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Fora da lei
"A afirmação segundo a qual "a
regra vive somente da exceção" dever ser tomada, portanto, ao pé da
letra. O direito não possui outra vida além daquela que consegue capturar dentro de si através da exclusão inclusiva da exceptio: ele se nutre dela e, sem ela, é letra morta.
Nesse sentido, verdadeiramente o
direito não possui por si nenhuma
existência, mas o seu ser é a própria
vida dos homens." O poder soberano vive da exceção, essa é sua regra,
seu lado bandido, que mantém uma
relação direta com aquele ou aqueles que são postos fora da lei, que foram banidos por ela e se acham, por
isso mesmo, excluídos do ordenamento, mas, ao mesmo tempo, enquadrados por ele.
A idéia de soberania se explicita
ainda melhor quando se considera
a relação entre poder constituinte e
poder constituído, porque o poder
soberano pode, a qualquer momento, suspender a validade da lei, como se estivesse num processo contínuo de instituição e no qual a exceção é regra permanente de afirmação de seu poder.
Se pensarmos, na tradição contratualista, o momento da constituição
do poder político, que se faz por intermédio de um contrato, que sinaliza o fim do estado de natureza e o
início da vida do Estado, então aqui,
mais uma vez, percebemos um outro paradoxo, o da permanência/
ausência do estado natural dentro
do estado civil. Se o estado de natureza, em vários autores da tradição
contratualista, dentre os quais Thomas Hobbes, era um estado de
guerra, de violência, o estado civil,
por sua vez, deveria ser um estado
de paz e tranquilidade, tendo como
objetivo principal a conservação da
vida daqueles que se colocaram nas
mãos do poder soberano para dele
receberem proteção e segurança.
O soberano em Hobbes
O que caracteriza o poder soberano, em Hobbes, é o fato de estar acima das leis, de não ter participado
do contrato e, portanto, estar inteiramente livre, isto é, em estado de
natureza. Seu lugar é o de uma zona
de indiferenciação, acima e dentro
da lei, porque é ele quem a estabelece para os súditos que estão sob sua
proteção e poder absolutos. E, como sua ação violenta contra estes
não configura crime, eles se encontram naquela mesma condição do
homem sacro.
Se pensarmos ainda no documento que simboliza o início da democracia moderna, o que institui o habeas corpus, em 1679, deparamo-nos mais uma vez com o paradoxo
do "homo sacer".
O "caráter ambíguo (ou polar) da
democracia é tão evidente no habeas corpus pelo fato de que, enquanto ele era destinado em sua
origem a assegurar a presença do
imputado no processo e, portanto,
a impedir que se subtraísse ao juízo,
na nova e definitiva forma ele se
converte em obrigação, para o xerife, de exibir o corpo do imputado e
de motivar a sua detenção. "Corpus"
é um ser bifronte, portador tanto da
sujeição ao poder soberano quanto
das liberdades individuais."
Essa bifrontalidade reaparece no
interior mesmo das soberanias populares. Aqui, a discussão começa a
esquentar, quando percebemos que
há Povo e o povo. Não podemos
nos esquecer de que o termo "povo" designa, nas línguas européias
modernas, não só os sujeitos constitutivos do poder soberano, mas
também os "pobres, os deserdados,
os excluídos".
Qual o significado, por exemplo,
da fórmula invocada por Lincon, de
um "governo do povo, pelo povo e
para o povo"? A repetição implica,
certamente, em pelo menos duas
acepções para o termo "povo": um,
entendido como o corpo integral,
detentor do poder máximo e o outro, os infelizes, os carentes, os excluídos.
"O "povo" carrega, assim, desde
sempre, em si, a fratura biopolítica
fundamental. Ele é aquilo que não
pode ser incluído no todo do qual
faz parte, e não pode pertencer ao
conjunto no qual já está desde sempre incluído. Daí as contradições e
as aporias às quais ele dá lugar toda
vez que é evocado e posto em jogo
na cena política. Ele é aquilo que já é
desde sempre, e que deve, todavia,
realizar-se; é a fonte pura de toda
identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do
sangue, do território."
A antiga divisão romana entre
"populus" e "plebs" continua presente, mesmo quando entra em cena a figura do povo como depositário único da soberania. O que está
em jogo, sempre, para a modernidade é a tentativa de construir um
povo sem fratura, o que faz com que
toda ação política moderna se
transforme em biopolítica. E quais
são os alvos dessa biopolítica? Os
miseráveis, os infelizes, os excluídos, sob todas as formas imagináveis.
"Esta tentativa mancomuna, segundo modalidades e horizontes
diversos, direita e esquerda, países
capitalistas e países socialistas, unidos no projeto -em última análise
vão, mas que se realizou parcialmente em todos os países industrializados - de produzir um povo
uno e indiviso."
O que Agamben destaca é que o
processo de inclusão da vida nua na
política não é exclusividade dos regimes de exceção, mas está inscrito
mesmo no conteúdo das "Declarações" dos direitos do homem e do
cidadão, que inclui até o nascimento como categoria nova e que deve
ser absorvida pelo espaço político-jurídico.
Aliás, "o princípio da natividade e
o princípio da soberania, separados
no Antigo Regime (onde o nascimento dava lugar somente ao "sujet", ao súdito), unem-se agora irrevogavelmente no corpo do "sujeito
soberano" para constituir o fundamento do novo Estado-nação".
Paradigma da modernidade
É nessa perspectiva que um olhar
sobre o campo de concentração assume um significado inteiramente
novo. Ao introduzir-nos nessa zona
de indiferenciação, na qual não se
percebe a linha de demarcação entre inclusão e exclusão, que tem como paradigma o "homo sacer",
Agamben nos apresenta os novos
exemplos de homens sacros da modernidade, representados, sobretudo, pelos judeus, considerados como um "povo que se recusa a ser integrado no corpo político nacional", e que são "os representantes
por excelência e quase o símbolo vivo do povo, daquela vida nua que a
modernidade cria necessariamente
no seu interior, mas cuja presença
não mais consegue tolerar de modo
algum".
Por isso mesmo, o novo paradigma da modernidade será o campo
de concentração ou o campo de refugiados, que se inserem naquele limiar de indiferenciação, ao mesmo
tempo de exclusão e inclusão no espaço político-jurídico. Basta-nos
um olhar atento ao nosso redor para percebermos o quanto estamos
cercados dessas zonas, nas quais se
incluem vidas nuas matáveis.
É de todos esses limiares, partes
constitutivas da filosofia, do direito
e da política ocidentais, que Agamben nos fala nesse livro, ao mesmo
tempo fascinante e desconcertante,
porque nos obriga a repensar todas
as categorias que até aqui haviam
sustentado nosso universo teórico e
nossas práticas de inserção no Estado de direito, ou então, para usarmos um termo tão em evidência, de
condução para a cidadania.
Milton Meira do Nascimento é professor
de ética e filosofia política no departamento de filosofia da USP.
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