São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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As análises do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre o poder político ocidental

Dentro e fora da lei

Homo Sacer - O Poder Soberano e a Vida Nua
Giorgio Agamben
Tradução: Henrique Burigo
Editora UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4650)
214 págs., R$ 25,00

MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

Juntamente com "Notas sobre a Política" e "O que Resta de Auschwitz", "Homo Sacer" faz parte de uma trilogia desse pensador italiano que é professor de filosofia na Universidade de Verona e que vem se destacando como uma das mais importantes expressões da filosofia européia dos últimos 15 anos.
"Homo sacer" é uma figura do direito romano arcaico para designar alguém que foi julgado pelo povo e condenado por algum delito, mas que não pode ser sacrificado, e quem o matar não comete homicídio. É sob essa categoria que Giorgio Agamben desenvolve uma análise magistral da política ocidental, e não é dizer demais considerar que seu trabalho nos obriga a repensar todos os conceitos que estiveram na base da reflexão moderna e contemporânea sobre a política, o direito e as tecnologias políticas de inserção dos indivíduos no mundo da cidade ou no chamado Estado de direito. Essa "mais antiga acepção do termo "sacer" nos apresenta o enigma de uma figura do sagrado aquém ou além do religioso, que constitui o primeiro paradigma do espaço político do Ocidente".
O "homo sacer" será várias vezes definido como uma vida matável, ou simplesmente vida nua, que não merece ser vivida, que se localiza sempre numa zona de indiferenciação, fora do espaço jurídico-político e, ao mesmo tempo, enquadrado por ele. Ou seja, o homem sacro está ao mesmo tempo dentro e fora do espaço jurídico-político e não é, como pensaram tantos antropólogos, uma figura ambígua que pode ser tomada ora como sagrado, ora como maldito, fasto e nefasto. Para Agamben, é muito mais do que isso, porque o seu lugar é sempre flutuante e de indiferenciação.
Resta identificar, na tradição filosófica, política e jurídica as metamorfoses dessa vida sacra e os mecanismos que a criam e recriam incessantemente.
Tudo começa com o processo de politização da vida doméstica que, na Antiguidade grega, era separada da vida da "pólis". Retomando as análises de Michel Foucault, em "A Vontade de Saber", Agamben afirma que é fundamental identificar na modernidade os passos pelos quais a vida natural começa a ser incluída nos cálculos do poder do Estado e "a política a se transformar em 'biopolítica'". Foucault não conseguiu desenvolver todas as implicações desse conceito, "mas, em todo caso, o ingresso da "zoé" (vida natural) na esfera da "pólis", a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico.
É provável, aliás, que, se a política parece hoje atravessar um duradouro eclipse, isso se dê precisamente porque ela se eximiu de um confronto com esse evento fundador da modernidade".
O paradoxo da modernidade -que elege o indivíduo, sua vida e liberdade, como os elementos fundamentais que precisam ser preservados ou protegidos pelo poder público- é que, no mesmo movimento pelo qual ele obtém proteção, sua entrega total ao Estado dá a este um poder ilimitado sobre a sua vida.
Basta uma análise do conceito de soberania para se perceber, agora do lado do exercício do poder soberano, ou dentro dele mesmo, uma das facetas do "homo sacer", isto é, a característica mesma da soberania, que se afirma, na definição da Karl Schmitt, como o poder legal de suspender a validade da lei, criando, assim, o Estado de exceção. Desse modo, o soberano está ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico, numa zona de indiferenciação, que lhe permite situar-se dentro e fora da lei.



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