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Anatomia do riso
Hobbes e a Teoria
Clássica do Riso
Quentin Skinner
Tradução: Alessandro Zir
Unisinos (Tel. 0/xx/51/590-8238)
88 págs., R$ 11,00
Quentin Skinner discute o significado do fenômeno desde a Antiguidade
FRANKLIN DE MATTOS
A Amilcar de Castro
"O entusiasmo súbito é a paixão que
provoca aqueles trejeitos a que se chama
riso. Este é provocado ou por um ato repentino de nós mesmos que nos diverte,
ou pela visão de uma coisa deformada em
outra pessoa, devido à comparação com
a qual subitamente nos aplaudimos a nós
mesmos."
Ao ler esta passagem do filósofo inglês
Thomas Hobbes (1588-1679), o leitor
bem poderia perguntar: que importância
tem para a filosofia o riso, essa reação banal à qual nos entregamos tantas vezes no
mesmo dia? De que modo escreveu sobre
ela o autor do "Leviatã", um dos fundadores da moderna filosofia política? E o
que tem a ver esse prazer aparentemente
desinteressado com as idéias de deformação, competição e vaidade? Essas e outras
questões são respondidas por outro filósofo inglês, Quentin Skinner, num ensaio
denso e erudito, que antes desta conheceu outras versões, uma reproduzida no
caderno Mais! de 4/8/2002.
Skinner descobriu o tema ao escrever
"Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes" (Unesp), no qual sustenta que o "Leviatã" emprega sistematicamente as técnicas da "ars rhetorica" que o filósofo
aprendera com os humanistas ingleses
do Renascimento, para a qual o saber é silencioso, impotente para falar e precisa
da eloquência a fim de se fazer valer. Assim, ensinam os retóricos desde a Antiguidade, uma das partes fundamentais
dessa arte é a "elocutio" ("elocução"), capacidade de escrever ou falar com plena
expressividade e persuasão, e que, para
tanto, precisa de dois traços: clareza e
"ornatus". É bom anotar que os "ornamenta" não são apenas adornos ou embelezamentos, mas as "armas" que o orador deve aprender a manejar para ser
bem sucedido, aquilo que dá ritmo e força ao discurso. Ora, para conferir-lhe "ornatus", podem-se empregar dois meios.
Primeiro, usar as figuras e tropos de modo a tornar o ouvinte um espectador, fazendo-o "ver" aquilo que o orador diz e,
portanto, aderir à sua visão (em geral, isso é obtido quando se inspira a comiseração do auditório). O segundo meio consiste em provocar o sentimento oposto, o
desdém e o riso daqueles que ouvem, a
fim de tornar ridículas as posições do adversário. Se em "Razão e Retórica", Skinner consagra várias páginas a estudar as
figuras de linguagem utilizadas por Hobbes no "Leviatã", a fim de satirizar seus
inimigos, no presente ensaio vai em busca da própria concepção do riso subjacente a seus procedimentos.
A concepção clássica
Desde a Antiguidade a filosofia se viu às
voltas com o riso e as paixões por ele mobilizadas. Em sua "Retórica", Aristóteles
vincula-o à zombaria e ao desprezo e, na
"Poética", afirma que o ridículo é uma
forma do vergonhoso, do feio e do baixo.
Rimos daqueles que possuem uma marca constrangedora e, por isso, são considerados inferiores, especialmente se o estigma é moral (exceto os casos de completa depravação). Em suma, como já
dissera Platão, o riso é uma reprovação
do vício.
Essa teoria foi de pronto retomada por
duas correntes distintas, mas convergentes. A primeira é médica e tem origem
numa célebre carta atribuída a Hipócrates, que elogia o riso desdenhoso do sábio
Demócrito diante das tolices humanas. A
outra é dos escritores retóricos, que reafirmam a ligação entre a deformação e o
ridículo, mas não se limitam a repetir
Aristóteles. No "De Oratore", Cícero lembra a importância do inesperado para
provocar o riso e, em "Institutio Oratoria", Quintiliano desenvolve uma idéia
que será decisiva para Hobbes: a de superioridade desdenhosa. Quando rimos de
alguém, estamos com frequência nos gabando e aplaudindo a nós mesmos, pois
descobrimos no outro uma fraqueza ou
defeito que nos torna superiores.
Durante o Renascimento a teoria clássica do riso voltou a ganhar relevo. Aqui
devem-se distinguir os humanistas, cujo
domínio é a retórica e entre os quais se
destacam Baldessare Castiglione e Juan
Luis Vives, e os médicos, que examinam
o fenômeno de uma perspectiva psicológica ou fisiológica, como é o caso de Laurent Joubert. A exemplo dos clássicos, esses autores estão interessados nas emoções que provocam o riso e, como eles,
insistem que, quando rimos, nossa felicidade não pode ser separada dos sentimentos de sarcasmo, desprezo ou até
mesmo ódio.
Segundo Skinner, dois pontos foram
aperfeiçoados pelos escritores renascentistas. O médico Girolamo Fracastoro enfatizou especialmente o papel da surpresa, já lembrada por Cícero: as coisas que
nos levam a rir devem ter alguma novidade e aparecer de modo repentino e inesperado. O imprevisto geraria a "admiratio", que levaria, por sua vez, à "delectatio", que afinal provocaria o riso. Além
disso, como Aristóteles não definira o ridículo e tampouco dissera que vícios seriam mais facilmente escarnecidos pelo
riso, os humanistas tentaram esclarecer a
questão. Segundo eles, os defeitos que
merecem desprezo são aqueles aos quais
falta uma certa naturalidade, sem serem
de uma completa perversidade. A opinião geral então se concentra em três vícios, aliás explorados pelos autores de comédias em todos os tempos: a avareza, a
hipocrisia, a vanglória.
Entretanto, mais importante que essas
ampliações, foi o surgimento de uma tendência que começou a duvidar que a relação entre alegria e escárnio bastasse para
explicar o riso. O que acontece quando
riem as crianças, os amantes que se reencontram ou aquele que acolhe os amigos
e conhecidos? Não existiria um riso puramente bondoso, simples reação a um
acontecimento agradável e surpreendente? Às vezes, não rimos de pura "perplexidade"? É o que parece ocorrer quando
sentimos uma mudança repentina em
nossas expectativas, quer por alguma justaposição surpreendente ou outro tipo de
incongruência -por exemplo: quando
um homem se veste de mulher, um príncipe de camponês ou a imaginação de um
fidalgo enlouquecido pelos romances
transforma prosaicos moinhos em ameaçadores gigantes.
A teoria de Hobbes
No início do século 17 parecia certo que
o escárnio não explicava por inteiro o fenômeno e que era preciso admitir igualmente um riso de pura benevolência. Entretanto os dois maiores filósofos de então, Descartes e Hobbes, ignoram essa recente conquista, reatando com a ortodoxia da tradição. Em "As Paixões da Alma", Descartes volta a conectar a alegria
do riso apenas ao ódio, ao desdém e à
zombaria e, em "Elements of Law", Hobbes escreve que a "paixão do riso" é "uma
súbita glória" decorrente de alguma superioridade que sentimos ao nos compararmos com as fraquezas alheias ou nossas próprias em tempos passados. Hobbes insiste que os homens acham odioso
ser motivo de riso porque os sentimentos
de glorificação daquele que ri são sempre
desdenhosos e zombeteiros.
Para Skinner, a omissão de Descartes e
Hobbes aos críticos da teoria clássica parece tanto mais surpreendente quanto
ambos, sempre que podem, exibem aversão pelo aristotelismo. Será que eles desconheciam as ressalvas formuladas por
esses autores? Para explicar o caso de
Hobbes, Skinner arrisca uma hipótese. O
autor do "Leviatã" não abre mão da análise clássica porque esta torna o riso uma
espécie de ilustração exemplar de suas
próprias concepções da natureza humana, daquele "desejo perpétuo de poder e
mais poder, que cessa somente com a
morte". Segundo Hobbes, os homens
amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros, deleitando-se em
comparar-se com os demais a fim de se
sentirem superiores. Ora, em seus trejeitos convulsivos, não são esses os sentimentos que o riso mobiliza incessantemente? Não é para sua própria glória que
se ri do outro? Rir dele não é precisamente dominá-lo?
E, por isso mesmo, porque põe a descoberto a natureza humana, para Hobbes o
riso precisa ser submetido a um severo
controle. Conforme Quentin Skinner, o
riso sempre fora bem visto por uma certa
tradição, não apenas por aqueles que o
consideravam uma expressão de pura
alegria e prazer, mas principalmente por
quem o tomava como um meio para preservar a saúde ou ainda um instrumento
moral de reprovação do vício. Durante o
século 17, porém, as coisas mudam de figura e, especialmente nos livros de cortesania, o riso passa a ser algo censurado.
Certamente tais reservas se devem a uma
crescente exigência por altos padrões de
decoro e autocontrole, próprios do chamado processo "civilizador".
Hobbes também desconfia do riso, mas
não pelos mesmos motivos. Suas razões
são primeiramente morais: rir em demasia é sinal de pusilanimidade, pois ri muito quem tem poucas "habilidades" e só
consegue manter a auto-estima observando as "imperfeições" do próximo (em
contrapartida, as "mentes elevadas" costumam se comparar apenas com os mais
hábeis). Nesse sentido, escreve Skinner, o
riso para Hobbes seria uma "estratégia"
para lidar com nossos sentimentos de
inadequação e insegurança.
Mas suas principais razões para reprovar o riso são sociais. Se sua filosofia política se funda no princípio de que se deve
buscar e preservar a paz a todo custo e,
por isso, ninguém deve mostrar ódio ou
desprezo pelo outro, não é compreensível que seja o riso a maior das ameaças?
Como pode uma boa sociedade tolerá-lo
irrestritamente?
Nova inflexão
Embora "Razão e Retórica" já insistisse
que a análise hobbesiana do riso "mal
chega a exibir qualquer originalidade" e
embora seja patente sua filiação à tradição, creio que se pode inferir do próprio
ensaio de Skinner que essa análise dá
uma nova inflexão à teoria clássica. Primeiro, porque Hobbes enfatiza de modo
especial uma idéia que já se acha em
Quintiliano: a convicção que a reprovação do vício não é a finalidade do riso,
mas, por assim dizer, seu instrumento,
em vista do verdadeiro objetivo, a autoglorificação e a dominação. Para ele, o
que está em primeiro plano são as paixões, o que traz o fenômeno para o coração de sua antropologia. Quanto aos
clássicos -que de modo algum se desinteressam pelas paixões ligadas ao riso-,
ao insistirem na idéia de reprovação do
vício, fatalmente acentuam o lado "racional" do riso. Tanto é que essa ênfase já
aparece no famoso texto que os antigos
latinos conheciam como "De Partibus
Animalium", no qual Aristóteles afirma
que o riso é o elemento que distingue o
homem dos outros animais.
Além disso, pode-se dizer que Hobbes
de certo modo inaugura uma nova tradição, na qual a análise retórica, psicológica ou fisiológica do riso é subordinada a
um ponto de vista mais abrangente, o social e político. Se assim for, seu herdeiro
mais imediato é certamente Jean-Jacques
Rousseau que, na "Carta a d'Alembert
Sobre os Espetáculos" (Unicamp), faz algo parecido: retoma a teoria clássica do
riso a fim de condená-lo com energia,
submetendo-o a uma crítica moral e,
portanto, política, pois as duas coisas são
para ele indissociáveis. Seu argumento
central afirma que, ao ridicularizar os vícios, o riso nos leva a temer os ridículos e
não os próprios vícios (o que importa
não é ser virtuoso, e sim não parecer ridículo). E seu maior efeito é nos submeter à
"opinião", para Rousseau o maior dos
males. A exemplo do caso de Hobbes, a
crítica do riso nos leva assim ao coração
da filosofia rousseauniana. Mas não custa lembrar que Hobbes reprova o riso
porque este é uma ameaça para a sociedade, enquanto Rousseau o recusa pela
razão oposta, porque ele reforça as normas sociais (ao menos aquelas do tipo de
sociedade que censura -no caso de Molière, por exemplo, "l'homme du monde" prezado no Antigo Regime).
Outro capítulo fundamental dessa nova tradição será certamente reservado a
"O Riso" (Martins Fontes), ensaio publicado por Henri Bergson no início do século 20 e no qual a relação entre o riso e a
sociedade torna-se premissa de análise.
Segundo Bergson, não se pode compreender o fenômeno se não se admitem
três princípios: não há riso sem humanidade (dizem que o homem é o único animal que ri, mas também se deveria dizer
que é o único do qual se ri); o riso supõe a
insensibilidade (rir é uma operação da
inteligência, que exige o bloqueio do sentimento: o maior inimigo do riso é a
emoção); e enfim não há riso sem sociedade (nosso riso é sempre de um grupo).
Existem outras maneiras de se compreender o riso, escoradas em tradições
distintas, mas creio que em todas ele tem
a ver com a racionalidade, a paixão, a linguagem, a sociedade. Certa vez Miguel de
Cervantes afirmou, antecipando Bergson, que "uma das definições do homem
é dizer que é um animal risível". Poderia
a filosofia ignorar o fenômeno?
Franklin de Mattos é professor de filosofia na
USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Literatura e Filosofia na Ilustração"
(UFMG).
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