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Três ensaios de Meyer Schapiro sobre Picasso
O estilo de Picasso
A Unidade da Arte
de Picasso
Meyer Schapiro
Tradução: Ana Luiza Dantas Borges
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
256 págs., R$ 45,00
VICTOR KNOLL
Obra póstuma "A Unidade da Arte de Picasso", de
Meyer Schapiro, reúne três ensaios escritos em épocas diferentes sobre o pintor que ora figura na galeria
dos artistas franceses -artífice do cubismo ao lado
de Braque-, ora é reconhecido entre os espanhóis
-o criador de "Guernica", denúncia dos sofrimentos impostos pela Guerra Civil. Trata-se da ordenação de apontamentos destinados a apoiar exposições orais em conferências e seminários sobre a obra
de Picasso. O livro leva o título do primeiro texto.
Talvez, o mais ambicioso, pois enfrenta uma opinião
corrente, de algum modo já com ares de posição indiscutível, que reconhece a diversidade estilística e
temática da obra do artista franco-espanhol. Desafios semelhantes, mas não tão controversos, ocupam
os outros dois ensaios. Vejamos.
Um propósito comum perpassa o livro, conferindo-lhe unidade: os textos procuram desfazer -ou
mesmo contestar- três equívocos.
O primeiro, já explícito no título do ensaio, procura mostrar que a obra de Picasso é detentora de unidade, desde que a percorramos em todo o seu arco.
Os diversos estilos ou projetos pictóricos aos quais o
artista se entregou podem ser apreciados sob uma
luz comum. "Assim, há dois tipos de transformação:
da realidade para a abstração e da abstração para a
realidade. Picasso é dotado para os dois, tem pleno
domínio deles; é capaz de explorá-los e produzir milhares de tipos diferentes de pinturas por meio dessa
descoberta da reversibilidade dos processos de
transformação na arte."
Eis aí o que confere unidade à sua obra: a transformação da figura em abstração e da abstração em figura. Esse processo de transformação é o estilo, é o
projeto pictórico de Picasso. Schapiro sustenta essa
tese mediante o acompanhamento de sua produção
desde as primeiras obras, em 1901, até fins dos anos
50.
O segundo ensaio, o mais longo, ataca as relações
entre arte e ciência. De fato, tais relações podem ser
vistas em determinadas obras ou mesmo em certas
conjunturas históricas. A pintura renascentista é
sempre o exemplo lembrado. Há quem tenha querido estabelecer uma continuidade entre a teoria da
relatividade e o cubismo. Ora, assegura Schapiro, estabelecer um suposto vínculo acerca da concepção
do real em Picasso e Einstein não é o caso. A mera
contemporaneidade das revoluções não as torna irmãs. Cubismo na arte e teoria da relatividade na
ciência, cada uma em seu âmbito, dão conta de realidades distintas.
A estética de Guernica
Por fim, o terceiro equívoco: "Guernica". Por força
do tema dessa obra e da circunstância em que foi
criada, cristalizou-se a tendência em vê-la como um
libelo político. Que tenha o componente político
quanto ao tema é certo; mas não é certo reduzi-la ao
político. "Guernica" está inserida em uma "história
estética".
Schapiro procurou desfazer equívocos que podem
ser vistos como uma tentativa de enfrentar três preconceitos. O primeiro enfrentamento -a busca do
reconhecimento de unidade na obra de Picasso- é
ousado; o segundo -não confundir os propósitos
da arte de Picasso e a visão einsteiniana do Universo- é clareza e discernimento críticos; o terceiro
-despolitizar "Guernica"- é correr o risco de ser
alvejado pelas "patrulhas ideológicas".
Assim, enquanto o primeiro ensaio, que procura
mostrar a unidade da obra de Picasso, é certamente o
mais ambicioso, a engenharia crítica de Schapiro
aplicada a "Guernica" é sem dúvida a mais delicada.
Pois, apesar da virtude estética -aliás, incessantemente enaltecida-, "Guernica" sempre carregou
um peso ideológico e, assim, sempre foi vista como
um grito lancinante contra o despotismo. Entretanto, com muita habilidade e paciência crítica, Schapiro separa o joio do trigo. Temos a oportunidade de
ver como "Guernica" se inscreve na evolução da
obra de Picasso, segundo soluções formais e temáticas quanto à construção da figura. O assunto "cavalo", por exemplo, já está presente na obra do artista
desde 1906 e sofre um desenvolvimento formal, ao
longo dos 30 anos que se seguem, que resulta no modo como é tratado em "Guernica". O mesmo vale para a figura do touro.
Dessa maneira, Schapiro procura denunciar o
equívoco presente na tendência de considerar
"Guernica" como uma obra isolada, de modo que o
aspecto político passa a dominar a sua contemplação. Apesar do caráter político do tema, essa pintura
está inserida dentro da trajetória da produção artística de Picasso. E essa trajetória não pode ser minimizada e muito menos abafada pelo sentido político da
temática. Trata-se de uma obra que tem uma coerência formal interna ao desenvolvimento da obra do
pintor e em particular em relação à figuração. Ainda
aqui se trata da unidade da obra de Picasso. A insistência no caráter político da obra, observa Schapiro,
desvia a atenção do compromisso estético, o qual,
afinal, deve ter prioridade, pois, antes de tudo, estamos diante de uma obra de arte. De resto, o crítico
salienta que "Guernica" representa em primeiro lugar um extraordinário avanço formal na trajetória
picassiana.
Já o ensaio "Einstein e o Cubismo: Ciência e Arte"
tem um caráter técnico. Trata-se de mostrar que a relação espaço-tempo própria da teoria da relatividade
não corresponde ao desmembramento do objeto e à
superposição de planos na construção da imagem
realizados no cubismo. A tese desse ensaio poderia
encontrar a seguinte formulação: o cubismo não é
uma ilustração da teoria da relatividade ou, ainda,
não é a figuração da quarta dimensão. Cada qual em
seu âmbito, Picasso e Einstein realizaram projetos
autônomos. "Ao rejeitar a perspectiva matemática
da arte renascentista, Braque e Picasso não estavam
tentando substituí-la por outro sistema perspectivo
que representasse uma forma diferente do espaço
real ou imaginário."
Schapiro chama a atenção para o seguinte fato: enquanto a teoria de Einstein estabelece uma nova correlação entre espaço-tempo no Universo, a fragmentação do objeto no cubismo ainda parte de uma realidade vista a partir de três dimensões, o que na verdade reafirma a natureza bidimensional -e espacial- da representação pictórica.
A reflexão de Schapiro na condução de sua argumentação está sempre referida a uma cerrada análise
de obras. Nada é afirmado que não possa ser constatado em determinada pintura, desenho, esboço ou
escultura. Essa prática confere às suas interpretações
notável consistência crítica. O leitor, mesmo que de
início reticente -em particular quanto à tese relativa ao reconhecimento de unidade na obra de Picasso-, aos poucos, por força da constatação das afirmações na obra, acaba por ceder à sua argumentação. Ou, ao menos, por tomá-la como razoável.
Victor Knoll é professor de estética do departamento de filosofia
da USP.
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