São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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Paixões de Hobsbawm

MARCO AURÉLIO GARCIA

Com a publicação de "A Era dos Extremos" (Cia. das Letras), Eric Hobsbawm parecia haver encerrado sua grande série histórica iniciada há mais de 30 anos. No primeiro volume, "A Era das Revoluções" (Paz e Terra), examinou o período compreendido entre a Revolução Francesa e os acontecimentos que sacudiram a Europa em 1848. No segundo, "A Era do Capital" (Paz e Terra), analisou o auge da sociedade burguesa, detendo-se nos anos 70 do século 19. Em "A Era dos Impérios" (Paz e Terra), estudou a mundialização do capitalismo desde os mesmos anos de 1870 até a Primeira Guerra Mundial. No último volume, abordou o "breve século 20", os anos que vão da Grande Guerra e da Revolução Russa até a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética.
"A Era dos Extremos" apareceu para alguns como uma espécie de testamento historiográfico. Mas a vitalidade intelectual do autor desfez rapidamente essa impressão de obra concluída. Ele continuou a publicar coletâneas de ensaios nas quais é possível comprovar uma vez mais a extraordinária erudição, diversidade de interesses e agudeza de seu pensamento.
"O Novo Século" é prova disso. O livro pode ser lido como um apêndice à "Era dos Extremos". Prolonga a análise para os dez últimos anos do século 20, aprofunda e relativiza algumas afirmações do último volume de sua tetralogia e avança no escorregadio terreno das previsões históricas, tratando de detectar tendências gerais do século que se inicia.
Hobsbawm é cuidadoso. Ainda que afirme ser possível fazer previsões "com base no conhecimento do passado", ele tem claro que "grande parte do futuro é inteiramente inacessível".
No início da entrevista, explica a influência do pensamento de Marx sobre sua obra, que qualifica como historiografia analítica. Provocado por seu interlocutor, faz extensas considerações sobre a problemática da guerra e da paz no século 20, que se iniciou e terminou com conflitos armados na mesma região do mundo -os Bálcãs. Como que por um efeito tardio da Primeira Guerra, ocorreu a desintegração do "império soviético", que havia sucedido o combalido império russo. Hoje, o futuro da Rússia pós-soviética se afigura para Hobsbawm como o maior desafio que a Europa enfrentará nos próximos anos.
Ainda que veja como difícil uma nova guerra mundial, o historiador prevê a continuidade de conflitos militares regionais, com armamento convencional ou até mesmo nuclear. Ele detecta a frágil fronteira existente entre guerras civis e guerras entre países, como ficou evidente recentemente na região balcânica. As guerras terão cada vez mais sua logística terceirizada e/ou privatizada. Crescerá o recrutamento de mercenários, como já ocorre na África, envolvendo tráfico de drogas, de armas e de outras formas de crime organizado internacionalmente.
O fim do alistamento militar reflete hoje a crise dos fundamentos do Estado nacional, constata Hobsbawm. A lealdade dos cidadãos para com seus países diminui. O individualismo liberal estimula poucos a "morrerem pela pátria" e isso explica um novo tipo de guerra que lança mão de armamento tecnologicamente sofisticado, capaz de reduzir ao máximo o risco de baixas humanas, pelo menos dentre os efetivos dos agressores.
Ele crê que o próximo século será muito complexo para vir a ser dominado por uma só potência. Ainda que o sistema de relações internacionais constituído no século 18 tenha sido destruído, é difícil saber o que será colocado em seu lugar. Os EUA sofrerão a tentação de se transformarem cada vez mais em polícia do mundo, mas não poderão exercer uma hegemonia ilimitada. A globalização política colocaria em risco o pluralismo que ainda persiste no mundo.
É interessante a comparação que faz entre o processo de globalização atual e o do período pré-1914, quando havia movimentos demográficos mais intensos pelo mundo. Hobsbawm diz ser necessário separar a globalização do fundamentalismo neoliberal imperante e vaticina que daqui a 50 anos o final do século 20 será visto não só como o momento do colapso do comunismo, mas como o da bancarrota do neoliberalismo. A globalização conservadora em curso esbarrará no crescimento das desigualdades.
A autocelebração neoliberal não resiste à prova da história. Hobsbawm lembra que os grandes processos de industrialização do mundo só puderam se viabilizar graças ao protecionismo. A utopia de substituir os Estados nacionais pelas grandes corporações não prosperou, como demonstra o recente fracasso do projetado Acordo Multilateral de Investimentos (AMI).
Em pelo menos dois capítulos Hobsbawm faz o balanço do que restou da esquerda. Em um deles, refere-se à tradição política que se inicia na Revolução Inglesa, se prolongando até a Russa e que influenciara as revoluções Americana e Francesa. Observa que durante a Guerra Fria houve a tentativa de separar parte da tradição do liberalismo moderno do filão revolucionário, articulação que considera necessário ser restabelecida.
Seu conceito de esquerda é amplo. Abrange o espectro do progressismo dos séculos 19 e 20, que propiciou à humanidade grandes conquistas sociais e políticas. Essas conquistas permitiram uma enorme mobilidade social, grandes progressos no plano educacional e um mundo no qual pela primeira vez os homens e mulheres alfabetizados são maioria. Mas ele expressa sua inquietação com a mercantilização da ciência.
As vicissitudes da esquerda são retomadas no testemunho que dá sobre sua militância política, iniciada em 1932, na Alemanha pré-hitleriana, quando de sua adesão ao comunismo, que persistiu até pouco antes da dissolução do PC britânico. Hobsbawm refere-se ao drama pessoal que viveu quando permaneceu no Partido Comunista, depois de 1956, apesar das denúncias sobre os crimes cometidos na URSS durante o período de Stálin, que provocaram o afastamento do partido de muitos historiadores, como E.P. Thompson.
Encerra suas reflexões em tom prospectivo, respondendo à pergunta provocativa sobre as chances do habitante de número 6 bilhões, que estava prestes a nascer em um mundo marcado por intensos e dramáticos movimentos migratórios. Esse mundo ele vê de maneira contraditória. Propiciou às novas gerações melhores condições de vida e de instrução que às precedentes, ao mesmo tempo em que criou bases para o surgimento de novas formas de apartheid.
Reunindo a frieza e a abrangência das grandes reflexões sobre a história, "O Novo Século" ganha força e interesse especiais na medida em que não oculta as paixões políticas do autor. Ao revelá-las, mostra os andaimes de uma das mais consistentes construções historiográficas do século 20.


Marco Aurélio Garcia é professor de história na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Secretário da Cultura do Município de São Paulo.

O Novo Século - Entrevista a Antonio Polito
Eric Hobsbawm
Tradução: Claudio Marcondes
Cia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
196 págs., R$ 24,50


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