|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A história em movimento
A vitalidade da historiografia atual
LAURA DE MELLO E SOUZA
Se a entrevista, como bem diz Maria Lúcia Pallares-Burke na introdução de "As Muitas Faces da História", é "uma espécie de gênero intermediário entre o
pensamento e a escrita elaborada, (...) um gênero capaz de apreender a idéia em movimento", as nove
entrevistas aqui coletadas arrastam o leitor para dentro de um redemoinho. Interessando tanto ao leitor
especializado -o historiador- quanto ao público
mais amplo, este livro atesta a vitalidade da história
nos dias que correm, sua incrível capacidade de cativar e suscitar questões. E isso apesar da aparente fluidez conceitual, da pouca importância que todos os
entrevistados dão a modelos teóricos, se confessando, sem exceção, ecléticos, "fazedores de coquetel"
-para usar uma expressão de Peter Burke.
Os nove entrevistados constituem uma boa amostragem da melhor historiografia praticada hoje no
hemisfério norte, apesar de alguns gigantes, como
Eric Hobsbawm, Emmanuel Le Roy Ladurie ou Jacques Le Goff (impossibilitado de dar entrevistas, diz-nos a autora, devido à doença que o persegue há
anos) terem ficado de fora. Podiam ter entrado outras mulheres além de Natalie Davis, como Michelle
Perrot, e historiadores mais jovens e criativos, como
Serge Gruzinski, para não falar da ausência maciça
da historiografia latino-americana e no peso talvez
excessivo dado à vertente anglo-saxônica e aos estudiosos de fenômenos europeus. Mas não se deve cobrar o que não foi feito quando o realizado tem tanta
qualidade.
A começar pelo notável preparo da entrevistadora,
que conhece cada obra de seus entrevistados e tem
boa parcela de responsabilidade no tocante à pertinência dos problemas levantados. Bem conduzidas e
bem editadas, as entrevistas aqui reunidas tinham já
sido publicadas, em versões menores, em alguns jornais brasileiros, exceção feita para a de Peter Burke,
aliás um pouco longa e repetitiva. Na íntegra são
muito melhores do que as versões dadas ao público
entre 1996 e 1999 e constituem um material imprescindível para o estudo da obra desses autores: Jack
Goody, Asa Briggs, Natalie Davis, Keith Thomas,
Daniel Roche, Peter Burke, Robert Darnton, Carlo
Ginzburg, Quentin Skinner. Pois a maioria deles é
muito lida nas nossas universidades, cabendo contudo ressalvar que, se Darnton, Davis e Ginzburg são
no Brasil verdadeiros best sellers, Asa Briggs e Daniel
Roche nunca tiveram tradução portuguesa.
Impacto inovador
Não deixa de ser curioso constatar que todos eles,
cada um à sua maneira, são hoje clássicos, tendo perdido um pouco do impacto inovador e até mesmo
virulento que os caracterizou nas décadas de 70 e 80.
Mas, parafraseando o poeta, melhor ser eterno do
que moderno, e na lista certamente estão alguns dos
grandes historiadores europeus da segunda metade
do século 20.
Jack Goody não é historiador: é, aliás, o único antropólogo presente. Por que não Geertz, ou Sahlins,
que tanto têm influenciado a história? Talvez porque
Goody, extraordinariamente brilhante e original,
tente historicizar mais a antropologia, fazendo uma
crítica dura às atemporalidades de Lévi-Strauss: "As
culturas não são imóveis e estão sempre em mudança", e dizer que há sociedades frias ou quentes nada
esclarece sobre a passagem de um estado para o outro, constata Goody, para quem a história pode "salvar" a antropologia do imobilismo, lhe dando "a dimensão de tempo e de profundidade que lhe faltava".
Dentre os historiadores britânicos, dois são titulados: lorde Asa Briggs e sir Keith Thomas, ambos eleitores dos trabalhistas. O primeiro, dono de objetividade e capacidade de síntese invejáveis, é o grande
estudioso do período vitoriano e um fã incondicional de Gilberto Freyre, que considera "um dos mais
eminentes historiadores da cultura de nosso século"
e, "dado o seu valor", subestimado.
O segundo, um autêntico "Oxford man", diz Maria
Lúcia Pallares-Burke, mostra que o fato de ser um
dos maiores historiadores europeus não o fez se tomar muito a sério. Sua entrevista, pontilhada de auto-ironia -"sou meio levado pelo vento e tendo a
acreditar no último livro que li", graceja- é a mais
divertida de todas. Discípulo de Christopher Hill, de
Freud e da antropologia social britânica, cuja clareza
e lucidez opõe à pompa e pretensão "das que surgiram depois", acredita que autores diferentes entre si
e até contraditórios do ponto de vista teórico podem
fecundar a imaginação histórica e dar bons frutos ao
historiador -mesmo que esse fique, como no seu
caso, sempre às voltas com a tensão entre a abordagem teórica e a empírica. Sem se autodenominar um
empirista, considera a historiografia francesa muito
teórica e se decepciona com os estudos de White e La
Capra por não enfrentarem "os tipos de historiadores que de fato nos interessam".
Natalie Davis, Daniel Roche e Quentin Skinner dão
depoimentos tocantes e autênticos, colocando questões pessoais de forma discreta e mostrando grande
generosidade nas suas relações profissionais. Roche
revela que sua obra admirável sobre o povo parisiense, os hábitos de leitura e de consumo não poderia
ter sido realizada sem a colaboração dos alunos e o
trabalho de equipe, do qual é um defensor convicto.
Davis confessa que às vezes a incomoda um pouco a
apropriação que os alunos fazem de suas idéias ainda em embrião, mas logo se lembra da passagem de
"Manhattan", de Woody Allen, "onde ele recorda
sua mãe dizendo que ia mandar embora a empregada porque ela estava roubando, ao que o pai responde: "Mas afinal de contas, de quem ela pode roubar
senão de nós?'". E, desprendida, conclui: "Deixem
que levem, já que, acima de tudo, o importante é o
avanço do conhecimento!".
Skinner, historiador do pensamento político e expoente da "escola" contextualista, se mostra desconfortável ante o seu monumental e já clássico "As
Fundações do Pensamento Político Moderno", que,
apesar do título um tanto teleológico, procura mostrar que conceitos políticos são históricos e devem
ser estudados no contexto em que surgiram: "Há (...)
uma teleologia embutida no livro que me aborrece
agora. (...) Eu mais ou menos forcei os textos a contarem a minha história, esquecendo que havia outras
histórias que eles contavam e que tratavam de questões cruciais para eles (...). Eu, portanto, os recrutei
para uma história que não era a deles e, nesse aspecto, meu livro violou os próprios princípios que me
impus".
A Darnton e Ginzburg, velhos conhecidos do público brasileiro, coube voltar mais uma vez à história
de suas admiráveis descobertas documentais -o arquivo da Sociedade Tipográfica de Neuchâtel, para o
primeiro; os processos dos "benandanti" nos arquivos do Friuli, para o segundo- e reforçar a importância que a pesquisa arquivística teve na renovação
da historiografia da segunda metade do século 20.
Darnton é um monotemático, que só estuda os livros
e hábitos de leitura na época da Revolução Francesa.
Ginzburg, insatisfeito e iconoclasta, muda incessantemente de tema e recusa tanto os rótulos quanto as
especialidades.
Pode-se, por fim, tirar dessas entrevistas algumas
lições para fazer boa história: fugir dos modismos
como o diabo da cruz (sobretudo dos pós-modernos); olhar com reserva para a "obra historiográfica"
de Michel Foucault (há uma quase unanimidade
contra ele, quebrada apenas por Quentin Skinner!);
revisitar o marxismo antes de alardear sua morte;
nunca deixar que a teoria soterre as evidências; ler o
mais possível, sem descuidar dos romances, mas
tendo bem claro que história não é literatura. O resto, como sugere Carlo Ginzburg, fica por conta do
imponderável, do faro que distingue um grande caçador de um mero rastreador de pegadas: porque a
história, pelo menos para a maioria desses senhores,
também não é uma ciência.
Laura de Mello e Souza é professora de história na USP e autora, entre outros livros, de "Norma e Conflito - Aspectos da História de Minas no Século 18" (Ed. UFMG).
AS Muitas Faces da História - Nove Entrevistas
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (org.)
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
248 págs., R$ 32,00
Texto Anterior: Dilemas da América Latina Próximo Texto: Paixões de Hobsbawm Índice
|