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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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O golpe

Mas repare-se também, em nível que interfere na avaliação das operações analíticas realizadas e seus resultados, na obscuridade que marca a apresentação e a discussão tanto das tabelas 4.13, 4.14 e 4.15, relativas à renovação parlamentar, quanto da tabela 9.4, relativa ao ordenamento dos partidos na escala esquerda-direita, cercadas de informações e leituras imprecisas, confusões e omissões. Ou observe-se (sem pretender que se trate de algo necessariamente "errado" ou sem sentido de um ponto de vista técnico) a dificuldade de apreender com segurança o que Wanderley Guilherme dos Santos nos procura dizer sobre competitividade partidária no Congresso e número de partidos parlamentares efetivos: definida a competitividade pela relação entre o número de partidos efetivos e o de partidos com representação parlamentar, busca-se em seguida a correlação empírica entre a competitividade e o número de partidos efetivos...
Mas a face mais importante da "frouxidão" apontada tem a ver com a inconsistência da orientação ou perspectiva geral, que torna mesmo difícil saber o que é, de fato, que Wanderley Guilherme dos Santos pretende sustentar. Nos enunciados mais explícitos do que seria a tese do livro, o autor se contrapõe ao "paradigma clássico da análise social e política brasileira", em que a ênfase sociológica daria às variáveis e processos políticos um status dependente, e insiste na tecla da importância de recuperar variáveis propriamente políticas, dos "processos políticos como variáveis independentes", ou na idéia de que "é, sobretudo, a estrutura do conflito político, em si, que importa para o resultado de qualquer outro conflito na sociedade".

Esquemas elaborados
No entanto, apesar de Wanderley Guilherme dos Santos afirmar a necessidade de "esquemas conceituais bem elaborados", não se encontra no livro a discussão de qual será o significado apropriado do "político" em contraste com outras esferas, e a definição subjacente à perspectiva proposta parece ligar o "político" com aquilo que diz respeito, sem mais, ao Estado ou ao plano político-institucional tomado em sentido restrito: os poderes formalmente constituídos (o Executivo e o Legislativo, talvez o Judiciário) e a dinâmica de cada um deles e das relações entre eles, além dos partidos.
Contudo é claro o caráter pobre e inepto dessa definição (uma definição adequada do "político" exige antes o recorte analítico que permita apontar a relevância política ao menos potencial de qualquer conflito), bem como a impossibilidade de ser fiel a uma perspectiva que nela se assente. E não só vemos Wanderley Guilherme dos Santos reformular sua tese em termos, por exemplo, das variáveis políticas como "intervenientes" ou do problema da "forma pela qual as questões da sociedade são traduzidas em formulações de política, isto é, as consequências de um determinado processo econômico, social ou cultural", mas o vemos também se ocupar deliberada e longamente dos processos socioeconômicos e de psicologia coletiva que produzem as condições de radicalização e polarização "fora do Congresso", as quais se refletem no plano partidário e no âmbito do Congresso, eventualmente levando aos indícios daquilo que corresponde à categoria que o autor acalenta no livro como sua criação conceitual dileta: a "paralisia decisória".
Mas a força dos dados sobre paralisia decisória não é mais que relativa, e eles são sem dúvida compatíveis com a perspectiva que destaque a idéia de um conflito social a se traduzir em enfrentamento institucional entre a esquerda em avanço e a direita "ameaçada": vejam-se, no próprio livro, os dados que mostram o sustentado crescimento parlamentar do PTB e da esquerda em geral (tabelas 9.1 e gráfico 9.1), que tem óbvio substrato "estrutural", bem como o registro singelo que faz o autor da percepção pelos militares da ameaça de "subversão constitucional" que Goulart representaria ou de uma "escalada comunista" a ser detida. Haveria razões para esperar que um Congresso "janguista", em vez de "paralisado", evitasse golpes?
Seja como for, as hesitações de Wanderley Guilherme dos Santos não podem senão ter consequências para a consistência do próprio modelo teórico do "cálculo do conflito", objeto de longo exercício formal em apêndice. O modelo é entendido como aplicando-se a "sistemas em que o resultado das políticas é função do cálculo plebiscitário da distribuição de poder entre os atores políticos", com "plebiscitário" referindo-se (em uso algo arbitrário) ao processo decisório em que, "dado um conjunto específico de propostas políticas, a opção por uma delas depende da avaliação de cada participante relativamente aos recursos de poder de que todos os demais dispõem para apoiar um determinado conjunto de alternativas" (e aqui se acrescenta ainda, explicitamente, que "plebiscitário" não significa "a consulta periódica ou ocasional às preferências do público em geral", presumivelmente em eleições).

Formulação imprecisa
Deixemos de lado o exemplo de formulação imprecisa que aí se tem: cabe presumir que cada participante avalia não apenas os recursos de "todos os demais", mas também os seus próprios e sua relação com os dos outros, como o próprio autor deixa claro em outras passagens. Um aspecto notável das elaborações de Wanderley Guilherme dos Santos a respeito tem a ver com a intensidade das preferências mantidas pelos atores quanto a diferentes políticas: salientando insistentemente sua importância, o autor não apenas não destaca o que há de problemático na comparação interpessoal da intensidade de preferências ou de "utilidades", na linguagem dos economistas, mas também pretende (apesar de se referir à "premissa" da impossibilidade de identificar no mundo empírico a intensidade de preferências de qualquer ator...) que se possa determinar, o que é mesmo apresentado como crucial para os resultados do "cálculo do conflito", se a diferença entre as "intensidades" de atores diversos seria maior ou menor do que a diferença entre seus recursos, sem explicar como se poderia tratar de realizar essa mensuração comparativa de coisas heterogêneas. Mas outros aspectos são mais importantes do ponto de vista da consistência geral do modelo.
Assim, um recurso político é definido como o "controle de uma arena política", enquanto as arenas políticas são caracterizadas como incluindo "não apenas as legalmente estabelecidas", tais como o Parlamento e os partidos, mas também os sindicatos operários, a igreja e até o Exército. Para uma perspectiva preocupada em destacar variáveis especificamente políticas, é bem clara a dificuldade que resulta desse reconhecimento explícito dos sindicatos, da igreja e do Exército como arenas políticas e recursos políticos.
Mas a inconsistência se torna mais nítida pelo fato de que a violência política, da qual a paralisia decisória é apontada como condição suficiente, é vista como ocorrendo quando haja "uma tentativa de produzir e implementar uma decisão por quaisquer outros meios que não sejam as considerações plebiscitárias". Ora, se o cálculo ou a avaliação "plebiscitária" da distribuição de recursos se aplica até ao controle das Forças Armadas, é evidente que o sistema relevante vai muito além da esfera parlamentar ou político-institucional em sentido estreito, e é difícil ver o que será alheio às "considerações plebiscitárias".

Paralisia de decisões
Nesse sistema, a paralisia de decisões, entendida como algo que se dará quando "não houver ator (ou coligação de atores) com poder suficiente para fazer prevalecer sua proposta", exigiria para sua ocorrência que as próprias Forças Armadas não dispusessem desse poder. Mas 1964, segundo a interpretação de Wanderley Guilherme dos Santos, corresponde à intervenção (eficaz) das Forças Armadas em resposta à paralisia de decisões especialmente no nível parlamentar ou na esteira dela.
Não há por que negar a importância ou mesmo a ocasional "autonomia" do que se passa no Congresso ou no plano "institucional". Mas a chave maior do problema geral consiste em ver o desafio institucional como situado na articulação dos mecanismos formais com os processos e conflitos sociopolíticos subjacentes, permitindo que, com base em certos compromissos fundamentais, os conflitos sejam administrados em termos institucionais. Nessa ótica, cabe falar de uma crise institucional durante todo o período que vai de 1945 a 1964, ou seja, da vigência (mesmo se a polarização torna a crise aos pouco mais aguda) daquilo que alguns designaram como "pretorianismo", ao qual acaba reduzido o sistema "plebiscitário" de Wanderley Guilherme dos Santos. Trata-se aí da busca do interesse próprio por categorias político-sociais diversas num prolongado quadro inerentemente instável de debilidade institucional e de vale-tudo, que, por isso mesmo, tem os militares como protagonistas decisivos, embora nem sempre ocupem o proscênio.
Em tal quadro, com Guerra Fria, suicídio de Vargas, novembrada de 1955, Jacareacanga, Aragarças, Cuba, renúncia de Jânio e quejandos, exercícios como o de contrapor a "instabilidade" do governo Goulart à "estabilidade" do governo Kubitschek em razão da maior ou menor movimentação de quadros administrativos envolvem opção analítica visivelmente empobrecedora, ainda que sempre nos revelem algo.


Fábio Wanderley Reis é cientista político, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Mercado e Utopia - Teoria Política e Sociedade Brasileira" (Edusp).


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