São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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A história em movimento

A vitalidade da historiografia atual

LAURA DE MELLO E SOUZA

Se a entrevista, como bem diz Maria Lúcia Pallares-Burke na introdução de "As Muitas Faces da História", é "uma espécie de gênero intermediário entre o pensamento e a escrita elaborada, (...) um gênero capaz de apreender a idéia em movimento", as nove entrevistas aqui coletadas arrastam o leitor para dentro de um redemoinho. Interessando tanto ao leitor especializado -o historiador- quanto ao público mais amplo, este livro atesta a vitalidade da história nos dias que correm, sua incrível capacidade de cativar e suscitar questões. E isso apesar da aparente fluidez conceitual, da pouca importância que todos os entrevistados dão a modelos teóricos, se confessando, sem exceção, ecléticos, "fazedores de coquetel" -para usar uma expressão de Peter Burke.
Os nove entrevistados constituem uma boa amostragem da melhor historiografia praticada hoje no hemisfério norte, apesar de alguns gigantes, como Eric Hobsbawm, Emmanuel Le Roy Ladurie ou Jacques Le Goff (impossibilitado de dar entrevistas, diz-nos a autora, devido à doença que o persegue há anos) terem ficado de fora. Podiam ter entrado outras mulheres além de Natalie Davis, como Michelle Perrot, e historiadores mais jovens e criativos, como Serge Gruzinski, para não falar da ausência maciça da historiografia latino-americana e no peso talvez excessivo dado à vertente anglo-saxônica e aos estudiosos de fenômenos europeus. Mas não se deve cobrar o que não foi feito quando o realizado tem tanta qualidade.
A começar pelo notável preparo da entrevistadora, que conhece cada obra de seus entrevistados e tem boa parcela de responsabilidade no tocante à pertinência dos problemas levantados. Bem conduzidas e bem editadas, as entrevistas aqui reunidas tinham já sido publicadas, em versões menores, em alguns jornais brasileiros, exceção feita para a de Peter Burke, aliás um pouco longa e repetitiva. Na íntegra são muito melhores do que as versões dadas ao público entre 1996 e 1999 e constituem um material imprescindível para o estudo da obra desses autores: Jack Goody, Asa Briggs, Natalie Davis, Keith Thomas, Daniel Roche, Peter Burke, Robert Darnton, Carlo Ginzburg, Quentin Skinner. Pois a maioria deles é muito lida nas nossas universidades, cabendo contudo ressalvar que, se Darnton, Davis e Ginzburg são no Brasil verdadeiros best sellers, Asa Briggs e Daniel Roche nunca tiveram tradução portuguesa.

Impacto inovador
Não deixa de ser curioso constatar que todos eles, cada um à sua maneira, são hoje clássicos, tendo perdido um pouco do impacto inovador e até mesmo virulento que os caracterizou nas décadas de 70 e 80. Mas, parafraseando o poeta, melhor ser eterno do que moderno, e na lista certamente estão alguns dos grandes historiadores europeus da segunda metade do século 20.
Jack Goody não é historiador: é, aliás, o único antropólogo presente. Por que não Geertz, ou Sahlins, que tanto têm influenciado a história? Talvez porque Goody, extraordinariamente brilhante e original, tente historicizar mais a antropologia, fazendo uma crítica dura às atemporalidades de Lévi-Strauss: "As culturas não são imóveis e estão sempre em mudança", e dizer que há sociedades frias ou quentes nada esclarece sobre a passagem de um estado para o outro, constata Goody, para quem a história pode "salvar" a antropologia do imobilismo, lhe dando "a dimensão de tempo e de profundidade que lhe faltava".
Dentre os historiadores britânicos, dois são titulados: lorde Asa Briggs e sir Keith Thomas, ambos eleitores dos trabalhistas. O primeiro, dono de objetividade e capacidade de síntese invejáveis, é o grande estudioso do período vitoriano e um fã incondicional de Gilberto Freyre, que considera "um dos mais eminentes historiadores da cultura de nosso século" e, "dado o seu valor", subestimado.
O segundo, um autêntico "Oxford man", diz Maria Lúcia Pallares-Burke, mostra que o fato de ser um dos maiores historiadores europeus não o fez se tomar muito a sério. Sua entrevista, pontilhada de auto-ironia -"sou meio levado pelo vento e tendo a acreditar no último livro que li", graceja- é a mais divertida de todas. Discípulo de Christopher Hill, de Freud e da antropologia social britânica, cuja clareza e lucidez opõe à pompa e pretensão "das que surgiram depois", acredita que autores diferentes entre si e até contraditórios do ponto de vista teórico podem fecundar a imaginação histórica e dar bons frutos ao historiador -mesmo que esse fique, como no seu caso, sempre às voltas com a tensão entre a abordagem teórica e a empírica. Sem se autodenominar um empirista, considera a historiografia francesa muito teórica e se decepciona com os estudos de White e La Capra por não enfrentarem "os tipos de historiadores que de fato nos interessam".
Natalie Davis, Daniel Roche e Quentin Skinner dão depoimentos tocantes e autênticos, colocando questões pessoais de forma discreta e mostrando grande generosidade nas suas relações profissionais. Roche revela que sua obra admirável sobre o povo parisiense, os hábitos de leitura e de consumo não poderia ter sido realizada sem a colaboração dos alunos e o trabalho de equipe, do qual é um defensor convicto. Davis confessa que às vezes a incomoda um pouco a apropriação que os alunos fazem de suas idéias ainda em embrião, mas logo se lembra da passagem de "Manhattan", de Woody Allen, "onde ele recorda sua mãe dizendo que ia mandar embora a empregada porque ela estava roubando, ao que o pai responde: "Mas afinal de contas, de quem ela pode roubar senão de nós?'". E, desprendida, conclui: "Deixem que levem, já que, acima de tudo, o importante é o avanço do conhecimento!".
Skinner, historiador do pensamento político e expoente da "escola" contextualista, se mostra desconfortável ante o seu monumental e já clássico "As Fundações do Pensamento Político Moderno", que, apesar do título um tanto teleológico, procura mostrar que conceitos políticos são históricos e devem ser estudados no contexto em que surgiram: "Há (...) uma teleologia embutida no livro que me aborrece agora. (...) Eu mais ou menos forcei os textos a contarem a minha história, esquecendo que havia outras histórias que eles contavam e que tratavam de questões cruciais para eles (...). Eu, portanto, os recrutei para uma história que não era a deles e, nesse aspecto, meu livro violou os próprios princípios que me impus".
A Darnton e Ginzburg, velhos conhecidos do público brasileiro, coube voltar mais uma vez à história de suas admiráveis descobertas documentais -o arquivo da Sociedade Tipográfica de Neuchâtel, para o primeiro; os processos dos "benandanti" nos arquivos do Friuli, para o segundo- e reforçar a importância que a pesquisa arquivística teve na renovação da historiografia da segunda metade do século 20. Darnton é um monotemático, que só estuda os livros e hábitos de leitura na época da Revolução Francesa. Ginzburg, insatisfeito e iconoclasta, muda incessantemente de tema e recusa tanto os rótulos quanto as especialidades.
Pode-se, por fim, tirar dessas entrevistas algumas lições para fazer boa história: fugir dos modismos como o diabo da cruz (sobretudo dos pós-modernos); olhar com reserva para a "obra historiográfica" de Michel Foucault (há uma quase unanimidade contra ele, quebrada apenas por Quentin Skinner!); revisitar o marxismo antes de alardear sua morte; nunca deixar que a teoria soterre as evidências; ler o mais possível, sem descuidar dos romances, mas tendo bem claro que história não é literatura. O resto, como sugere Carlo Ginzburg, fica por conta do imponderável, do faro que distingue um grande caçador de um mero rastreador de pegadas: porque a história, pelo menos para a maioria desses senhores, também não é uma ciência.


Laura de Mello e Souza é professora de história na USP e autora, entre outros livros, de "Norma e Conflito - Aspectos da História de Minas no Século 18" (Ed. UFMG).

AS Muitas Faces da História - Nove Entrevistas
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (org.)
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
248 págs., R$ 32,00


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