária pela USP, autora de "Manuel Bandeira - Uma Poesia da Ausência" (Edusp/ Imago) e "Metamorfoses do Mal - Uma Leitura de Clarice Lispector" (Edusp).
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