São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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Já não é a alma que fala

VIVIANA BOSI

Há poetas que vão adensando a própria expressão até os leitores reconhecerem claramente seu perfil. Assim se dá com a linguagem de Armando Freitas Filho. Livro a livro, delineia seu estilo que se apura e intensifica, sem por isso repetir-se. Em todos, a emergência da vida: um retesamento que salta e arranha a matéria, o tempo de dias e noites, o escrever. Com os nervos tensos, o poeta dispara sobre a paisagem de si ou à sua volta, e comunica a vibração do perseguir dificultoso, mas urgente, do homem ao real opaco. Como se a velocidade e a brusquidão agarrassem com mais pungência as coisas na sua ardência e movimento.
Já há 40 anos publicando poesia, Armando começou inspirado por Ferreira Gullar, tendo lido "A Luta Corporal" com grande entusiasmo: em depoimento, considera Bandeira, Drummond e Cabral tríade fundamental em sua formação e compara Gullar a D'Artagnan. Participou do grupo "Instauração Praxis", reforçando o engajamento da sua palavra com o concreto. Afinal, foi progressivamente habitando a sua poesia de um lirismo mais subjetivado. Vem sendo o responsável pelas edições cada vez melhores da obra de Ana Cristina César. Essas afinidades conservam-se presentes, mas transformadas pela dicção própria e forte de sua poesia atual.
A admiração que consagra a João Cabral dá-se pelo viés da convergência do aspecto solar e construtivista dos dois. Ambos têm em comum o anseio de apreender o cerne das coisas, mas um o faz mediante símiles precisos, lúcidos, afiados, até chegar quase à anulação da matéria. O outro distancia-se com um misto de louvor e crítica ao que considera excessivamente planejado e cerebrino, valorizando "o que ficou atrás, no escuro/ do rascunho, cego e rasurado" e "segreda/ em código na entrelinha, o que só/ passa através de frestas", preferindo a atitude do bote na medula -imediato e apaixonado- como dinâmica mais afim ao seu perfil criador. Nessa posição amadurecida e dialética reside a tensão que realiza sua escrita. Ainda que elogie o "verso de prumo e rigor" de Cabral, atribui a si a desmesura e o transbordamento violento e veloz, como em "Caçar em Vão": "Às vezes escreve-se a cavalo./ Arremetendo, com toda a carga./ Saltando obstáculos ou não./ Atropelando tudo, passando/ por cima sem puxar o freio/ -a galope- no susto, disparado/ sobre as pedras, fora da margem/ feito só de patas, sem cabeça/ nem tempo de ler no pensamento/ o que corre ou o que empaca:/ sem ter a calma e o cálculo/ de quem colhe e cata feijão".
Desde o nome, "Fio Terra", seu livro remete ao relâmpago capturado, enfatizando, de um lado, o aspecto rápido e inesperado, de um poeta que capta no ar da tempestade as suas intuições. Por outro lado, o que foi de súbito apreendido é descarregado num corpo pesado e escuro, que retém a carga elétrica e a digere, faísca consumida pela espessura úmida da terra, interior do sujeito e da linguagem que oscila "entre a sensação e o sentido" (na expressão do poeta).
Logo nos primeiros versos revela-se o mal-estar central que perpassa boa parte de sua escrita: a identidade solitária comprimida pelo mundo trevoso, terroso, contra o qual a poesia intentará um combate guerrilheiro, com "voz silenciosa". Ainda que sujo e sanguíneo, o recém-nascido poema será desentranhado com garra, assumindo sua condição "de garatuja, estudo ainda sujo", papel "abscôndito, amassado", para enfrentar a resistência das coisas em serem expressas.
A primeira parte do livro apresenta-se em forma de "poema-diário" ou o "diário de um poema" (conforme considerou em entrevista a Adolfo Montejo Najas, na Revista Cult nš 40). Dela retém-se um sentimento de invariabilidade circular do tempo cotidiano: "Sob a carga do corpo vagão/ de sangue correndo sobre/ os trilhos dos ossos -roda/ dormente, circular, sempre/ dentro do mesmo túnel".
A companhia do diário, se lembra a sombra ou o reflexo no espelho, parece igualmente fortalecer a possibilidade de voz e saída do tempo-túnel, como se escrever fosse ao mesmo tempo a doença e a cura do poeta: "Doente de mim, desde que a escrita/ juntou-se à vida, com as linhas/ da mão misturadas às do papel/ sob o peso da batida do pulso pegajoso".
O homem se move na extensão dos dias a se repetirem exasperados, andando numa rua abstrata, apenas horizonte para a perplexidade do existir. Avança como o relógio, pulso e sangue, a não ser por sensações táteis e perfumes que perduram ou retornam. Mas a engrenagem do "dia e noite inumeráveis", da "camisa-de-força", da "definitiva televisão dos dias", pedestres, transitórios, almeja iluminar-se.
Na aurora volátil da criação, algo se abre, aparentado de pássaro e flor, e conduz leve a mão para fulgor, vôo de nuvens, bandeira tremulante, contrapondo-se à identidade solitária e pesada na noite: "Trevor. Noite sem remédio/ toda de terra, repleta de árvores/ de braços abertos para a poda." Assim, o poema-diário oscila entre a perplexidade da expressão do percebido ("Perto do pensamento/ é difícil nomear o que se escreve."), que se manifesta pela incomunicabilidade de homem e coisa ("murmúrio e muro misturados/ segregando umidade, melodia/ sobre pedra muda, seca -entre/ poros- a custo este segredo.") e a esperança de emitir esses clarões de percepção que podem trazer o amanhecer, ainda que "sem se passar a limpo", na forma de borrão e mancha: "Difícil de abrir o dia, o sol/ a luxuosa luz da manhã/ o céu que a montanha sonha/ o alto-mar feito de leões. A única vitória é a própria vida/ com o corpo batendo ponto/ e o fogo fechado do troféu, na mão".
Fogo este que consome ao rés-do-chão, sem sublimar-se, mas avança teimoso, mesmo enfrentando o cerne duro das coisas: "Ser na superfície, ao nível/ do mar. Não vôo nem mergulho./ Vou a pé, no chão calculado/ da cidade, dentro dos dentes/ dos dias, em cadeia".
As aliterações compulsivas, que permeiam o livro, marcam o empenho do encontro entre murmúrio e muro, a voracidade do amante que se dá sem limites, buscando em seu corpo e no da mulher a crença e descrença na poesia como possibilidade de confluência com a matéria do mundo -a montanha maciça sonhando com o céu.
E então, graças à entrega amorosa e ao sonho, o noturno insolúvel torna-se fértil, cintila em jóia, quando da terra brotam fontes. E tudo cresce no poema, com novo alento: "Debaixo de mim/ o orgânico jardim/ desdobra sua planta -bétula, bétula!/ Em campo aberto, galopa o agapanto"... "sob mim, mil miosótis crescem". Muda inclusive a natureza da mão: as veias fazem-se firmes e azuis; a palma, delicada; e assim todo o corpo pode estar mais à vontade no dia. Ainda que a vida retorne depois ao que era antes, o tempo de transfiguração ocorreu, em certa madrugada.

Tempo e morte
A segunda parte do livro, "no ar", abre-se com o belo poema "Mãe, Memória", que apresenta talvez a obsessão mais premente do poeta neste livro: a passagem do tempo e a morte. A poesia parece um esforço até muscular para resistir à continuidade secante e cegante dos dias e sua lei fatal. Escrever como infiltração secreta, fermento, explosão do cimento, sob a cal, rasgando a parede, como se houvesse uma diferença quase insuperável entre o mundo enigma e "a mão que escreve na ventania", tentando mesmo "morder a mesa" para marcá-la, entalhando a matéria para registrar os sinais do poeta: a linguagem é comparada a bala, risco, flecha, pluma -finos ou rombudos como lápis ou obus "no ataque contra o muro repetido/ contra o fim do dia, que morde".
Mas, reconhece, "a vida vem com a morte implícita" e, embora a arte permaneça imóvel nos museus, protegida por vidros, caímos paulatinamente, até depor o corpo na terra. Pior, a escrita pode acelerar o corte, arrancando a flor da vida, que não mais respira, congelada no livro sem perfume ou cor -simulacro ou vampiro, eterno como estátua de chumbo: "sem água nem terra, sem céu/ e sol- sem o sereno da lua/ o livro se encerra sem pássaros".
Tanto nos poemas eróticos quanto nos que tratam da morte, do círculo do tempo e da dificuldade exasperada da escrita, o leitor depara-se com a disposição vital de um poeta que não se poupa do risco, atirando-se com energia até pontos extremos, e que nos reapresenta, destemido, o paradoxo romântico proposto por Schiller em toda sua consequência de ruptura entre homem, linguagem e mundo: "Quando a alma fala, ah, já não é a alma que fala!".


Viviana Bosi é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora de "John Ashbery - Um Módulo Para o Vento" (Edusp).

Fio Terra
Armando Freitas Filho
Nova Fronteira
(Tel. 0/xx/21/537-8770)
86 págs., R$ 17,00


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