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A outra face
O Irracional
Gilles Gaston Granger
Tradução: Álvaro Lorencini
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
290 págs., R$ 31,00
Filósofo francês examina a importância do apelo ao irracional
NEWTON DA COSTA
Gilles Gaston Granger cursou a
conceituada École Normale de
Paris, sendo "agrégé" de filosofia
e licenciado em matemática.
Doutorou-se em filosofia pela
Universidade de Paris (1953) com
uma tese de grande relevância sobre metodologia econômica. Na
França, seus mestres foram sobretudo Jean Cavaillès e Gaston
Bachelard. É professor honorário
do Collège de France e professor
emérito da Universidade de Aix-en-Provence. Sua principal área
de atuação centra-se na epistemologia, em que obteve notável projeção.
Esteve no Brasil de 1947 a 1953
como professor visitante da então
Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da USP, lotado no departamento de filosofia. Desde aquela
época, tem vindo, de modo sistemático, a nosso país, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da lógica e da filosofia entre nós.
Granger e W. V. Quine podem
ser considerados como os pais da
evolução contínua da lógica brasileira, em especial pelos livros "Lógica e Filosofia da Ciência" (Editora Melhoramentos, 1955), do
primeiro, e "O Sentido da Nova
Lógica" (Livraria Martins Editora,
1944), do segundo. Aliás, o autor
desta resenha foi motivado fortemente por essas obras e por contatos posteriores com Quine e
Granger. As atividades didáticas
de Granger na USP, em particular, evidenciaram-se decisivas para o progresso da lógica entre nós,
como, também, da filosofia. Se na
década de 1950 só havia um lógico
em nossa terra que publicava em
revistas internacionais de renome, hoje são cerca de 200 pessoas
seriamente dedicadas a investigações ligadas à lógica e a temas correlatos.
No presente livro, Granger discorre sobre o irracional. À primeira vista pode surpreender, pois o
pensador francês devotou boa
parte de seu esforço no campo filosófico procurando analisar e
ponderar os vários aspectos e objetivos da razão. No entanto, o estudo do irracional complementa a
sua investigação do racional.
Granger não tenta fazer a defesa
do irracional ou colocá-lo, em
dignidade, ao lado do racional. O
que ele deseja é meditar sobre o irracional e suas formas, pois tal indagação se mostra sumamente
instrutiva para a própria compreensão do racional e pode auxiliar todos aqueles que intentam
ser racionais. Por outro lado,
Granger não se entrega à tarefa de
inventariar o irracional como presença constante na vida humana,
em todas as suas manifestações,
mas se fixa em certos casos concretos, na ciência e na arte, muito
significativos, nos quais o comparecimento do irracional se evidencia, por assim dizer, abertamente.
Para nosso autor, há três categorias de irracional. A primeira é o
irracional como obstáculo. Assim,
por exemplo, na criação matemática diversas vezes o matemático
se defronta, no início comumente
sem perceber, com a derrogação
das próprias leis que deveriam reger o objeto criado, o que conduz
a contradições e dificuldades
imensas, como se deu com os números irracionais, os números
imaginários e as antinomias da
teoria de conjuntos. Após a tempestade, tenta-se superar os obstáculos encontrados e se ensaia
voltar à racionalidade.
A segunda é o irracional como
recurso. Lança-se mão do irracional, violando-se normas básicas,
para se atingir algo novo. Tal se
processa na ciência e na arte e, o
que pode parecer uma inconsequência, também em lógica, embora não se tenha, no irracional
dessa categoria, uma recusa do
racional: busca-se, sobretudo,
abrir novos caminhos, que muitas vezes acabam se convertendo
em algo racional. A elaboração da
chamada lógica paraconsistente
enquadra-se nessa classe de irracionalidade, segundo Granger.
Enfim, a terceira categoria compõe-se do irracional como renúncia. Constata-se, nesse caso, uma
recusa do racional, como ocorre,
para exemplificar, quando o cientista foge do controle padrão de
cientificidade e atribui aos objetos que investiga propriedades
que contradizem o próprio estatuto da ciência. A fraca racionalidade da cosmologia contemporânea, a teoria fundamental de Eddington e a ordem implicada de
Bohm constituem exemplos desse tipo de irracionalidade.
Na conclusão do livro, Granger
resume sua concepção do irracional, confrontando-a com uma caracterização positiva do racional,
especialmente do conhecimento
racional: neste não há contradição, no sentido de que o encadeamento racional jamais é interrompido por impossibilidade de
aplicar as regras previamente admitidas.
A paraconsistência
Granger efetua uma análise crítica bem interessante da paraconsistência. A lógica paraconsistente
pode ser encarada como instrumento de manipulação de, por assim dizer, estruturas contraditórias; em particular, há pensadores
que acham que o mundo ou que
nosso conhecimento do mundo
têm que ser inconsistentes (contraditórios). Essa posição nos
obriga a aceitar a lógica paraconsistente com certa dignidade ontológica. Mas também ela pode
ser concebida como método formal para tratar logicamente de estruturas linguísticas inconsistentes, sem compromisso com nenhuma visão filosófica determinada.
Granger percebe nitidamente
essa alternativa ao afirmar:
"Quanto à paraconsistência, erigida em sistemas de raciocínio pelos lógicos, ela nos pareceu, afinal
de contas, organizando certas etapas do pensamento objetivo, ser
apenas um recurso provisório para o racional". Parecem confirmar
as intuições de Granger as recentes aplicações das lógicas paraconsistentes nos mais variados ramos do saber: filosofia, física, direito, robótica, engenharia de
produção, reconhecimento automático de assinaturas, controle de
semáforos, controle de trânsito,
distribuição de energia em grandes usinas, bases de dados, computação flexível, teoria da mudança de crenças etc.
Na verdade, somos discípulo de
Granger e ele é, assim, uma espécie de mentor da paraconsistência, em virtude da amplitude e
versatilidade de suas idéias. Aliás,
seu mestre Bachelard inclui-se
entre os inspiradores da atual liberdade que impera no domínio
da lógica, acima de tudo pelo seu
livro "La Philosophie du Non"
(1940). Qualquer pessoa culta poderá tirar proveito e terá prazer
em ler o livro "O Irracional".
Em geral a tradução é boa, embora sejam necessárias correções
a respeito de termos técnicos bem
estabelecidos em certos domínios
especializados. Na parte dedicada
à perspectiva, por exemplo, convém traduzir "rebattre" por "rebater", "rebattement" por "rebatimento".
Newton C. A. da Costa é professor de
lógica do departamento de filosofia da
USP e autor, entre outros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).
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