São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Os direitos dos animais

A Vida dos Animais
J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/3167-0801)
152 págs., R$ 22,00

RENATO DA SILVA QUEIROZ

As fronteiras entre humanos e outros animais têm sido reduzidas à medida que se ampliam os avanços científicos. Coube principalmente à genética demonstrar quão aparentados são os seres viventes do planeta, a despeito de sua enorme variedade, evolutivamente moldada. Malgrado tais progressos, ainda persistem crenças antigas, alimentadas na mesa farta do etnocentrismo, que só fazem converter diferenças em desigualdades. Presume-se que a desqualificação do "outro", para degradá-lo numa pretensa subumanidade, constitui uma manifestação universal. Contudo, como bem assinalou Oswaldo Frota-Pessoa, "o desenvolvimento da cultura dilatou o círculo da solidariedade, para abarcar sucessivamente a família ampla, a tribo, a nação, a humanidade e até os animais".
Árdua tem sido a tarefa dos antropólogos, habitualmente devotados ao desvendamento da mecânica do etnocentrismo, do preconceito e da discriminação, atentos às ocorrências em geral insidiosas desses fenômenos socioculturais. Entretanto, ainda mais renhidas costumam ser as lutas travadas no combate ao antropocentrismo estreito, fundamento da crueldade com que tratamos os outros animais.
As últimas décadas favoreceram a realização de trabalhos notáveis sobre a vida animal. No campo da primatologia, a propósito, são inestimáveis as contribuições Dian Fossey e Jane Goodall, cujas pesquisas entre gorilas e chimpanzés nas selvas africanas nos levaram a adotar uma percepção muito mais compreensiva desses nossos primos evolucionários e a repensar a nossa própria condição animal.
Em "A Vida dos Animais", o laureado escritor sul-africano J.M. Coetzee, por meio de personagens fictícias concebidas em sua imaginação de romancista, focaliza o relevante tema das relações assimétricas estabelecidas entre humanos e outros animais. O livro reúne duas palestras proferidas pelo autor em Princeton -"Os Filósofos e os Animais" e "Os Poetas e os Animais"- por ocasião das Tanner Lectures em 1997-98, além de uma introdução de Amy Gutmann e comentários de quatro debatedores filiados a diferentes nichos do saber acadêmico.
Elizabeth Costello, uma romancista, é a personagem-expositora de Coetzee. As palestras do autor são, pois, narrativas ficcionais, e nelas o modo como tratamos os animais é submetido a considerações morais, filosóficas e estéticas. Costello admite que é movida mais pela tentativa de salvação da própria alma do que pela moralidade; no entanto, suas falas são denunciadoras dos horrores que envolvem a vida e a morte dos animais nas fazendas, nos abatedouros, nos barcos pesqueiros, nos laboratórios, nos zoológicos etc. Trata-se, numa analogia por ela estabelecida com o holocausto, de verdadeiras "empresas de degradação, crueldade e morte", que rivalizam com os empreendimentos de matança do Terceiro Reich.
A crueldade com que tratamos os animais decorre da concepção segundo a qual seriam eles autômatos biológicos, desprovidos de alma e razão. Somente o homem assemelha-se a Deus, é como Deus; os animais são como coisas, pois lhes faltaria consciência. Questionando o princípio dos "velhos filósofos", para os quais a razão é a essência do Universo, a essência de Deus -"ao contrário, e de forma bem questionável, a razão parece ser a essência do pensamento humano; pior ainda, a essência de apenas uma tendência do pensamento humano"-, Costello deixa o domínio das considerações éticas e migra para o universo da poesia e do sentimento, decerto a morada da simpatia, "que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro".
Não havendo limites para a imaginação simpatizante, sendo, portanto, possível pensar a existência de um ser que jamais existiu -uma personagem de ficção, por exemplo-, "sou capaz de pensar a existência de um morcego ou de um chimpanzé ou de uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do substrato da vida", prossegue Costello. Imaginação generosa e simpatizante, fonte da compaixão que conjura a preeminência do horror, pois este último decorre do fato dos matadores, fechando seus corações, recusarem-se a se imaginar no lugar de suas vítimas.
Os animais têm direitos em relação a nós, além dos deveres que temos em relação a eles, porque estar vivo é estar cheio de ser, plenamente, nas mais diversas corporalidades de que a vida animal se revestiu. Estar vivo não é apenas pensar, mas desfrutar de uma sensação de ser um corpo com membros que têm uma extensão no espaço, no mundo, conclui Elizabeth Costello, opondo-se a Descartes.
Costello prossegue por meio de argumentos tomados de empréstimo a diversas áreas do saber, transitando com absoluta desenvoltura -liberdade concedida às personagens de ficção- pelos territórios da ética, da moral e da estética. Questionada pelo próprio filho -"você acredita mesmo que aulas de poesia podem fechar matadouros?"-, responde prontamente que não, mas isso pouco importa para a obstinada personagem, cujas energias são gastas no combate ao antropocentrismo mais obtuso, causa primeira de tantos sofrimentos que afligem o homem e os outros animais a ele submetidos.
Tomados os devidos cuidados, pode-se dizer que "A Vida dos Animais" aproxima-se das melhores obras antropológicas ao postular que somos capazes dessa imaginação simpatizante com relação a todos os animais, assim como, para o antropólogo, a percepção da humanidade do "outro" é o que nos torna humanos, pois nos faz reconhecer no "outro" a nossa própria humanidade -desde que não nos afastemos do mundo animal, ressalvaria Elizabeth Costello, e com razão.


Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.


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