São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A dança das quase-verdades

NEWTON FREIRE-MAIA

Nos seus dois primeiros milênios, apesar de já haver instituições -como a Academia de Atenas, o Museu de Alexandria e as universidades da Idade Média- onde se agrupavam estudos e meditações, a protociência era, em geral, uma atividade doméstica. Foi só no século 19 e principalmente no presente século que a ciência se institucionalizou, passando o cientista a exercer uma profissão com salário, férias, aposentadoria etc. Exceções notáveis nesse processo de institucionalização da ciência moderna, no século passado, foram Darwin e Mendel.
Atualmente, a "grande ciência" já extrapolou os limites das instituições e passou a ser governamental e, pelo menos em dois casos (viagens interplanetárias e mudanças climáticas), intergovernamental. Este último programa envolve dezenas de países e inclui dezenas de milhares de cientistas. Os trabalhos sobre a física de partículas e a cosmologia (incluindo a astrobiologia, recentemente criada) ainda parecem estar sob a égide de governos, o que não impede a cooperação internacional.
François Jacob é um eminente cientista (ganhou em 1965 o Prêmio Nobel de fisiologia e medicina) que trabalha numa grande instituição, o Instituto Pasteur, de Paris. Neste livro, ele nos conta, além de muitas coisas maravilhosas, os problemas administrativos do desenvolvimento científico que ali ocorrem e nos relata algo importante: o valor da amizade e do coleguismo na solução de problemas que aparentemente pertenceriam apenas ao âmbito científico estrito.
Ele trata principalmente de assuntos ligados à genética, à bioquímica e à filosofia da ciência. Os dois primeiros itens estão intimamente ligados: sua genética é praticamente bioquímica. Mas a sua filosofia da ciência é algo bem diverso (como convém a uma filosofia) e certamente interessará muito mais ao leitor não-cientista.
Um dos assuntos que Jacob aborda, e com mestria, é o papel da criatividade na ciência. Como bem se sabe, há duas "formas" fundamentais de ciência: a bem-comportada (que segue estritamente os paradigmas dominantes e deles não se afasta) e a malcomportada (que sai desses paradigmas e é capaz de criar novas visões de mundo ou de partes dele). Esta última é a que cria novos paradigmas em qualquer nível -dos microparadigmas aos megaparadigmas. Eles derivam da alta ciência de gênios como Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Darwin, Mendel etc. Neste século, dois cientistas (Watson e Crick) abriram uma nova porta para o estudo da hereditariedade, contribuindo decisivamente para o surgimento da genética molecular.

A OBRA
O Rato, a Mosca e o Homem François Jacob Tradução: Maria de Macedo Soares Guimarães Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 156 págs., R$ 20,00



A ciência "revolucionária" dos gênios muda as "verdades" imperantes na época e tem muito de "criação", elemento sabidamente fundamental nas artes. A criação, a inspiração e a iluminação existem tanto na ciência quanto na arte, apenas variando, como diz Jacob, a proporção com que elas entram no processo de elaboração das obras artísticas ou científicas.
As grandes e revolucionárias teorias não brotam, já feitas, dos dados; pelo contrário, transcendem aos dados e surgem das cabeças dos cientistas (método hipotético-dedutivo). Os astrônomos só descobriram que a luz das estrelas distantes se encurva ao passar perto do Sol depois que a teoria da relatividade geral, de Einstein, disse que isso deveria acontecer. As teorias é que abrem as portas do conhecimento profundo e modificam as visões de mundo. Todavia elas não podem ser provadas. Nunca podemos saber se correspondem exatamente à realidade. Se explicam bem os fenômenos, então passam a ser aceitas como as "verdades" do momento. Mas outras teorias também poderiam fazê-lo.
A verdade da ciência é a verdade da explicação científica, diz o Padre Lima Vaz. Se explica bem, a teoria é aceita como verdadeira. Na realidade, ela é uma quase-verdade, no sentido de Newton da Costa, isto é, uma verdade pragmática. Poderá mudar se outra se mostrar mais quase-verdadeira. Dessa forma, vagamos, em ciência, no meio de quase-verdades, nunca sabendo se, de fato, encontramos a verdade plena e absoluta, a verdade correspondencial. Esta nos escapa, pois não dispomos de critério para identificá-la como tal. A ciência é, sim, uma das tentativas permanentes de encontrá-la, mas, quando a encontra (se é que a encontra alguma vez), não sabe como identificá-la.
As teorias que aceitamos atualmente passaram por testes que seriam capazes de falseá-las (Popper). Se não as falsearam, são aceitas como verossímeis e quase-verdadeiras, sempre sujeitas a testes futuros ainda capazes de refutá-las. E assim, com exceção das proposições muito simples, vagamos de quase-verdade em quase-verdade, numa dança praticamente infinita feita de trabalho, paciência, crença e esperanças...
Quando, numa tradução, se encontram erros ou confusões, surge a dificuldade de se saber se decorrem do autor ou do tradutor. É preciso certo cuidado para distinguir (quando possível) um do outro. Por exemplo, na pág. 68, quando o autor fala de "linhagens de ratos consanguíneos", acho que o erro possa ser dele mesmo, que deveria dizer "linhagens isogênicas", que são provenientes de uniões consanguíneas muito próximas, tais como pais-filhas e mães-filhos. Na pág. 93, no entanto, diz-se que somos "priminhos dos grandes macacos". Aqui, já acho que o erro é da tradutora, pois ali deveria estar "petits cousins", que significa primos distantes.
Sem me preocupar com essa distinção entre autor e tradutora, gostaria apenas de lembrar outros erros ou deslizes: a generalizada confusão entre óvulo e ovo (por exemplo, na pág. 47); a confusão entre rato e camundongo no livro todo (e até no título); a definição tautológica de seleção natural (pág. 83); a confusão entre parentesco e consanguinidade (por exemplo, nas págs. 44-45); a informação de que o conceito de "terreno" decorre dos desenvolvimentos da genética humana (pág. 102); a identidade de "malformação" com distúrbio (pág. 104); a informação de que, em genética humana, não se pode recorrer à "genética clássica" (pág. 115); a informação de que o DNA foi descoberto por Watson e Crick (pág. 114); a referência a "conselho genético" em vez de aconselhamento (pág. 120); a desinformação de que Darwin e Wallace tenham proposto a "teoria da evolução", quando o genial trabalho de ambos foi sobre a teoria da seleção natural (pág. 140); a referência aos vírus como "agentes filtradores" (pág. 143); etc. etc. etc. O autor não faz agradecimentos a outras pessoas que poderiam ter lido o texto original e feito pequenas correções; tudo leva a crer que não houve essas pessoas.
Em suma, trata-se de um livro muito interessante, bem escrito e importante. Mas, obviamente, poderia ser melhor.


Newton Freire-Maia é professor emérito do departamento de genética da Universidade Federal do Paraná e autor, entre outros, de "A Ciência por Dentro" (Vozes).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.