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Os direitos dos animais
A Vida dos Animais
J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3167-0801)
152 págs., R$ 22,00
RENATO DA SILVA QUEIROZ
As fronteiras entre humanos e outros animais têm
sido reduzidas à medida que se ampliam os avanços
científicos. Coube principalmente à genética demonstrar quão aparentados são os seres viventes do
planeta, a despeito de sua enorme variedade, evolutivamente moldada. Malgrado tais progressos, ainda
persistem crenças antigas, alimentadas na mesa farta
do etnocentrismo, que só fazem converter diferenças em desigualdades. Presume-se que a desqualificação do "outro", para degradá-lo numa pretensa
subumanidade, constitui uma manifestação universal. Contudo, como bem assinalou Oswaldo Frota-Pessoa, "o desenvolvimento da cultura dilatou o círculo da solidariedade, para abarcar sucessivamente a
família ampla, a tribo, a nação, a humanidade e até
os animais".
Árdua tem sido a tarefa dos antropólogos, habitualmente devotados ao desvendamento da mecânica do etnocentrismo, do preconceito e da discriminação, atentos às ocorrências em geral insidiosas
desses fenômenos socioculturais. Entretanto, ainda
mais renhidas costumam ser as lutas travadas no
combate ao antropocentrismo estreito, fundamento
da crueldade com que tratamos os outros animais.
As últimas décadas favoreceram a realização de
trabalhos notáveis sobre a vida animal. No campo da
primatologia, a propósito, são inestimáveis as contribuições Dian Fossey e Jane Goodall, cujas pesquisas entre gorilas e chimpanzés nas selvas africanas
nos levaram a adotar uma percepção muito mais
compreensiva desses nossos primos evolucionários
e a repensar a nossa própria condição animal.
Em "A Vida dos Animais", o laureado escritor sul-africano J.M. Coetzee, por meio de personagens fictícias concebidas em sua imaginação de romancista,
focaliza o relevante tema das relações assimétricas
estabelecidas entre humanos e outros animais. O livro reúne duas palestras proferidas pelo autor em
Princeton -"Os Filósofos e os Animais" e "Os Poetas e os Animais"- por ocasião das Tanner Lectures
em 1997-98, além de uma introdução de Amy Gutmann e comentários de quatro debatedores filiados
a diferentes nichos do saber acadêmico.
Elizabeth Costello, uma romancista, é a personagem-expositora de Coetzee. As palestras do autor
são, pois, narrativas ficcionais, e nelas o modo como
tratamos os animais é submetido a considerações
morais, filosóficas e estéticas. Costello admite que é
movida mais pela tentativa de salvação da própria alma do que pela moralidade; no entanto, suas falas
são denunciadoras dos horrores que envolvem a vida e a morte dos animais nas fazendas, nos abatedouros, nos barcos pesqueiros, nos laboratórios, nos
zoológicos etc. Trata-se, numa analogia por ela estabelecida com o holocausto, de verdadeiras "empresas de degradação, crueldade e morte", que rivalizam com os empreendimentos de matança do Terceiro Reich.
A crueldade com que tratamos os animais decorre
da concepção segundo a qual seriam eles autômatos
biológicos, desprovidos de alma e razão. Somente o
homem assemelha-se a Deus, é como Deus; os animais são como coisas, pois lhes faltaria consciência.
Questionando o princípio dos "velhos filósofos", para os quais a razão é a essência do Universo, a essência de Deus -"ao contrário, e de forma bem questionável, a razão parece ser a essência do pensamento humano; pior ainda, a essência de apenas uma
tendência do pensamento humano"-, Costello deixa o domínio das considerações éticas e migra para o
universo da poesia e do sentimento, decerto a morada da simpatia, "que, às vezes, nos permite partilhar
o ser do outro".
Não havendo limites para a imaginação simpatizante, sendo, portanto, possível pensar a existência
de um ser que jamais existiu -uma personagem de
ficção, por exemplo-, "sou capaz de pensar a existência de um morcego ou de um chimpanzé ou de
uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do
substrato da vida", prossegue Costello. Imaginação
generosa e simpatizante, fonte da compaixão que
conjura a preeminência do horror, pois este último
decorre do fato dos matadores, fechando seus corações, recusarem-se a se imaginar no lugar de suas vítimas.
Os animais têm direitos em relação a nós, além dos
deveres que temos em relação a eles, porque estar vivo é estar cheio de ser, plenamente, nas mais diversas
corporalidades de que a vida animal se revestiu. Estar vivo não é apenas pensar, mas desfrutar de uma
sensação de ser um corpo com membros que têm
uma extensão no espaço, no mundo, conclui Elizabeth Costello, opondo-se a Descartes.
Costello prossegue por meio de argumentos tomados de empréstimo a diversas áreas do saber, transitando com absoluta desenvoltura -liberdade concedida às personagens de ficção- pelos territórios
da ética, da moral e da estética. Questionada pelo
próprio filho -"você acredita mesmo que aulas de
poesia podem fechar matadouros?"-, responde
prontamente que não, mas isso pouco importa para
a obstinada personagem, cujas energias são gastas
no combate ao antropocentrismo mais obtuso, causa primeira de tantos sofrimentos que afligem o homem e os outros animais a ele submetidos.
Tomados os devidos cuidados, pode-se dizer que
"A Vida dos Animais" aproxima-se das melhores
obras antropológicas ao postular que somos capazes
dessa imaginação simpatizante com relação a todos
os animais, assim como, para o antropólogo, a percepção da humanidade do "outro" é o que nos torna
humanos, pois nos faz reconhecer no "outro" a nossa própria humanidade -desde que não nos afastemos do mundo animal, ressalvaria Elizabeth Costello, e com razão.
Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.
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