São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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A dialética dos jesuítas

CARLOS ALBERTO ZERON

Originalmente tese de doutorado em ciência política defendida na Universidade da Cidade de Nova York (1998), o livro de José Eisenberg sobre a influência das missões jesuíticas no pensamento político europeu dos séculos 16 e 17 se inspira em Jürgen Habermas.
O postulado habermasiano que ele tomou como hipótese de trabalho concerne à idéia de que, para escrever a história da teoria política, é preciso atentar antes às chamadas "práticas de justificação". Segundo Eisenberg, "mudanças conceituais ocorrem frequentemente no contexto de práticas de justificação, ou seja, em um nível de sistematização menor e anterior ao de tratados doutrinários". Nesse sentido seu trabalho tem como referência -e objeto de crítica-as obras de Quentin Skinner e John Pocock, que, conforme observa, tendem a analisar exclusivamente os grandes tratados de teoria política escritos na Europa.
Eisenberg endossa as restrições feitas aos trabalhos desses dois autores, que apontam os limites para a compreensão do surgimento de idéias sem seus contextos históricos. A tese sustentada por ele é a de que "as missões jesuíticas do Novo Mundo formam o contexto histórico e intelectual do desenvolvimento do pensamento político-jesuítico do início da era moderna", na medida em que "uma primeira geração de missionários no Brasil buscava definir novas estratégias de justificação que os permitissem adaptar e alterar a doutrina religiosa na qual haviam sido educados para os fins práticos de seu empreendimento no Novo Mundo".
Essas "práticas de justificação" elaboradas nas terras de missão influenciaram teólogos europeus tão importantes como Juan de Mariana e Luis de Molina, os quais, por sua vez, anteciparam tanto Thomas Hobbes, com sua teoria da legitimação da autoridade política pelo consentimento gerado pelo medo, como Hugo Grotius, com a formalização do conceito de direito subjetivo.
Eisenberg argumenta que essas modificações conceituais são tributárias, em última instância, do "modus procedendi" da Companhia de Jesus, ou seja, "uma dialética entre obediência e prudência resultante dos elementos voluntarísticos da doutrina espiritual de Inácio de Loyola".
Se a obediência era um dos três votos que as ordens religiosas exigiam dos noviços, sua conjugação com a prudência constitui uma especificidade da companhia. Por um lado, a prudência relaciona-se com a mobilidade e a autonomia decorrentes do voto especial de obediência direta ao papa feito pelos jesuítas, que os colocava fora da jurisdição das autoridades religiosas e seculares locais. Por outro, eles eram individualmente estimulados ao exercício da razão prática nos cursos de casos de consciência instituídos nos colégios da companhia.
Assim, em função do contexto missionário, os inacianos procediam a uma adaptação das normas escritas da ordem, o que eventualmente era tolerado pelos seus superiores hierárquicos, se julgassem que tal adaptação não era totalmente contrária ao espírito das Constituições.
Os missionários deveriam justificar-se, portanto, na correspondência interna da ordem (as chamadas "hijuelas", por oposição às cartas edificantes). Isso implicou uma farta troca de correspondência entre o centro (Roma e Portugal) e a periferia (as terras de missão), e essas cartas se tornaram o principal instrumento para a organização e o controle das atividades da ordem. Nessa correspondência, em que os missionários demonstravam sua capacidade de conjugar obediência e prudência, Eisenberg identificou as referidas "práticas de justificação".
Eisenberg estabelece de maneira clara os vínculos entre as idéias de Manuel da Nóbrega e Juan de Mariana, por um lado, e entre as de Quirício Caxa e Luis de Molina, por outro, concluindo que os dois teólogos na realidade apenas reescreveram "argumentos que já circulavam na Companhia de Jesus". Porém, ao descrever a transição da hegemonia teológico-política dominicana para a jesuítica, que ocorre durante o século 16, Eisenberg deixa de considerar alguns aspectos fundamentais das circunstâncias históricas que marcaram essa passagem.
A questão não é de menor relevância, pois, conforme a formulação da sua hipótese de trabalho, "a relação entre teorias e práticas de justificação é uma relação historicamente determinada". Assim deve-se ressaltar que não foi tanto o enfraquecimento do fervor missionário, mas um crescente pragmatismo no sentido do autofinanciamento da missão que constituiu o principal ponto de inflexão da política missionária jesuítica no Brasil.
O seu argumento ressente-se igualmente da falta de um comentário sobre a responsabilidade pela fiscalização da aplicação da política indigenista da Coroa, reivindicada pelos próprios missionários jesuítas, que conformou tanto a sua prática de terreno como a sua relação com a hierarquia romana e com a sociedade colonial. Uma prova da importância dessas duas questões reside no fato de que cada visitador enviado por Roma (estatutariamente definido como autoridade máxima na Província jesuítica) reviu sistematicamente suas posições, contra a letra de suas instruções.
Por fim, Eisenberg não considera uma questão diretamente concernida por seu tema de estudo, a da tutela -e o grau de elaboração a que chegara esse conceito a partir da reforma implantada por Nóbrega, no Brasil, e por José de Acosta, no Peru.
O estudo de Eisenberg inscreve-se na perspectiva do "desenclausuramento" recente da história das religiões. No caso da historiografia brasileira do período colonial, o trabalho de Eisenberg liberta-a, ademais, das limitações impostas por um partidarismo típico do século 19 (apologia versus antijesuitismo), que se perpetuou ao longo do século passado e permite, como nos casos de John Monteiro e Luiz Felipe de Alencastro, por exemplo, uma crítica à memória histórica jesuítica, que se estende de maneira hegemônica e quase uniforme de Simão de Vasconcelos (1662) a Antonio Serafim Leite (1950).


Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron é professor de história moderna na USP.

As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno: Encontros Culturais, Aventuras Teóricas
José Eisenberg
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4656)
264 págs., R$ 28,00



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