São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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Dez vezes medicina

Obras relatam diversas conquistas e curiosidade s médicas ao longo dos séculos

ANTONIO LUIZ PINHO RIBEIRO

Antes de Andreas Vesalius (1514-1564), muitas das descrições do corpo humano eram fruto de observações feitas em outros animais, como cães e macacos. A dissecção de cadáveres era proibida na maioria das localidades e os médicos aprendiam anatomia pelas lições herdadas de Galeno, um médico grego que viveu no século 2 d.C. e que fez descrições completamente equivocadas de muitas das estruturas do corpo humano. Vesalius sabia que apenas pela dissecção sistemática dos cadáveres poderia entender a anatomia humana e, para atingir seu objetivo, não poupou esforços. Durante anos, roubou cadáveres de condenados executados e ossadas humanas em cemitérios, guardando-as em seu próprio quarto, onde realizava a dissecção, documentada pelo trabalho de pintores e escultores.
Aos 29 anos, Vesalius publicou o que é hoje considerada a maior obra-prima da medicina: "De Humani Corporis Fabrica, Libri Septem" (Da Fábrica do Corpo Humano, em Sete Livros), em que faz uma descrição minuciosa e precisa da anatomia humana. Essa descoberta fundamental é apenas uma das conquistas científicas descrita por Meyer Friedman e Gerald Friedland, dois renomados médicos e pesquisadores norte-americanos, em "As Dez Maiores Descobertas da Medicina".
Mas como escolher dez entre as centenas de contribuições científicas valiosas para a medicina nos últimos séculos? Por mais controversos que sejam os critérios de seleção, algumas de suas escolhas são consensuais, como a anatomia humana, a circulação sanguínea, as bactérias, a vacinação, a anestesia cirúrgica, os raios X, os antibióticos e o DNA. Entre as ausências imperdoáveis, Freud, o inconsciente e a psicanálise, uma das descobertas médicas de maior impacto do último século.
Foram escolhidas conquistas que aproximaram a medicina da biologia, da física e da química, lhe conferindo o status de ciência. Se com elas se adquiriu eficácia no diagnóstico e tratamento das doenças, se estreitou também o laço com a indústria de medicamentos e de equipamentos. Essa parceria, frequentemente profícua, não raramente subordinou o ideal médico de cuidar dos pacientes aos interesses econômicos e à dinâmica de mercado. Distancia-se, desse modo, da medicina como arte e do papel crucial que a relação médico-paciente tem sobre a prática médica.
Mas é exatamente no caráter humano das conquistas médicas que Friedman e Friedland estão interessados. Descrevem-se, sem constrangimento, as vaidades e outras imperfeições dos ilustres descobridores. Nenhuma delas, porém, é capaz de ofuscar o brilho do ato da descoberta, fruto quase sempre da capacidade de enxergar o que os seus contemporâneos não conseguiam ver, ou não queriam. É singular que os autores atribuam essa virtude não à genialidade -como a de Da Vinci, Shakespeare ou Mozart-, mas à curiosidade.
Alguns dos cientistas foram auxiliados pelo acaso: a história de Alexander Fleming, o descobridor da penicilina, é exemplar. Fleming trabalhava como bacteriologista no hospital Saint Mary, em Londres, um andar acima de outro pesquisador, que cultivava fungos, como o Penicillium notatum, capaz de produzir espontaneamente a penicilina. Um dia, ao deixar em temperatura ambiente tubos de cultura de estafilococos, uma bactéria, um deles foi incidentalmente contaminado por alguns esporos do Penicillium. Em vez de maldizer a contaminação ou, simplesmente, desconsiderá-la, Fleming imaginou que alguma substância produzida pelo fungo era capaz de inibir o crescimento bacteriano e resolveu descobrir a razão. O resultado foi a descoberta da penicilina, cuja utilização salvou milhões de vidas humanas nas últimas décadas.
Inúmeros eventos casuais, como o observado por Fleming, ocorrem a cada dia sem que necessariamente novas descobertas sejam feitas. Foram a curiosidade, o talento e a capacidade de perseguir paciente e obstinadamente a resposta para um problema, acidental ou não, que marcaram as carreiras desses cientistas. Mais do que a correção científica ou histórica, é a descrição apaixonada da saga de Vesalius, Harvey, Jenner, Pasteur, entre outros, que torna "As Dez Maiores Descobertas da Medicina" um livro interessante não só para médicos e cientistas, mas para o público em geral.

Histórias bizarras
Em "Galeria de Curiosidades Médicas", o médico inglês Jan Bondeson explora uma faceta distinta e original da medicina: as monstruosidades e fatos bizarros que povoaram os circos, a literatura, a imprensa e mesmo as discussões médicas dos séculos 16 a 19. Também Bondeson optou por escolher dez exemplos, entre os quais a combustão espontânea dos alcoólatras, o misterioso mal dos piolhos, as histórias de gigantes, os enterros de pessoas vivas e a história de Julia Pastrana, a mulher-macaco. Cada uma das aberrações é descrita em capítulos separados, em que se expõem as variações do mito nos diferentes países da Europa e nos Estados Unidos, assim como o período no qual o tema foi objeto de atenção e as repercussões na imprensa, na literatura e no meio médico.
Bondeson procurou inspiração em um tratado médico do final do século 19, "Anomalies and Curiosities of Medicine", de George M. Gould e Walter Pyle, e encontrou um completo desprezo da literatura médica atual pelos temas escolhidos. Se na maioria das vezes havia fraude e superstição por trás das macabras histórias relatadas, outros casos revelavam anomalias genéticas ou fenômenos médicos conhecidos, embora incomuns. Mais do que o próprio fenômeno em si, o que chama a atenção é o enorme interesse que cada uma das histórias produziu em sua época.
Nesse aspecto, é emblemática a história de Julia Pastrana, a índia mexicana de aspecto simiesco que percorreu o mundo como a "mulher-macaco", sendo exibida pelo marido-empresário em espetáculos de canto e dança. Tendo morrido durante o parto de uma criança também de feições simiescas, Julia Pastrana e seu filho foram embalsamados e continuaram a ser exibidos como múmias ainda durante muitas décadas. A exploração de Julia pelo seu marido-empresário não foi exceção no século 19: a exposição de monstruosidades e aberrações humanas pelo show business, cuidadosamente estudada por Robert Bogdan em seu livro "Freak Show" (University of Chicago Press, 1988), persistiu como atividade comercial e artística até mesmo durante o século 20.
Embora embasado em farta documentação, Bondeson não consegue fazer mais do que uma descrição de "curiosidades médicas" e suas repercussões, não se preocupando em discuti-las como fenômenos social e historicamente construídos. O texto, com seus repetidos relatos de histórias bizarras e suas diferentes interpretações médicas, se torna ele mesmo um "freak show", atraindo muito mais pela coleção de aberrações e absurdos do que pelo estudo do fenômeno.
Os dois textos lidam, a partir de pontos distintos, com uma faceta peculiar da medicina: a ignorância dos médicos acerca do significado dos fenômenos que cercam a saúde e a doença. Há pouco mais que cem anos se desconheciam o papel causal dos microrganismos nas doenças, a anestesia cirúrgica e a radiologia. Por outro lado, existiam médicos que defendiam, em revistas científicas, as teses de que alcoólatras poderiam queimar espontaneamente ou que deformidades do feto poderiam ser causadas por sugestão materna. Não há motivo para pensar que não existam ainda aspectos básicos do conhecimento médico que não foram desvendados ou que, mesclado no corpo do conhecimento médico, não persistam superstições tão absurdas como as descritas por Bondeson. Como Friedman e Friedland afirmam, bom mesmo seria poder escrever sobre as próximas dez maiores descobertas da medicina.


Antonio Luiz Pinho Ribeiro é professor de clínica médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

As Dez Maiores Descobertas da Medicina
Meyer Friedman e Gerald W. Friedland
Tradução: José Rubens Siqueira
Cia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
368 págs., R$ 29,00

Galeria de Curiosidades Médicas
Jan Bondeson
Tradução: Bruno A. Reis
Record (Tel. 0/xx/21/585-2000)
306 págs., R$ 32,00



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