São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Fora da lei

"A afirmação segundo a qual "a regra vive somente da exceção" dever ser tomada, portanto, ao pé da letra. O direito não possui outra vida além daquela que consegue capturar dentro de si através da exclusão inclusiva da exceptio: ele se nutre dela e, sem ela, é letra morta. Nesse sentido, verdadeiramente o direito não possui por si nenhuma existência, mas o seu ser é a própria vida dos homens." O poder soberano vive da exceção, essa é sua regra, seu lado bandido, que mantém uma relação direta com aquele ou aqueles que são postos fora da lei, que foram banidos por ela e se acham, por isso mesmo, excluídos do ordenamento, mas, ao mesmo tempo, enquadrados por ele.
A idéia de soberania se explicita ainda melhor quando se considera a relação entre poder constituinte e poder constituído, porque o poder soberano pode, a qualquer momento, suspender a validade da lei, como se estivesse num processo contínuo de instituição e no qual a exceção é regra permanente de afirmação de seu poder.
Se pensarmos, na tradição contratualista, o momento da constituição do poder político, que se faz por intermédio de um contrato, que sinaliza o fim do estado de natureza e o início da vida do Estado, então aqui, mais uma vez, percebemos um outro paradoxo, o da permanência/ ausência do estado natural dentro do estado civil. Se o estado de natureza, em vários autores da tradição contratualista, dentre os quais Thomas Hobbes, era um estado de guerra, de violência, o estado civil, por sua vez, deveria ser um estado de paz e tranquilidade, tendo como objetivo principal a conservação da vida daqueles que se colocaram nas mãos do poder soberano para dele receberem proteção e segurança.

O soberano em Hobbes
O que caracteriza o poder soberano, em Hobbes, é o fato de estar acima das leis, de não ter participado do contrato e, portanto, estar inteiramente livre, isto é, em estado de natureza. Seu lugar é o de uma zona de indiferenciação, acima e dentro da lei, porque é ele quem a estabelece para os súditos que estão sob sua proteção e poder absolutos. E, como sua ação violenta contra estes não configura crime, eles se encontram naquela mesma condição do homem sacro.
Se pensarmos ainda no documento que simboliza o início da democracia moderna, o que institui o habeas corpus, em 1679, deparamo-nos mais uma vez com o paradoxo do "homo sacer".
O "caráter ambíguo (ou polar) da democracia é tão evidente no habeas corpus pelo fato de que, enquanto ele era destinado em sua origem a assegurar a presença do imputado no processo e, portanto, a impedir que se subtraísse ao juízo, na nova e definitiva forma ele se converte em obrigação, para o xerife, de exibir o corpo do imputado e de motivar a sua detenção. "Corpus" é um ser bifronte, portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades individuais."
Essa bifrontalidade reaparece no interior mesmo das soberanias populares. Aqui, a discussão começa a esquentar, quando percebemos que há Povo e o povo. Não podemos nos esquecer de que o termo "povo" designa, nas línguas européias modernas, não só os sujeitos constitutivos do poder soberano, mas também os "pobres, os deserdados, os excluídos".
Qual o significado, por exemplo, da fórmula invocada por Lincon, de um "governo do povo, pelo povo e para o povo"? A repetição implica, certamente, em pelo menos duas acepções para o termo "povo": um, entendido como o corpo integral, detentor do poder máximo e o outro, os infelizes, os carentes, os excluídos.
"O "povo" carrega, assim, desde sempre, em si, a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído. Daí as contradições e as aporias às quais ele dá lugar toda vez que é evocado e posto em jogo na cena política. Ele é aquilo que já é desde sempre, e que deve, todavia, realizar-se; é a fonte pura de toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinir-se e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território."
A antiga divisão romana entre "populus" e "plebs" continua presente, mesmo quando entra em cena a figura do povo como depositário único da soberania. O que está em jogo, sempre, para a modernidade é a tentativa de construir um povo sem fratura, o que faz com que toda ação política moderna se transforme em biopolítica. E quais são os alvos dessa biopolítica? Os miseráveis, os infelizes, os excluídos, sob todas as formas imagináveis.
"Esta tentativa mancomuna, segundo modalidades e horizontes diversos, direita e esquerda, países capitalistas e países socialistas, unidos no projeto -em última análise vão, mas que se realizou parcialmente em todos os países industrializados - de produzir um povo uno e indiviso."
O que Agamben destaca é que o processo de inclusão da vida nua na política não é exclusividade dos regimes de exceção, mas está inscrito mesmo no conteúdo das "Declarações" dos direitos do homem e do cidadão, que inclui até o nascimento como categoria nova e que deve ser absorvida pelo espaço político-jurídico.
Aliás, "o princípio da natividade e o princípio da soberania, separados no Antigo Regime (onde o nascimento dava lugar somente ao "sujet", ao súdito), unem-se agora irrevogavelmente no corpo do "sujeito soberano" para constituir o fundamento do novo Estado-nação".

Paradigma da modernidade
É nessa perspectiva que um olhar sobre o campo de concentração assume um significado inteiramente novo. Ao introduzir-nos nessa zona de indiferenciação, na qual não se percebe a linha de demarcação entre inclusão e exclusão, que tem como paradigma o "homo sacer", Agamben nos apresenta os novos exemplos de homens sacros da modernidade, representados, sobretudo, pelos judeus, considerados como um "povo que se recusa a ser integrado no corpo político nacional", e que são "os representantes por excelência e quase o símbolo vivo do povo, daquela vida nua que a modernidade cria necessariamente no seu interior, mas cuja presença não mais consegue tolerar de modo algum".
Por isso mesmo, o novo paradigma da modernidade será o campo de concentração ou o campo de refugiados, que se inserem naquele limiar de indiferenciação, ao mesmo tempo de exclusão e inclusão no espaço político-jurídico. Basta-nos um olhar atento ao nosso redor para percebermos o quanto estamos cercados dessas zonas, nas quais se incluem vidas nuas matáveis.
É de todos esses limiares, partes constitutivas da filosofia, do direito e da política ocidentais, que Agamben nos fala nesse livro, ao mesmo tempo fascinante e desconcertante, porque nos obriga a repensar todas as categorias que até aqui haviam sustentado nosso universo teórico e nossas práticas de inserção no Estado de direito, ou então, para usarmos um termo tão em evidência, de condução para a cidadania.


Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política no departamento de filosofia da USP.

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