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Alfabeto kantiano
Dicionário contribui para o
aportuguesamento do filósofo no Brasil
VINICIUS FIGUEIREDO
Dicionários de filosofia são
obras heterodoxas. É que são livros sem enredo e, ao substituírem a leitura pela consulta e a
análise da obra por sua nomenclatura, retiram os conceitos de
seu domicílio natural. Vá lá que
sejam úteis como instrumentos
para auxiliar a leitura. Ainda assim, apoiam-se em uma premissa
questionável: é legítimo indexar
conceitos sem levar em conta o
aspecto formal, o fundo estilístico
sob o qual eles foram apresentados pelo autor em pauta?
É uma questão que se impõe a
todo bom dicionarista, cujas
chances de êxito passam a depender, assim, de sua capacidade de
trazer os pressupostos do seu gênero para o campo da filosofia.
Exigência que era satisfeita de
partida pelos pioneiros da lexicografia nesse terreno. Pierre Bayle
("Dicionário Histórico e Crítico",
1696), assim como Voltaire ("Dicionário Filosófico de Bolso",
1764), viu nos verbetes a ocasião
para digressões filosóficas em torno de significações cujo emprego
deixara de ser monopólio das instituições eclesiásticas para se difundirem junto ao público constituído com o advento do Iluminismo. Nesse contexto, o dicionário
procurava sistematizar e criticar
um léxico em vias de laicização,
absorvendo questões de ciência,
teologia, metafísica e belas-artes
no registro único da cultura. Sua
forma alfabetizava o cidadão esclarecido, interessado por "Deus e
sua época"... É o que ilustra o título que Voltaire dá ao "Dicionário"
na edição de 1769: "A Razão por
Alfabeto".
No início do século 19, porém, a
filosofia, tornando-se definitivamente ofício universitário, virou
matéria de especialistas. Aproximando-se da filologia e da história, ela ensejou o advento de outro
tipo de lexicógrafo, pautado menos pelo intuito emancipador dos
precursores que pelo rigor do
analista, ao qual se viu subitamente atrelada a figura do próprio filósofo. É que, incumbido de
especular somente a partir dos
sistemas legados pela tradição, o
pensador substituiu a invenção
pela exegese, a verdade da doutrina pela precisão do comentário.
Um pouco antes de Hegel instituir o elo indissolúvel entre filosofia e história da filosofia, surgia a
primeira geração de dicionaristas
com esse novo perfil, dentre os
quais dois dedicados a Kant:
G.S.A. Mellin ("Dicionário Enciclopédico da Filosofia Crítica",
1797) e Carl Schmid ("Dicionário
para Uso Facilitado das Obras
Kantianas", 1798).
Hoje há um consenso editorial
de que todo autor digno desse nome merece seu léxico. Contudo,
como sugere a história do gênero
do século 19 para cá, esse empreendimento é ambíguo. De um
lado, a intervenção do lexicógrafo
é requerida pela academia, no interior da qual gerações de scholars se debruçam sobre os clássicos. De outro, quanto mais a significação dos conceitos é buscada
no texto, mais artificial parece se
tornar a obra do dicionarista. Como apreender os conceitos tratando-os como idéias fora do lugar?
O "Kant-Lexicon", publicado
por Rudolf Eisler em 1930, ilustra
bem o impasse: obra monumental de sistematização do vocabulário kantiano, ela retém o movimento tortuoso das digressões de
Kant em favor da exatidão das definições, como se a deselegância
estilística característica do seu
texto fosse conceitualmente irrelevante e, portanto, dispensável
para a boa compreensão de sua filosofia. Respondendo aos dilemas
que pesam sobre o gênero, a estratégia lexicográfica adotada por
Eisler foi a de oferecer-nos a coesão de um sistema mais fechado
do que, muitas vezes, deixa entrever o próprio texto kantiano.
Uma história do problema
Howard Caygill procede na direção inversa. Consciente das dificuldades que cercam a idéia de
uma nomenclatura filosófica, faz
delas o ponto de partida de seu dicionário. Para isso, descarta a
idéia de alistar conceitos como
elementos fixos, privilegiando, ao
contrário, "o caráter problemático, exploratório" da maneira de
filosofar característica de Kant.
Cada verbete é uma reconstrução
da "história do problema" do termo indexado, que põe em primeiro plano o "decurso da reflexão"
kantiana no interior do qual a significação dos conceitos relacionados com ele vem à tona. Muitos
dos títulos começam por uma referência ao emprego que o termo
dispunha antes de Kant.
Em seguida, Caygill dá seu significado no corpus kantiano, assinalando suas principais ocorrências. Em muitos casos, há um terceiro nível de análise, no qual, sucintamente, são indicados os desdobramentos que o conceito em
pauta adquiriu após Kant. O resultado é que a ênfase sobre o caráter perturbador da filosofia
kantiana em nada compromete o
rigor das explicações e a abrangência da matéria que se espera
de um glossário.
Um exemplo: "estética". Caygill
inicia apontando o uso corrente
dessa palavra na filosofia alemã
do século 18, reportando-se a Alexander Baumgarten. Recorda-nos, nesse prólogo, que a "Estética" (1750-58) baumgartiana significou uma correção no rumo da
filosofia de Christian Wolff, cujo
matiz racionalista assimilara a
sensibilidade ao âmbito das percepções confusas. Passa, então,
para o significado que Kant confere à "aisthesis" na "Crítica da
Razão Pura", que a priva de toda
significação artística. Comenta,
em seguida, que, na "Crítica do
Juízo", Kant orienta a significação
de "estética" para a crítica do gosto, se demorando nas consequências que essa retomada do problema do belo e do sublime em chave
transcendental traz para o interior da economia das três "Críticas". Por fim, discute brevemente
a herança do acomodamento
kantiano do termo "estética" em
Schiller, Schelling e Hegel, para,
no último parágrafo do verbete,
mencionar, dentre outros, Theodor Adorno e Hannah Arendt como autores contemporâneos
marcados pela contribuição kantiana ao tema.
Embora geralmente exígua, a
menção ao estado do conceito
averbado antes e depois de Kant é
muito útil na medida em que fornece referências bibliográficas
importantes para o eventual
aprofundamento do leitor interessado. Além disso, mediante esse procedimento Caygill enfatiza
a polissemia subjacente à intervenção realizada por Kant sobre
um termo cuja história começa
antes e se prolonga para além dele. Polissemia, aliás, presente no
interior do próprio corpus kantiano -o que, longe de revelar
negligência terminológica de
Kant, se explica pelo caráter aporético de sua investigação. Ao destacar esse aspecto, Caygill se alinha junto a importantes intérpretes de Kant que, sem desconsiderar a vontade de sistema que impregna seus textos, perceberam
haver aí uma incessante oscilação
entre doutrina e crítica, que sempre faz dos resultados obtidos
matéria de novo questionamento.
Ao propor ao leitor, em vez de definições isoladas, conceitos solidários em torno de um tema que
muitas vezes não obtém solução,
Caygill consegue reproduzir, na
medida permitida por um glossário, o estilo característico da reflexão kantiana.
O leitor encontrará na edição
brasileira do "Dicionário Kant" o
cuidadoso trabalho de tradutor,
pautado pelo bom senso de buscar nas obras de Kant já traduzidas para o português as soluções
mais adequadas para a terminologia técnica inerente a esse projeto. É verdade que alguns leitores
familiarizados com o assunto sentirão falta de uma menção às valiosas contribuições de Rubens
Rodrigues Torres Filho para o
aportuguesamento de Kant no
Brasil, em particular no que diz
respeito aos temas da terceira
"Crítica". A despeito disso, não
cabe senão saudar a iniciativa da
Jorge Zahar Editor, que aliou à
tradução a zelosa revisão de Valério Rohden, o qual, além de tradutor da "Crítica da Razão Pura",
se dedica há anos à difusão e ao
comentário atento da obra de
Kant. Essa cooperação faz com
que o "Dicionário Kant" represente um marco significativo da
vernaculização da filosofia kantiana entre nós.
Vinicius Figueiredo é professor no departamento de filosofia da Universidade
Federal do Paraná.
Dicionário Kant
Howard Caygill
Tradução: Álvaro Cabral
Jorge Zahar (Tel.0/xx/21/240-0226)
396 págs., R$ 49,00
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