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Sociólogo estuda a composição social de nossa Câmara na atual legislatura
Quem controla o Brasil
Partidos, Ideologia e
Composição Social - Um
Estudo das Bancadas
Partidárias na Câmara
de Deputados
Leôncio Martins Rodrigues
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
242 págs., R$ 30,00
RENATO LESSA
A acreditarmos em John Ford -o que,
de resto, sempre é recomendável-,
Wyatt Earp teria sido um dos inspiradores ou fundadores da sociologia norte-americana. Em tom moderado, é possível, pelo menos, atribuir ao personagem
impecavelmente estrelado por Henry
Fonda em "My Darling Clementine"
("Paixão dos Fortes") uma grande sensibilidade sociológica, em tempos que em
muito antecederam à institucionalização
da disciplina. Para demonstrar essa suposição, vamos aos fatos.
As malignas artes do acaso fizeram do
famoso ex-delegado de Dodge City, a caminho do Norte, conduzindo uma grande manada, xerife da adorável cidade de
Tombstone. Ao aceitar a estrela, oferecida pelas autoridades locais, Wyatt teria
formulado ao prefeito duas indagações
de forte conteúdo sociológico, ambas decisivas para a compreensão da desordem
que imperava naquele lugar de tão sublime toponímia: (1) "Quem controla o jogo?"; (2) "Quem controla o gado?".
As respostas fornecidas pelo apavorado
chefe do poder executivo local -respectivamente, (1) o tísico Doc Holliday (Victor Mature) e (2) o clan Cassidy- descortinam, por inteiro e para os que tiveram o privilégio de assistir ao magnífico
western de John Ford, a morfologia social
de Tombstone. Mais do que uma lição de
esclarecimento a respeito das bases sociais daquela cidade, a postura cognitiva
adotada por Wyatt Earp mostra a medida
em que a perspectiva sociológica depende da formulação precisa e consistente de
perguntas. Não sendo o mundo social
um paraíso cognitivo de objetos auto-explicativos -à moda das etiquetas coladas em amuletos de museu, segundo a
inspiradora imagem de Willard V. Quine-, sua compreensão exige a operação
de um ânimo indagador.
A importância das instituições
A ciência política brasileira, na última
década, foi marcada por impressionante
avanço no entendimento da dinâmica e
do modo de operação das instituições
políticas. À célebre indagação contida no
título de uma coletânea editada por dois
cientistas políticos da Brokings Institution, Kent Weaver e Bert Rockman, em
1993 -"Do Institutions Matter?" ("As
Instituições têm Importância?")-, a
maioria dos cientistas políticos brasileiros reagiu de forma positiva. Sim, elas
importam, nos dizem eles, e as tentativas
de investigar seu enraizamento social e
sua dependência com relação a processos
históricos aparecem como insuficientes
para detectar o modo pelo qual funcionam.
A virada institucionalista no campo da
ciência política brasileira não pode, contudo, ser debitada na conta exclusiva da
forte influência exercida sobre os politólogos locais de paradigmas e problemas
desenvolvidos em outras paragens. Se essa influência é forte, as condições de recepção também possuem forte relevância.
É importante considerar, por um lado,
o esgotamento das formas tradicionais de
explicação dos fenômenos políticos a
partir de dimensões exclusivamente societais. Na literatura brasileira, esses esforços sociológicos e históricos de compreensão do âmbito político, com forte
influência do marxismo e de modelos de
extração culturalista, acabaram por gerar
narrativas carregadas paradoxalmente de
determinismo e de indeterminação, já
que em muitos casos explicações infra-estruturais semelhantes foram empregadas para explicar fenômenos políticos
díspares.
Nessa perspectiva, a dimensão política
é representada como o aspecto visível de
um drama cuja lógica não se apresenta a
olhos deseducados. Assim, a virada institucionalista pode ser percebida como
uma reação a essa pretensão de explicação externa e exaustiva, indicando
-com forte pertinência- que os modos
internos de operação das instituições fazem diferença. É importante registrar e
reconhecer que essa ênfase incorporou-se ao patrimônio cognitivo da ciência política brasileira.
Por outro lado, a forma histórica pela
qual a transição para a democracia no
Brasil acabou por efetivar-se, nos anos
80, pôs em relevo o papel da dimensão
institucional. Embora movimentos societais tenham cumprido sua parte, o
processo de superação do regime autoritário foi marcado predominantemente
por uma acumulação de forças políticas,
nos marcos institucionais então vigentes.
O esforço de explicação desenvolvido por
analistas e politólogos foi como obrigado
a reconhecer a precedência e a evidência
das variáveis de natureza institucional.
Isso fez com que, desde o seu início, o
experimento democrático brasileiro pós-85 fosse acompanhado pelos especialistas
tendo como foco tais aspectos. Não é por
outra razão que, no final dos anos 80 e
durante parte da década de 90, as questões mais relevantes consideradas pelos
politólogos brasileiros estiveram quase
sempre associadas a temas tais como sistema de governo (ver a querela parlamentarismo versus presidencialismo) ou
sistema de representação política (proporcionalistas versus majoritaristas, nesse caso). Analisar o processo democrático acabou por tornar-se quase sinônimo
de acompanhar o desempenho da esfera
institucional.
O jogo e o gado
O livro de Leôncio Martins Rodrigues
tem, além de outras virtudes, o mérito de
introduzir no debate questões que nos
evocam a sensibilidade de Wyatt Earp.
Ou seja, se sabemos tanto a respeito das
instituições e se estamos convencidos de
sua centralidade, ainda assim é o caso de
perguntar: quem controla o jogo e quem
controla o gado? Em outros termos, a
pesquisa realizada por Leôncio Martins
Rodrigues reinscreve na reflexão social
brasileira a relevância de indagações provenientes do campo da boa sociologia
política. Trata-se, portanto, de refazer os
vínculos entre a perspectiva sociológica e
a análise política. Em um certo sentido,
sociólogos e cientistas políticos deram-se
as costas e mergulharam, cada um à sua
moda, em infindáveis exercícios isolados
de mensuração, sem que as descobertas
de cada campo pudessem iluminar problemas detectados no outro.
O livro de Leôncio Martins Rodrigues
-nosso mais importante sociólogo político- não é obra isolada na trajetória intelectual do autor. Ele foi precedido por
outras incursões suas no campo da sociologia política, das quais cabe destacar o
clássico e magistral estudo sobre o Partido Comunista Brasileiro -no qual a
análise combina de modo modelar dimensões históricas, políticas e sociológicas- e a análise sobre a composição social do Congresso Constituinte, eleito em
1986.
"Partidos, Ideologia e Composição Social - Um Estudo das Bancadas Partidárias na Câmara de Deputados" é o resultado de exaustiva pesquisa realizada a
respeito da 51ª Legislatura (1999-2003) da
câmara baixa brasileira. Tendo como
fontes principais o repertório biográfico
dos deputados brasileiros, editado pela
própria Câmara, e 401 declarações de
bens de parlamentares, a investigação
pretendeu, segundo revela seu autor, detectar a composição social das bancadas
dos diferentes partidos e abordar a dimensão partidária pelo ângulo de suas
bases regionais e sociais. Além disso, a
pesquisa procurou captar as diferenças
sócio-profissionais existentes entre os
partidos.
Os procedimentos de aproximação do
tema, adotados no livro, devem ser destacados. A partir da pergunta "Os partidos
brasileiros representam algo?", Leôncio
Martins Rodrigues presta sincera e minuciosa homenagem aos politólogos institucionalistas brasileiros que acabaram
por refutar e desconstruir grande parte
do arsenal de superstições institucionais
que têm movido diferentes analistas
-notadamente norte-americanos-,
militantemente devotados à tarefa de demonstrar a inviabilidade institucional da
democracia no Brasil, país no qual vigora
bizarra cláusula que faz com que os mais
votados vençam as eleições.
Questões inexploradas
Na avaliação de Leôncio Martins Rodrigues, o antídoto interposto por parte da
análise institucionalista brasileira logrou
demonstrar a consistência interna do sistema partidário pátrio, assim como a lógica de sua operação na arena legislativa.
No entanto, questões fundamentais permanecem inexploradas, sobretudo as
que incidem sobre os nexos existentes
entre o universo partidário e congressual
e o mundo social.
O primeiro passo realizado pela pesquisa foi a demonstração de que os partidos
brasileiros fazem sentido, para além do
cenário estritamente legislativo. Assim, o
terceiro capítulo do livro indica a existência, ao longo do eixo esquerda-centro-direita de uma distribuição sociológica
compatível com padrões, digamos, "normais". Ou seja, é maior a presença de empresários à direita do espectro político,
enquanto que ao caminharmos na direção das bancadas de esquerda encontraremos, nas palavras do autor, "proporção
de trabalhadores manuais e empregados
não manuais muito mais elevada". Quanto à distribuição dos parlamentares, no
mesmo eixo, em termos de patrimônio
pessoal, a pesquisa revela que o PT, por
exemplo, tem cerca de 80% de seus deputados na mais baixa faixa patrimonial,
enquanto que o PPB, na outra ponta do
espectro, tem cerca de 67% de sua bancada incluída nas faixas média-alta e alta.
A análise de Leôncio Martins Rodrigues acrescenta, ainda, outras dimensões
importantes. Além das correlações sociais, ocupacionais e patrimoniais, há importantes referências ao nível de instrução, à vinculação regional e aos formatos
partidários regionais. Ao fim do texto, o
leitor encontrará um argumento forte e
bem fundamentado, a indicar a presença
no país de um processo de consolidação
do sistema partidário. Ao contrário das
superstições institucionais que, com frequência, nos assolam, o país, a despeito
de inúmeras bizarrias, possui aspectos
"normais". Nossos partidos, além de
apresentar desempenho consistente na
arena parlamentar, possuem relações de
correspondência sociológica, do ponto
de vista da composição de suas bancadas
legislativas.
A leitura desse livro é obrigatória e dotada de múltipla utilidade. Em termos
imediatos, trata-se de uma tentativa de
compreensão das bases sociais do parlamento brasileiro. Escrita de forma clara,
sem esoterismo vernacular e sem malabarismos metodológicos, o texto, ademais, cumpre a função pedagógica de expor suas descobertas em linguagem acessível ao não-especialista e ao público interessado em política, sem, com isso, perder rigor em termos de consistência empírica e metodológica.
Creio, no entanto, que a maior utilidade
reside na demonstração de que não fará
mal à ciência política brasileira um retorno à Tombstone. É urgente "re-sociologizar" nossas análises políticas, assim como é fundamental incorporar a perspectiva histórica em nossas investigações.
Em suma, mais do que nunca é fundamental seguir os ensinamentos de Wyatt
Earp, seguir indagando: Quem controla o
jogo? Quem controla o gado?
Renato Lessa é cientista político e professor titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.
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