São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Os princípios estéticos do crítico Clement Greenberg

Feita em casa

Estética Doméstica
Clement Greenberg
Tradução: André Carone
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
286 págs., R$ 32,00

JEAN GALARD

Durante um quarto de século, a partir da Segunda Guerra Mundial, o crítico norte-americano Clement Greenberg emitiu juízos categóricos sobre a arte de seu tempo e sobre a arte do passado. Seu papel foi de primeira ordem, tanto para influenciar a cotação de certos artistas quanto para provocar polêmica a respeito de seus veredictos. Donde vinha seu poder? Sobre que saber, sobre qual dom, sobre que doutrina ou sobre que qualidades pessoais sua autoridade estava fundada?
No Brasil, dispõe-se, desde 1996, de uma coletânea de textos críticos de Greenberg, sob o título "Arte e Cultura" (Ática). A "clareza do olhar" de Greenberg foi então celebrada, ao mesmo tempo em que era observado um certo "dogmatismo" do autor ("Jornal de Resenhas", nš 22). Pouco depois, em 1997, apareceu oportunamente a obra coletiva "Clement Greenberg e o Debate Crítico" (Zahar), cuja primeira seção reproduz alguns textos teóricos do próprio Greenberg, permitindo entrever as razões possíveis de seus juízos peremptórios. Permanecia entretanto muito difícil captar o sistema de pensamento que legitimava posicionamentos tão drásticos.
Hoje estamos mais esclarecidos. "Estética Doméstica" se apresenta como uma exposição estruturada das reflexões teóricas de Greenberg. Na verdade, no que concerne à primeira parte, trata-se mais uma vez de ensaios sucessivos (1972-1979). Mas estes são a retomada refletida de um seminário em nove seções, organizado pelo Bennington College, Vermont, em 1971. Janice van Horne Greenberg confiou em 1999 à Oxford University Press a edição agrupada dos ensaios já publicados, assim como das nove intervenções até então inéditas do seminário, cada qual seguida da discussão de Greenberg com seu público. É este conjunto apaixonante, aparecido em inglês sob o título "Homemade Esthetics", que está agora disponível em português.

A experiência do valor
Estamos enfim na presença do sistema de pensamento de Clement Greenberg? Estamos de posse da chave de seus juízos artísticos? Dizê-lo seria exagerar, por duas razões. De um lado, ele mesmo escolheu, para sua exposição vindoura, esse título modesto: uma estética "feita em casa", isto é, "bricolada" artesanalmente, de modo pessoal, não ambicionando ser promulgada em praça pública. De outro lado, a idéia de elaborar um sistema conceitual é de todo contrária às intenções de Greenberg.
Um dos temas principais da exposição, com efeito, é que os juízos estéticos não podem ser comprovados nem demonstrados. Para Greenberg, a experiência da arte é, em essência, a experiência do valor. Porém, essa experiência consiste em juízos de valor intuídos, não ponderados. Os critérios do juízo estético não podem ser articulados, postos em palavras ou conceitos, não podem ser comunicados. "Só podem ser conhecidos por meio de seu afeto". Uma tal atitude anticonceitual poderia, em outros críticos, conduzir a uma posição subjetivista e mesmo desacreditar de antemão qualquer recurso ao discurso. Aliás Greenberg resvala esta posição quando escreve: "Nenhum juízo de valor de outra pessoa pode modificar ou deslocar o nosso".
Mas a recusa do subjetivismo é o outro grande tema desenvolvido neste livro. O juízo estético repousa sobre o "gosto". Ora, para Greenberg não pode haver dúvida sobre esse ponto: o gosto não é subjetivo, o gosto tem que ser objetivo. Sem esse pressuposto, diz ele, "passamos a aceitar absurdos".
Segundo Greenberg, a questão da objetividade do gosto infelizmente sempre foi evitada desde Kant. A própria noção de gosto foi abandonada, até rejeitada por certos artistas, considerada como irrelevante. No entanto, diz ele, o gosto continua a ser decisivo. Sua objetividade torna-se mesmo cada vez mais manifesta, entre o público culto, à medida que as razões não-estéticas (religiosas, políticas, nacionais, morais) do juízo perdem sua influência. Com uma fé inabalável na objetividade do gosto, Greenberg vai até a estimar que, se realmente formos atentos às obras, o acordo prevalecerá sempre sobre o desacordo, como testemunha a durabilidade dos juízos: "A objetividade do gosto está incontestavelmente provada pela presença de um consenso e por intermédio dele no decorrer do tempo".

Princípios e juízos
É a partir dessa "teoria", tão simples, para não dizer rudimentar, que Greenberg justifica seus juízos resolutamente favoráveis às obras de Jackson Pollock ou de Hans Hofman, como suas condenações inapeláveis de Marcel Duchamp ou de Jasper Johns. Certamente o livro é abundante em considerações múltiplas. Boa parte delas são agudas, esclarecedoras, brilhantemente expostas, por exemplo, sobre o "fator surpresa", sobre o "distanciamento estético", sobre a relação entre convenção e inovação ou entre "arte formalizada e arte crua", sobre a vanguarda e o academicismo. Entretanto, o que há de mais surpreendente nesse livro é a coabitação (a coexistência doméstica, poder-se-ia dizer) de princípios tão frágeis e juízos tão robustos. Tudo se passa, aliás, como se o próprio autor tivesse como fim tirar a limpo esse enigma. Sob o efeito da sedução dessas páginas, acabamos às vezes por perguntar se Greenberg, "muito simplesmente", não tem razão.
Se olharmos paciente e assiduamente as obras de arte, se lhes prestarmos atenção longa e autenticamente, talvez sejamos arrebatados pela evidência de sua exata qualidade. E, se estivermos então no reino da evidência, não haverá necessidade, com efeito, de demonstrações nem de conceitos e não haverá lugar tampouco para duvidar da objetividade de nosso juízo.
O problema é que Greenberg vai muito longe no uso das "evidências". Elas lhe permitem estabelecer hierarquias definitivas entre obras que tudo separam, suas épocas respectivas principalmente. Por exemplo, mesmo colocando Pollock muito alto na escala de valores, ele não tem nenhuma dúvida quanto ao fato de que "o "Três de Maio", de Goya, é melhor do que qualquer coisa que Pollock pudesse pintar". Parece-lhe entretanto que há Ticianos e Goyas ruins que Pollock supera. Ele sabe ("eu sei") que um bom David Smith poderia estar na companhia de Donatello. Juízos são assim decretados, classificações estabelecidas em virtude de um gosto de que Greenberg é o feliz detentor e que deveríamos todos partilhar, já que é objetivo, se exercêssemos melhor nosso olhar, numa familiaridade mais constante com as obras de arte.
Certamente hoje é fácil mostrar-se irônico diante dos juízos de Greenberg. Ele não soube, não pôde, não quis tirar as medidas da arte pop, do minimalismo, da arte conceitual. Tudo foi dito sobre suas cegueiras, seus "partis pris", seu vínculo esclerosado ao modernismo. É preciso ter em mente essas fraquezas para apreciar o profundo interesse de "Estética Doméstica".
Ao longo dessas páginas, um drama discretamente se desenrola. Quando o seminário de Bennington teve lugar, Greenberg tinha 62 anos. É pouco para alguém que iria viver mais 23 anos. Mas é muito para um crítico que está prestes a perder sua autoridade. Em 1971, Greenberg começava a ser ultrapassado pelos acontecimentos. "Estética Doméstica" faz pensar nos gestos de um sitiado que se entrincheira em suas últimas fortalezas.
A segunda parte do livro dá mais claramente essa impressão, porque o texto é mais próximo da improvisação e principalmente porque o debate com frequência parece a ponto de confundir o especialista. As questões do auditório são atribuídas ao "público", sem outra precisão, como se interlocutores desconhecidos se emprestassem a mesma máscara anônima para, um por vez, embaraçar Clement Greenberg, às vezes deixá-lo em maus lençóis.

Tom socrático
Há com frequência um tom socrático nesses diálogos, mas aqui são os discípulos que fazem observar ao mestre que ele parece ter caído em contradição. Essa situação em que se acha Greenberg incita-o às vezes a conclusões brutais. Por exemplo, devendo reconhecer que uma moldagem realizada por Jasper Johns era arte realmente, ele acrescenta: "Mas não era uma arte muito boa, e ponto final".
Mais frequentemente ele confessa a dificuldade que tem em se explicar, apesar de toda a eloquência de que dá provas aliás. Invoca sua intuição, mas confessa que não sabe traduzi-la em termos verbais. Teme a um só tempo ser mal compreendido e repetir o que já se sabe. Tem o sentimento de estar simultaneamente diante de um "truísmo" e de um "mistério".
Greenberg é um combatente sem armas. É desprovido de argumentos, de provas e mesmo de palavras adequadas. Ao mesmo tempo, não quer renunciar às evidências do gosto. Nisso, seu esforço é patético. E seu combate é estimável. No fundo, pode-se ter, em estética, uma posição mais honesta? Nele, o recurso é aliás frequente às virtudes morais, à coragem, à sinceridade.
O seminário propriamente dito, que ocupa a segunda parte da obra, é dividido em nove seções intituladas "Primeira Noite", "Segunda Noite" etc. Mais que aos diálogos platônicos, pensa-se então nas "Mil e Uma Noites", e o leitor, sem respirar, pergunta-se quanto tempo Sheherazade-Greenberg vai lograr manter em suspenso sua história do modernismo. Não se tem nenhuma vontade de ouvir, ao fim da nona noite, algum rei do pós-modernismo replicar-lhe por sua vez: "E ponto final".
Gostaríamos apenas que Greenberg fosse menos ligado às hierarquias, menos preocupado em enunciar juízos e veredictos, que deixasse pacificamente suceder outras histórias, sem ter a obrigação de logo se pronunciar sobre o valor delas. Mas já não seria Greenberg. Reticências...


Jean Galard é ensaísta e autor, entre outros livros, de "A Beleza do Gesto" (Edusp).
Tradução de Franklin de Mattos.


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