São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Sociólogo estuda a composição social de nossa Câmara na atual legislatura

Quem controla o Brasil

Partidos, Ideologia e Composição Social - Um Estudo das Bancadas Partidárias na Câmara de Deputados
Leôncio Martins Rodrigues
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
242 págs., R$ 30,00

RENATO LESSA

A acreditarmos em John Ford -o que, de resto, sempre é recomendável-, Wyatt Earp teria sido um dos inspiradores ou fundadores da sociologia norte-americana. Em tom moderado, é possível, pelo menos, atribuir ao personagem impecavelmente estrelado por Henry Fonda em "My Darling Clementine" ("Paixão dos Fortes") uma grande sensibilidade sociológica, em tempos que em muito antecederam à institucionalização da disciplina. Para demonstrar essa suposição, vamos aos fatos.
As malignas artes do acaso fizeram do famoso ex-delegado de Dodge City, a caminho do Norte, conduzindo uma grande manada, xerife da adorável cidade de Tombstone. Ao aceitar a estrela, oferecida pelas autoridades locais, Wyatt teria formulado ao prefeito duas indagações de forte conteúdo sociológico, ambas decisivas para a compreensão da desordem que imperava naquele lugar de tão sublime toponímia: (1) "Quem controla o jogo?"; (2) "Quem controla o gado?".
As respostas fornecidas pelo apavorado chefe do poder executivo local -respectivamente, (1) o tísico Doc Holliday (Victor Mature) e (2) o clan Cassidy- descortinam, por inteiro e para os que tiveram o privilégio de assistir ao magnífico western de John Ford, a morfologia social de Tombstone. Mais do que uma lição de esclarecimento a respeito das bases sociais daquela cidade, a postura cognitiva adotada por Wyatt Earp mostra a medida em que a perspectiva sociológica depende da formulação precisa e consistente de perguntas. Não sendo o mundo social um paraíso cognitivo de objetos auto-explicativos -à moda das etiquetas coladas em amuletos de museu, segundo a inspiradora imagem de Willard V. Quine-, sua compreensão exige a operação de um ânimo indagador.

A importância das instituições
A ciência política brasileira, na última década, foi marcada por impressionante avanço no entendimento da dinâmica e do modo de operação das instituições políticas. À célebre indagação contida no título de uma coletânea editada por dois cientistas políticos da Brokings Institution, Kent Weaver e Bert Rockman, em 1993 -"Do Institutions Matter?" ("As Instituições têm Importância?")-, a maioria dos cientistas políticos brasileiros reagiu de forma positiva. Sim, elas importam, nos dizem eles, e as tentativas de investigar seu enraizamento social e sua dependência com relação a processos históricos aparecem como insuficientes para detectar o modo pelo qual funcionam.
A virada institucionalista no campo da ciência política brasileira não pode, contudo, ser debitada na conta exclusiva da forte influência exercida sobre os politólogos locais de paradigmas e problemas desenvolvidos em outras paragens. Se essa influência é forte, as condições de recepção também possuem forte relevância.
É importante considerar, por um lado, o esgotamento das formas tradicionais de explicação dos fenômenos políticos a partir de dimensões exclusivamente societais. Na literatura brasileira, esses esforços sociológicos e históricos de compreensão do âmbito político, com forte influência do marxismo e de modelos de extração culturalista, acabaram por gerar narrativas carregadas paradoxalmente de determinismo e de indeterminação, já que em muitos casos explicações infra-estruturais semelhantes foram empregadas para explicar fenômenos políticos díspares.
Nessa perspectiva, a dimensão política é representada como o aspecto visível de um drama cuja lógica não se apresenta a olhos deseducados. Assim, a virada institucionalista pode ser percebida como uma reação a essa pretensão de explicação externa e exaustiva, indicando -com forte pertinência- que os modos internos de operação das instituições fazem diferença. É importante registrar e reconhecer que essa ênfase incorporou-se ao patrimônio cognitivo da ciência política brasileira.
Por outro lado, a forma histórica pela qual a transição para a democracia no Brasil acabou por efetivar-se, nos anos 80, pôs em relevo o papel da dimensão institucional. Embora movimentos societais tenham cumprido sua parte, o processo de superação do regime autoritário foi marcado predominantemente por uma acumulação de forças políticas, nos marcos institucionais então vigentes. O esforço de explicação desenvolvido por analistas e politólogos foi como obrigado a reconhecer a precedência e a evidência das variáveis de natureza institucional.
Isso fez com que, desde o seu início, o experimento democrático brasileiro pós-85 fosse acompanhado pelos especialistas tendo como foco tais aspectos. Não é por outra razão que, no final dos anos 80 e durante parte da década de 90, as questões mais relevantes consideradas pelos politólogos brasileiros estiveram quase sempre associadas a temas tais como sistema de governo (ver a querela parlamentarismo versus presidencialismo) ou sistema de representação política (proporcionalistas versus majoritaristas, nesse caso). Analisar o processo democrático acabou por tornar-se quase sinônimo de acompanhar o desempenho da esfera institucional.

O jogo e o gado
O livro de Leôncio Martins Rodrigues tem, além de outras virtudes, o mérito de introduzir no debate questões que nos evocam a sensibilidade de Wyatt Earp. Ou seja, se sabemos tanto a respeito das instituições e se estamos convencidos de sua centralidade, ainda assim é o caso de perguntar: quem controla o jogo e quem controla o gado? Em outros termos, a pesquisa realizada por Leôncio Martins Rodrigues reinscreve na reflexão social brasileira a relevância de indagações provenientes do campo da boa sociologia política. Trata-se, portanto, de refazer os vínculos entre a perspectiva sociológica e a análise política. Em um certo sentido, sociólogos e cientistas políticos deram-se as costas e mergulharam, cada um à sua moda, em infindáveis exercícios isolados de mensuração, sem que as descobertas de cada campo pudessem iluminar problemas detectados no outro.
O livro de Leôncio Martins Rodrigues -nosso mais importante sociólogo político- não é obra isolada na trajetória intelectual do autor. Ele foi precedido por outras incursões suas no campo da sociologia política, das quais cabe destacar o clássico e magistral estudo sobre o Partido Comunista Brasileiro -no qual a análise combina de modo modelar dimensões históricas, políticas e sociológicas- e a análise sobre a composição social do Congresso Constituinte, eleito em 1986.
"Partidos, Ideologia e Composição Social - Um Estudo das Bancadas Partidárias na Câmara de Deputados" é o resultado de exaustiva pesquisa realizada a respeito da 51ª Legislatura (1999-2003) da câmara baixa brasileira. Tendo como fontes principais o repertório biográfico dos deputados brasileiros, editado pela própria Câmara, e 401 declarações de bens de parlamentares, a investigação pretendeu, segundo revela seu autor, detectar a composição social das bancadas dos diferentes partidos e abordar a dimensão partidária pelo ângulo de suas bases regionais e sociais. Além disso, a pesquisa procurou captar as diferenças sócio-profissionais existentes entre os partidos.
Os procedimentos de aproximação do tema, adotados no livro, devem ser destacados. A partir da pergunta "Os partidos brasileiros representam algo?", Leôncio Martins Rodrigues presta sincera e minuciosa homenagem aos politólogos institucionalistas brasileiros que acabaram por refutar e desconstruir grande parte do arsenal de superstições institucionais que têm movido diferentes analistas -notadamente norte-americanos-, militantemente devotados à tarefa de demonstrar a inviabilidade institucional da democracia no Brasil, país no qual vigora bizarra cláusula que faz com que os mais votados vençam as eleições.

Questões inexploradas
Na avaliação de Leôncio Martins Rodrigues, o antídoto interposto por parte da análise institucionalista brasileira logrou demonstrar a consistência interna do sistema partidário pátrio, assim como a lógica de sua operação na arena legislativa. No entanto, questões fundamentais permanecem inexploradas, sobretudo as que incidem sobre os nexos existentes entre o universo partidário e congressual e o mundo social.
O primeiro passo realizado pela pesquisa foi a demonstração de que os partidos brasileiros fazem sentido, para além do cenário estritamente legislativo. Assim, o terceiro capítulo do livro indica a existência, ao longo do eixo esquerda-centro-direita de uma distribuição sociológica compatível com padrões, digamos, "normais". Ou seja, é maior a presença de empresários à direita do espectro político, enquanto que ao caminharmos na direção das bancadas de esquerda encontraremos, nas palavras do autor, "proporção de trabalhadores manuais e empregados não manuais muito mais elevada". Quanto à distribuição dos parlamentares, no mesmo eixo, em termos de patrimônio pessoal, a pesquisa revela que o PT, por exemplo, tem cerca de 80% de seus deputados na mais baixa faixa patrimonial, enquanto que o PPB, na outra ponta do espectro, tem cerca de 67% de sua bancada incluída nas faixas média-alta e alta.
A análise de Leôncio Martins Rodrigues acrescenta, ainda, outras dimensões importantes. Além das correlações sociais, ocupacionais e patrimoniais, há importantes referências ao nível de instrução, à vinculação regional e aos formatos partidários regionais. Ao fim do texto, o leitor encontrará um argumento forte e bem fundamentado, a indicar a presença no país de um processo de consolidação do sistema partidário. Ao contrário das superstições institucionais que, com frequência, nos assolam, o país, a despeito de inúmeras bizarrias, possui aspectos "normais". Nossos partidos, além de apresentar desempenho consistente na arena parlamentar, possuem relações de correspondência sociológica, do ponto de vista da composição de suas bancadas legislativas.
A leitura desse livro é obrigatória e dotada de múltipla utilidade. Em termos imediatos, trata-se de uma tentativa de compreensão das bases sociais do parlamento brasileiro. Escrita de forma clara, sem esoterismo vernacular e sem malabarismos metodológicos, o texto, ademais, cumpre a função pedagógica de expor suas descobertas em linguagem acessível ao não-especialista e ao público interessado em política, sem, com isso, perder rigor em termos de consistência empírica e metodológica.
Creio, no entanto, que a maior utilidade reside na demonstração de que não fará mal à ciência política brasileira um retorno à Tombstone. É urgente "re-sociologizar" nossas análises políticas, assim como é fundamental incorporar a perspectiva histórica em nossas investigações. Em suma, mais do que nunca é fundamental seguir os ensinamentos de Wyatt Earp, seguir indagando: Quem controla o jogo? Quem controla o gado?


Renato Lessa é cientista político e professor titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.

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