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Dez vezes medicina
Obras relatam diversas conquistas e curiosidade s médicas ao longo dos séculos
ANTONIO LUIZ PINHO RIBEIRO
Antes de Andreas Vesalius (1514-1564),
muitas das descrições do corpo humano
eram fruto de observações feitas em outros animais, como cães e macacos. A dissecção de cadáveres era proibida na
maioria das localidades e os médicos
aprendiam anatomia pelas lições herdadas de Galeno, um médico grego que viveu no século 2 d.C. e que fez descrições
completamente equivocadas de muitas
das estruturas do corpo humano. Vesalius sabia que apenas pela dissecção sistemática dos cadáveres poderia entender a
anatomia humana e, para atingir seu objetivo, não poupou esforços. Durante
anos, roubou cadáveres de condenados
executados e ossadas humanas em cemitérios, guardando-as em seu próprio
quarto, onde realizava a dissecção, documentada pelo trabalho de pintores e escultores.
Aos 29 anos, Vesalius publicou o que é
hoje considerada a maior obra-prima da
medicina: "De Humani Corporis Fabrica,
Libri Septem" (Da Fábrica do Corpo Humano, em Sete Livros), em que faz uma
descrição minuciosa e precisa da anatomia humana. Essa descoberta fundamental é apenas uma das conquistas
científicas descrita por Meyer Friedman e
Gerald Friedland, dois renomados médicos e pesquisadores norte-americanos,
em "As Dez Maiores Descobertas da Medicina".
Mas como escolher dez entre as centenas de contribuições científicas valiosas
para a medicina nos últimos séculos? Por
mais controversos que sejam os critérios
de seleção, algumas de suas escolhas são
consensuais, como a anatomia humana,
a circulação sanguínea, as bactérias, a vacinação, a anestesia cirúrgica, os raios X,
os antibióticos e o DNA. Entre as ausências imperdoáveis, Freud, o inconsciente
e a psicanálise, uma das descobertas médicas de maior impacto do último século.
Foram escolhidas conquistas que aproximaram a medicina da biologia, da física
e da química, lhe conferindo o status de
ciência. Se com elas se adquiriu eficácia
no diagnóstico e tratamento das doenças,
se estreitou também o laço com a indústria de medicamentos e de equipamentos. Essa parceria, frequentemente profícua, não raramente subordinou o ideal
médico de cuidar dos pacientes aos interesses econômicos e à dinâmica de mercado. Distancia-se, desse modo, da medicina como arte e do papel crucial que a relação médico-paciente tem sobre a prática médica.
Mas é exatamente no caráter humano
das conquistas médicas que Friedman e
Friedland estão interessados. Descrevem-se, sem constrangimento, as vaidades e outras imperfeições dos ilustres
descobridores. Nenhuma delas, porém, é
capaz de ofuscar o brilho do ato da descoberta, fruto quase sempre da capacidade
de enxergar o que os seus contemporâneos não conseguiam ver, ou não queriam. É singular que os autores atribuam
essa virtude não à genialidade -como a
de Da Vinci, Shakespeare ou Mozart-,
mas à curiosidade.
Alguns dos cientistas foram auxiliados
pelo acaso: a história de Alexander Fleming, o descobridor da penicilina, é
exemplar. Fleming trabalhava como bacteriologista no hospital Saint Mary, em
Londres, um andar acima de outro pesquisador, que cultivava fungos, como o
Penicillium notatum, capaz de produzir
espontaneamente a penicilina. Um dia,
ao deixar em temperatura ambiente tubos de cultura de estafilococos, uma bactéria, um deles foi incidentalmente contaminado por alguns esporos do Penicillium. Em vez de maldizer a contaminação ou, simplesmente, desconsiderá-la,
Fleming imaginou que alguma substância produzida pelo fungo era capaz de
inibir o crescimento bacteriano e resolveu descobrir a razão. O resultado foi a
descoberta da penicilina, cuja utilização
salvou milhões de vidas humanas nas últimas décadas.
Inúmeros eventos casuais, como o observado por Fleming, ocorrem a cada dia
sem que necessariamente novas descobertas sejam feitas. Foram a curiosidade,
o talento e a capacidade de perseguir paciente e obstinadamente a resposta para
um problema, acidental ou não, que
marcaram as carreiras desses cientistas.
Mais do que a correção científica ou histórica, é a descrição apaixonada da saga
de Vesalius, Harvey, Jenner, Pasteur, entre outros, que torna "As Dez Maiores
Descobertas da Medicina" um livro interessante não só para médicos e cientistas,
mas para o público em geral.
Histórias bizarras
Em "Galeria de Curiosidades Médicas",
o médico inglês Jan Bondeson explora
uma faceta distinta e original da medicina: as monstruosidades e fatos bizarros
que povoaram os circos, a literatura, a
imprensa e mesmo as discussões médicas
dos séculos 16 a 19. Também Bondeson
optou por escolher dez exemplos, entre
os quais a combustão espontânea dos alcoólatras, o misterioso mal dos piolhos,
as histórias de gigantes, os enterros de
pessoas vivas e a história de Julia Pastrana, a mulher-macaco. Cada uma das
aberrações é descrita em capítulos separados, em que se expõem as variações do
mito nos diferentes países da Europa e
nos Estados Unidos, assim como o período no qual o tema foi objeto de atenção e
as repercussões na imprensa, na literatura e no meio médico.
Bondeson procurou inspiração em um
tratado médico do final do século 19,
"Anomalies and Curiosities of Medicine", de George M. Gould e Walter Pyle, e
encontrou um completo desprezo da literatura médica atual pelos temas escolhidos. Se na maioria das vezes havia fraude
e superstição por trás das macabras histórias relatadas, outros casos revelavam
anomalias genéticas ou fenômenos médicos conhecidos, embora incomuns.
Mais do que o próprio fenômeno em si, o
que chama a atenção é o enorme interesse que cada uma das histórias produziu
em sua época.
Nesse aspecto, é emblemática a história
de Julia Pastrana, a índia mexicana de aspecto simiesco que percorreu o mundo
como a "mulher-macaco", sendo exibida
pelo marido-empresário em espetáculos
de canto e dança. Tendo morrido durante o parto de uma criança também de feições simiescas, Julia Pastrana e seu filho
foram embalsamados e continuaram a
ser exibidos como múmias ainda durante
muitas décadas. A exploração de Julia pelo seu marido-empresário não foi exceção no século 19: a exposição de monstruosidades e aberrações humanas pelo
show business, cuidadosamente estudada por Robert Bogdan em seu livro
"Freak Show" (University of Chicago
Press, 1988), persistiu como atividade comercial e artística até mesmo durante o
século 20.
Embora embasado em farta documentação, Bondeson não consegue fazer mais
do que uma descrição de "curiosidades
médicas" e suas repercussões, não se
preocupando em discuti-las como fenômenos social e historicamente construídos. O texto, com seus repetidos relatos
de histórias bizarras e suas diferentes interpretações médicas, se torna ele mesmo
um "freak show", atraindo muito mais
pela coleção de aberrações e absurdos do
que pelo estudo do fenômeno.
Os dois textos lidam, a partir de pontos
distintos, com uma faceta peculiar da
medicina: a ignorância dos médicos acerca do significado dos fenômenos que cercam a saúde e a doença. Há pouco mais
que cem anos se desconheciam o papel
causal dos microrganismos nas doenças,
a anestesia cirúrgica e a radiologia. Por
outro lado, existiam médicos que defendiam, em revistas científicas, as teses de
que alcoólatras poderiam queimar espontaneamente ou que deformidades do
feto poderiam ser causadas por sugestão
materna. Não há motivo para pensar que
não existam ainda aspectos básicos do
conhecimento médico que não foram
desvendados ou que, mesclado no corpo
do conhecimento médico, não persistam
superstições tão absurdas como as descritas por Bondeson. Como Friedman e
Friedland afirmam, bom mesmo seria
poder escrever sobre as próximas dez
maiores descobertas da medicina.
Antonio Luiz Pinho Ribeiro é professor de clínica
médica da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais.
As Dez Maiores
Descobertas da Medicina
Meyer Friedman e Gerald W. Friedland
Tradução: José Rubens Siqueira
Cia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
368 págs., R$ 29,00
Galeria de Curiosidades
Médicas
Jan Bondeson
Tradução: Bruno A. Reis
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
306 págs., R$ 32,00
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