São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Três ensaios de Meyer Schapiro sobre Picasso

O estilo de Picasso

A Unidade da Arte de Picasso
Meyer Schapiro
Tradução: Ana Luiza Dantas Borges
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
256 págs., R$ 45,00

VICTOR KNOLL

Obra póstuma "A Unidade da Arte de Picasso", de Meyer Schapiro, reúne três ensaios escritos em épocas diferentes sobre o pintor que ora figura na galeria dos artistas franceses -artífice do cubismo ao lado de Braque-, ora é reconhecido entre os espanhóis -o criador de "Guernica", denúncia dos sofrimentos impostos pela Guerra Civil. Trata-se da ordenação de apontamentos destinados a apoiar exposições orais em conferências e seminários sobre a obra de Picasso. O livro leva o título do primeiro texto. Talvez, o mais ambicioso, pois enfrenta uma opinião corrente, de algum modo já com ares de posição indiscutível, que reconhece a diversidade estilística e temática da obra do artista franco-espanhol. Desafios semelhantes, mas não tão controversos, ocupam os outros dois ensaios. Vejamos.
Um propósito comum perpassa o livro, conferindo-lhe unidade: os textos procuram desfazer -ou mesmo contestar- três equívocos.
O primeiro, já explícito no título do ensaio, procura mostrar que a obra de Picasso é detentora de unidade, desde que a percorramos em todo o seu arco. Os diversos estilos ou projetos pictóricos aos quais o artista se entregou podem ser apreciados sob uma luz comum. "Assim, há dois tipos de transformação: da realidade para a abstração e da abstração para a realidade. Picasso é dotado para os dois, tem pleno domínio deles; é capaz de explorá-los e produzir milhares de tipos diferentes de pinturas por meio dessa descoberta da reversibilidade dos processos de transformação na arte."
Eis aí o que confere unidade à sua obra: a transformação da figura em abstração e da abstração em figura. Esse processo de transformação é o estilo, é o projeto pictórico de Picasso. Schapiro sustenta essa tese mediante o acompanhamento de sua produção desde as primeiras obras, em 1901, até fins dos anos 50.
O segundo ensaio, o mais longo, ataca as relações entre arte e ciência. De fato, tais relações podem ser vistas em determinadas obras ou mesmo em certas conjunturas históricas. A pintura renascentista é sempre o exemplo lembrado. Há quem tenha querido estabelecer uma continuidade entre a teoria da relatividade e o cubismo. Ora, assegura Schapiro, estabelecer um suposto vínculo acerca da concepção do real em Picasso e Einstein não é o caso. A mera contemporaneidade das revoluções não as torna irmãs. Cubismo na arte e teoria da relatividade na ciência, cada uma em seu âmbito, dão conta de realidades distintas.

A estética de Guernica
Por fim, o terceiro equívoco: "Guernica". Por força do tema dessa obra e da circunstância em que foi criada, cristalizou-se a tendência em vê-la como um libelo político. Que tenha o componente político quanto ao tema é certo; mas não é certo reduzi-la ao político. "Guernica" está inserida em uma "história estética".
Schapiro procurou desfazer equívocos que podem ser vistos como uma tentativa de enfrentar três preconceitos. O primeiro enfrentamento -a busca do reconhecimento de unidade na obra de Picasso- é ousado; o segundo -não confundir os propósitos da arte de Picasso e a visão einsteiniana do Universo- é clareza e discernimento críticos; o terceiro -despolitizar "Guernica"- é correr o risco de ser alvejado pelas "patrulhas ideológicas".
Assim, enquanto o primeiro ensaio, que procura mostrar a unidade da obra de Picasso, é certamente o mais ambicioso, a engenharia crítica de Schapiro aplicada a "Guernica" é sem dúvida a mais delicada. Pois, apesar da virtude estética -aliás, incessantemente enaltecida-, "Guernica" sempre carregou um peso ideológico e, assim, sempre foi vista como um grito lancinante contra o despotismo. Entretanto, com muita habilidade e paciência crítica, Schapiro separa o joio do trigo. Temos a oportunidade de ver como "Guernica" se inscreve na evolução da obra de Picasso, segundo soluções formais e temáticas quanto à construção da figura. O assunto "cavalo", por exemplo, já está presente na obra do artista desde 1906 e sofre um desenvolvimento formal, ao longo dos 30 anos que se seguem, que resulta no modo como é tratado em "Guernica". O mesmo vale para a figura do touro.
Dessa maneira, Schapiro procura denunciar o equívoco presente na tendência de considerar "Guernica" como uma obra isolada, de modo que o aspecto político passa a dominar a sua contemplação. Apesar do caráter político do tema, essa pintura está inserida dentro da trajetória da produção artística de Picasso. E essa trajetória não pode ser minimizada e muito menos abafada pelo sentido político da temática. Trata-se de uma obra que tem uma coerência formal interna ao desenvolvimento da obra do pintor e em particular em relação à figuração. Ainda aqui se trata da unidade da obra de Picasso. A insistência no caráter político da obra, observa Schapiro, desvia a atenção do compromisso estético, o qual, afinal, deve ter prioridade, pois, antes de tudo, estamos diante de uma obra de arte. De resto, o crítico salienta que "Guernica" representa em primeiro lugar um extraordinário avanço formal na trajetória picassiana.
Já o ensaio "Einstein e o Cubismo: Ciência e Arte" tem um caráter técnico. Trata-se de mostrar que a relação espaço-tempo própria da teoria da relatividade não corresponde ao desmembramento do objeto e à superposição de planos na construção da imagem realizados no cubismo. A tese desse ensaio poderia encontrar a seguinte formulação: o cubismo não é uma ilustração da teoria da relatividade ou, ainda, não é a figuração da quarta dimensão. Cada qual em seu âmbito, Picasso e Einstein realizaram projetos autônomos. "Ao rejeitar a perspectiva matemática da arte renascentista, Braque e Picasso não estavam tentando substituí-la por outro sistema perspectivo que representasse uma forma diferente do espaço real ou imaginário."
Schapiro chama a atenção para o seguinte fato: enquanto a teoria de Einstein estabelece uma nova correlação entre espaço-tempo no Universo, a fragmentação do objeto no cubismo ainda parte de uma realidade vista a partir de três dimensões, o que na verdade reafirma a natureza bidimensional -e espacial- da representação pictórica.
A reflexão de Schapiro na condução de sua argumentação está sempre referida a uma cerrada análise de obras. Nada é afirmado que não possa ser constatado em determinada pintura, desenho, esboço ou escultura. Essa prática confere às suas interpretações notável consistência crítica. O leitor, mesmo que de início reticente -em particular quanto à tese relativa ao reconhecimento de unidade na obra de Picasso-, aos poucos, por força da constatação das afirmações na obra, acaba por ceder à sua argumentação. Ou, ao menos, por tomá-la como razoável.


Victor Knoll é professor de estética do departamento de filosofia da USP.


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