São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Alfabeto kantiano

Dicionário contribui para o aportuguesamento do filósofo no Brasil

VINICIUS FIGUEIREDO

Dicionários de filosofia são obras heterodoxas. É que são livros sem enredo e, ao substituírem a leitura pela consulta e a análise da obra por sua nomenclatura, retiram os conceitos de seu domicílio natural. Vá lá que sejam úteis como instrumentos para auxiliar a leitura. Ainda assim, apoiam-se em uma premissa questionável: é legítimo indexar conceitos sem levar em conta o aspecto formal, o fundo estilístico sob o qual eles foram apresentados pelo autor em pauta?
É uma questão que se impõe a todo bom dicionarista, cujas chances de êxito passam a depender, assim, de sua capacidade de trazer os pressupostos do seu gênero para o campo da filosofia. Exigência que era satisfeita de partida pelos pioneiros da lexicografia nesse terreno. Pierre Bayle ("Dicionário Histórico e Crítico", 1696), assim como Voltaire ("Dicionário Filosófico de Bolso", 1764), viu nos verbetes a ocasião para digressões filosóficas em torno de significações cujo emprego deixara de ser monopólio das instituições eclesiásticas para se difundirem junto ao público constituído com o advento do Iluminismo. Nesse contexto, o dicionário procurava sistematizar e criticar um léxico em vias de laicização, absorvendo questões de ciência, teologia, metafísica e belas-artes no registro único da cultura. Sua forma alfabetizava o cidadão esclarecido, interessado por "Deus e sua época"... É o que ilustra o título que Voltaire dá ao "Dicionário" na edição de 1769: "A Razão por Alfabeto".
No início do século 19, porém, a filosofia, tornando-se definitivamente ofício universitário, virou matéria de especialistas. Aproximando-se da filologia e da história, ela ensejou o advento de outro tipo de lexicógrafo, pautado menos pelo intuito emancipador dos precursores que pelo rigor do analista, ao qual se viu subitamente atrelada a figura do próprio filósofo. É que, incumbido de especular somente a partir dos sistemas legados pela tradição, o pensador substituiu a invenção pela exegese, a verdade da doutrina pela precisão do comentário.
Um pouco antes de Hegel instituir o elo indissolúvel entre filosofia e história da filosofia, surgia a primeira geração de dicionaristas com esse novo perfil, dentre os quais dois dedicados a Kant: G.S.A. Mellin ("Dicionário Enciclopédico da Filosofia Crítica", 1797) e Carl Schmid ("Dicionário para Uso Facilitado das Obras Kantianas", 1798).
Hoje há um consenso editorial de que todo autor digno desse nome merece seu léxico. Contudo, como sugere a história do gênero do século 19 para cá, esse empreendimento é ambíguo. De um lado, a intervenção do lexicógrafo é requerida pela academia, no interior da qual gerações de scholars se debruçam sobre os clássicos. De outro, quanto mais a significação dos conceitos é buscada no texto, mais artificial parece se tornar a obra do dicionarista. Como apreender os conceitos tratando-os como idéias fora do lugar?
O "Kant-Lexicon", publicado por Rudolf Eisler em 1930, ilustra bem o impasse: obra monumental de sistematização do vocabulário kantiano, ela retém o movimento tortuoso das digressões de Kant em favor da exatidão das definições, como se a deselegância estilística característica do seu texto fosse conceitualmente irrelevante e, portanto, dispensável para a boa compreensão de sua filosofia. Respondendo aos dilemas que pesam sobre o gênero, a estratégia lexicográfica adotada por Eisler foi a de oferecer-nos a coesão de um sistema mais fechado do que, muitas vezes, deixa entrever o próprio texto kantiano.

Uma história do problema
Howard Caygill procede na direção inversa. Consciente das dificuldades que cercam a idéia de uma nomenclatura filosófica, faz delas o ponto de partida de seu dicionário. Para isso, descarta a idéia de alistar conceitos como elementos fixos, privilegiando, ao contrário, "o caráter problemático, exploratório" da maneira de filosofar característica de Kant. Cada verbete é uma reconstrução da "história do problema" do termo indexado, que põe em primeiro plano o "decurso da reflexão" kantiana no interior do qual a significação dos conceitos relacionados com ele vem à tona. Muitos dos títulos começam por uma referência ao emprego que o termo dispunha antes de Kant.
Em seguida, Caygill dá seu significado no corpus kantiano, assinalando suas principais ocorrências. Em muitos casos, há um terceiro nível de análise, no qual, sucintamente, são indicados os desdobramentos que o conceito em pauta adquiriu após Kant. O resultado é que a ênfase sobre o caráter perturbador da filosofia kantiana em nada compromete o rigor das explicações e a abrangência da matéria que se espera de um glossário.
Um exemplo: "estética". Caygill inicia apontando o uso corrente dessa palavra na filosofia alemã do século 18, reportando-se a Alexander Baumgarten. Recorda-nos, nesse prólogo, que a "Estética" (1750-58) baumgartiana significou uma correção no rumo da filosofia de Christian Wolff, cujo matiz racionalista assimilara a sensibilidade ao âmbito das percepções confusas. Passa, então, para o significado que Kant confere à "aisthesis" na "Crítica da Razão Pura", que a priva de toda significação artística. Comenta, em seguida, que, na "Crítica do Juízo", Kant orienta a significação de "estética" para a crítica do gosto, se demorando nas consequências que essa retomada do problema do belo e do sublime em chave transcendental traz para o interior da economia das três "Críticas". Por fim, discute brevemente a herança do acomodamento kantiano do termo "estética" em Schiller, Schelling e Hegel, para, no último parágrafo do verbete, mencionar, dentre outros, Theodor Adorno e Hannah Arendt como autores contemporâneos marcados pela contribuição kantiana ao tema.
Embora geralmente exígua, a menção ao estado do conceito averbado antes e depois de Kant é muito útil na medida em que fornece referências bibliográficas importantes para o eventual aprofundamento do leitor interessado. Além disso, mediante esse procedimento Caygill enfatiza a polissemia subjacente à intervenção realizada por Kant sobre um termo cuja história começa antes e se prolonga para além dele. Polissemia, aliás, presente no interior do próprio corpus kantiano -o que, longe de revelar negligência terminológica de Kant, se explica pelo caráter aporético de sua investigação. Ao destacar esse aspecto, Caygill se alinha junto a importantes intérpretes de Kant que, sem desconsiderar a vontade de sistema que impregna seus textos, perceberam haver aí uma incessante oscilação entre doutrina e crítica, que sempre faz dos resultados obtidos matéria de novo questionamento. Ao propor ao leitor, em vez de definições isoladas, conceitos solidários em torno de um tema que muitas vezes não obtém solução, Caygill consegue reproduzir, na medida permitida por um glossário, o estilo característico da reflexão kantiana.
O leitor encontrará na edição brasileira do "Dicionário Kant" o cuidadoso trabalho de tradutor, pautado pelo bom senso de buscar nas obras de Kant já traduzidas para o português as soluções mais adequadas para a terminologia técnica inerente a esse projeto. É verdade que alguns leitores familiarizados com o assunto sentirão falta de uma menção às valiosas contribuições de Rubens Rodrigues Torres Filho para o aportuguesamento de Kant no Brasil, em particular no que diz respeito aos temas da terceira "Crítica". A despeito disso, não cabe senão saudar a iniciativa da Jorge Zahar Editor, que aliou à tradução a zelosa revisão de Valério Rohden, o qual, além de tradutor da "Crítica da Razão Pura", se dedica há anos à difusão e ao comentário atento da obra de Kant. Essa cooperação faz com que o "Dicionário Kant" represente um marco significativo da vernaculização da filosofia kantiana entre nós.


Vinicius Figueiredo é professor no departamento de filosofia da Universidade Federal do Paraná.

Dicionário Kant
Howard Caygill
Tradução: Álvaro Cabral
Jorge Zahar (Tel.0/xx/21/240-0226)
396 págs., R$ 49,00


Texto Anterior: A dialética dos jesuítas
Próximo Texto: Exercícios de cartografia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.