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O golpe
Mas repare-se também, em nível que interfere na avaliação das
operações analíticas realizadas e
seus resultados, na obscuridade
que marca a apresentação e a discussão tanto das tabelas 4.13, 4.14
e 4.15, relativas à renovação parlamentar, quanto da tabela 9.4,
relativa ao ordenamento dos
partidos na escala esquerda-direita, cercadas de informações e
leituras imprecisas, confusões e
omissões. Ou observe-se (sem
pretender que se trate de algo necessariamente "errado" ou sem
sentido de um ponto de vista técnico) a dificuldade de apreender
com segurança o que Wanderley
Guilherme dos Santos nos procura dizer sobre competitividade
partidária no Congresso e número de partidos parlamentares
efetivos: definida a competitividade pela relação entre o número de partidos efetivos e o de partidos com representação parlamentar, busca-se em seguida a
correlação empírica entre a competitividade e o número de partidos efetivos...
Mas a face mais importante da
"frouxidão" apontada tem a ver
com a inconsistência da orientação ou perspectiva geral, que torna mesmo difícil saber o que é,
de fato, que Wanderley Guilherme dos Santos pretende sustentar. Nos enunciados mais explícitos do que seria a tese do livro,
o autor se contrapõe ao "paradigma clássico da análise social e
política brasileira", em que a ênfase sociológica daria às variáveis
e processos políticos um status
dependente, e insiste na tecla da
importância de recuperar variáveis propriamente políticas, dos
"processos políticos como variáveis independentes", ou na idéia
de que "é, sobretudo, a estrutura
do conflito político, em si, que
importa para o resultado de
qualquer outro conflito na sociedade".
Esquemas elaborados
No entanto, apesar de Wanderley Guilherme dos Santos afirmar a necessidade de "esquemas
conceituais bem elaborados",
não se encontra no livro a discussão de qual será o significado
apropriado do "político" em
contraste com outras esferas, e a
definição subjacente à perspectiva proposta parece ligar o "político" com aquilo que diz respeito, sem mais, ao Estado ou ao
plano político-institucional tomado em sentido restrito: os poderes formalmente constituídos
(o Executivo e o Legislativo, talvez o Judiciário) e a dinâmica de
cada um deles e das relações entre eles, além dos partidos.
Contudo é claro o caráter pobre e inepto dessa definição
(uma definição adequada do
"político" exige antes o recorte
analítico que permita apontar a
relevância política ao menos potencial de qualquer conflito),
bem como a impossibilidade de
ser fiel a uma perspectiva que nela se assente. E não só vemos
Wanderley Guilherme dos Santos reformular sua tese em termos, por exemplo, das variáveis
políticas como "intervenientes"
ou do problema da "forma pela
qual as questões da sociedade
são traduzidas em formulações
de política, isto é, as consequências de um determinado processo econômico, social ou cultural", mas o vemos também se
ocupar deliberada e longamente
dos processos socioeconômicos
e de psicologia coletiva que produzem as condições de radicalização e polarização "fora do
Congresso", as quais se refletem
no plano partidário e no âmbito
do Congresso, eventualmente levando aos indícios daquilo que
corresponde à categoria que o
autor acalenta no livro como sua
criação conceitual dileta: a "paralisia decisória".
Mas a força dos dados sobre
paralisia decisória não é mais
que relativa, e eles são sem dúvida compatíveis com a perspectiva que destaque a idéia de um
conflito social a se traduzir em
enfrentamento institucional entre a esquerda em avanço e a direita "ameaçada": vejam-se, no
próprio livro, os dados que mostram o sustentado crescimento
parlamentar do PTB e da esquerda em geral (tabelas 9.1 e gráfico
9.1), que tem óbvio substrato
"estrutural", bem como o registro singelo que faz o autor da
percepção pelos militares da
ameaça de "subversão constitucional" que Goulart representaria ou de uma "escalada comunista" a ser detida. Haveria razões para esperar que um Congresso "janguista", em vez de
"paralisado", evitasse golpes?
Seja como for, as hesitações de
Wanderley Guilherme dos Santos não podem senão ter consequências para a consistência do
próprio modelo teórico do "cálculo do conflito", objeto de longo
exercício formal em apêndice. O
modelo é entendido como aplicando-se a "sistemas em que o
resultado das políticas é função
do cálculo plebiscitário da distribuição de poder entre os atores
políticos", com "plebiscitário"
referindo-se (em uso algo arbitrário) ao processo decisório em
que, "dado um conjunto específico de propostas políticas, a opção por uma delas depende da
avaliação de cada participante
relativamente aos recursos de
poder de que todos os demais
dispõem para apoiar um determinado conjunto de alternativas" (e aqui se acrescenta ainda,
explicitamente, que "plebiscitário" não significa "a consulta periódica ou ocasional às preferências do público em geral", presumivelmente em eleições).
Formulação imprecisa
Deixemos de lado o exemplo
de formulação imprecisa que aí
se tem: cabe presumir que cada
participante avalia não apenas os
recursos de "todos os demais",
mas também os seus próprios e
sua relação com os dos outros,
como o próprio autor deixa claro
em outras passagens. Um aspecto notável das elaborações de
Wanderley Guilherme dos Santos a respeito tem a ver com a intensidade das preferências mantidas pelos atores quanto a diferentes políticas: salientando insistentemente sua importância,
o autor não apenas não destaca o
que há de problemático na comparação interpessoal da intensidade de preferências ou de "utilidades", na linguagem dos economistas, mas também pretende
(apesar de se referir à "premissa"
da impossibilidade de identificar
no mundo empírico a intensidade de preferências de qualquer
ator...) que se possa determinar,
o que é mesmo apresentado como crucial para os resultados do
"cálculo do conflito", se a diferença entre as "intensidades" de
atores diversos seria maior ou
menor do que a diferença entre
seus recursos, sem explicar como se poderia tratar de realizar
essa mensuração comparativa de
coisas heterogêneas. Mas outros
aspectos são mais importantes
do ponto de vista da consistência
geral do modelo.
Assim, um recurso político é
definido como o "controle de
uma arena política", enquanto as
arenas políticas são caracterizadas como incluindo "não apenas
as legalmente estabelecidas", tais
como o Parlamento e os partidos, mas também os sindicatos
operários, a igreja e até o Exército. Para uma perspectiva preocupada em destacar variáveis especificamente políticas, é bem clara
a dificuldade que resulta desse
reconhecimento explícito dos
sindicatos, da igreja e do Exército
como arenas políticas e recursos
políticos.
Mas a inconsistência se torna
mais nítida pelo fato de que a
violência política, da qual a paralisia decisória é apontada como
condição suficiente, é vista como
ocorrendo quando haja "uma
tentativa de produzir e implementar uma decisão por quaisquer outros meios que não sejam
as considerações plebiscitárias".
Ora, se o cálculo ou a avaliação
"plebiscitária" da distribuição de
recursos se aplica até ao controle
das Forças Armadas, é evidente
que o sistema relevante vai muito além da esfera parlamentar ou
político-institucional em sentido
estreito, e é difícil ver o que será
alheio às "considerações plebiscitárias".
Paralisia de decisões
Nesse sistema, a paralisia de
decisões, entendida como algo
que se dará quando "não houver
ator (ou coligação de atores)
com poder suficiente para fazer
prevalecer sua proposta", exigiria para sua ocorrência que as
próprias Forças Armadas não
dispusessem desse poder. Mas
1964, segundo a interpretação de
Wanderley Guilherme dos Santos, corresponde à intervenção
(eficaz) das Forças Armadas em
resposta à paralisia de decisões
especialmente no nível parlamentar ou na esteira dela.
Não há por que negar a importância ou mesmo a ocasional
"autonomia" do que se passa no
Congresso ou no plano "institucional". Mas a chave maior do
problema geral consiste em ver o
desafio institucional como situado na articulação dos mecanismos formais com os processos e
conflitos sociopolíticos subjacentes, permitindo que, com base em certos compromissos fundamentais, os conflitos sejam administrados em termos institucionais. Nessa ótica, cabe falar de
uma crise institucional durante
todo o período que vai de 1945 a
1964, ou seja, da vigência (mesmo se a polarização torna a crise
aos pouco mais aguda) daquilo
que alguns designaram como
"pretorianismo", ao qual acaba
reduzido o sistema "plebiscitário" de Wanderley Guilherme
dos Santos. Trata-se aí da busca
do interesse próprio por categorias político-sociais diversas
num prolongado quadro inerentemente instável de debilidade
institucional e de vale-tudo, que,
por isso mesmo, tem os militares
como protagonistas decisivos,
embora nem sempre ocupem o
proscênio.
Em tal quadro, com Guerra
Fria, suicídio de Vargas, novembrada de 1955, Jacareacanga,
Aragarças, Cuba, renúncia de Jânio e quejandos, exercícios como
o de contrapor a "instabilidade"
do governo Goulart à "estabilidade" do governo Kubitschek
em razão da maior ou menor
movimentação de quadros administrativos envolvem opção
analítica visivelmente empobrecedora, ainda que sempre nos revelem algo.
Fábio Wanderley Reis é cientista político, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Mercado e Utopia - Teoria Política e Sociedade Brasileira" (Edusp).
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