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Fora do casamento
A Outra Família: Concubinato,
Igreja e Escândalo na Colônia
Fernando Torres-Londoño
Loyola (Tel. 0/xx/11/6914-1922)
216 págs., R$ 16,00
RONALDO VAINFAS
O tema do concubinato é questão crucial de nossa história
e historiografia. Na bibliografia clássica, foi tratado como
sinônimo de desregramento, prova de que no período
colonial o casamento era raro, restrito às elites senhoriais.
Viu-se o concubinato ou amancebamento associado à
promiscuidade do "viver em colônias", às relações
interétnicas que caracterizaram a colonização portuguesa,
ao povoamento da terra e à miscigenação.
Alguns autores "positivaram" o concubinato, a exemplo
de Gilberto Freyre, em razão de a mancebia ser parte
inseparável da miscigenação, por ele louvada. Autor que fez
da casa-grande metáfora do Brasil e não se inibiu em face
das lubricidades do trópico, Freyre viu no concubinato um
território de encontros sexuais e culturais, embora
deliciosamente desregrados. Paulo Prado, antes dele, ou
Caio Prado Jr., depois, não foram tão generosos com o
concubinato, emitindo juízos desabonadores face a uma
"opção" que, em prejuízo do matrimônio, caracterizava a
maioria das relações amorosas e conjugais da Colônia.
A historiografia das últimas décadas pôs em xeque as
interpretações tradicionais e buscou nas relações de
concubinato formas alternativas de relação conjugal e
organização familiar no passado colonial. É nessa linhagem
que se insere o livro de Torres-Londoño, cujo título dá bem a
medida de suas intenções. Baseado em farta documentação
das visitas diocesanas, fontes normativas da Igreja e copiosa
bibliografia especializada, o autor investiga no detalhe o que
era o concubinato na colônia, com ênfase no século 18.
Analisa quem o praticava e por quê. Examina como eram
descobertos os concubinários e como eram punidos.
Desvenda, com perícia, o imaginário ligado ao concubinato,
os estigmas, os escândalos a que davam ensejo.
Joga um papel estratégico na análise de Torres-Londoño o
impacto das vistas eclesiásticas, mecanismo acionado pela
Igreja para averiguar, de tempos em tempos, a quantas
andavam a religiosidade e a moralidade das populações,
colhendo denúncias, procedendo a diligências que
verdadeiramente devassavam as intimidades de outrora.
Torres-Londõno problematiza o registro eclesiástico e
tende, no limite, a relacionar o "escândalo" do concubinato
às pressões da Igreja, pressupondo que, na vida cotidiana,
ele era mais bem aceito do que o suposto.
O autor examina à farta as relações entre concubinato,
casamento e família, centrando o foco no tipo de relações
que eram estabelecidas ou eram visitas como concubinato.
Empreende uma "devassa" sobre os significados da palavra
e esquadrinha as inúmeras situações por ela abrigadas no
cotidiano, desde as relações amorosas de pessoas que
preferiam não casar até as que estavam impedidas de fazê-lo
por mil razões: impedimentos consanguíneos,
impedimentos derivados do voto de castidade, estigmas
raciais sobre a descendência, diferenças sociais no interior
do "casal". O "casamento entre desiguais" era, de fato, o
maior impedimento social e ideológico para que homens e
mulheres se unissem na Colônia. O outro era a instabilidade
da organização social, sobretudo nas regiões de fronteira, no
remoto ano de 1936. Instabilidade traduzida no ir-e-vir
permanente, na pouca fixidez, na fluidez imensa, na pobreza
da maioria.
Regras canônicas, preconceitos raciais institucionalizados
ou enraizados, desigualdades de todo tipo, instabilidade
extrema, mobilidade infrene, tudo isto empurrava a maioria
da população para o concubinato. Adensava-o, ainda, a
fragilidade da Igreja, "um poder fraco", não obstante o
"regimento do auditório eclesiástico", sempre lido nos
domingos, dias santos e "visitas diocesanas". Torres-Londoño esmiuça a análise dessas visitas na segunda parte
do livro, fazendo quase que "uma devassa das devassas",
aspecto-chave de sua tese. Para o autor -repita-se-, eram
elas que, no limite, divisavam o lícito socialmente do ilícito
teológica e institucionalmente.
O concubinato era "outra família"? Às vezes sim, às vezes
não. Sem dúvida o era quando havia coabitação, quando o
casal não abençoado "vivia de portas adentro", quando o
"marido" era padre, quando já era casado e tinha amante ou,
se solteiro fosse, não pudesse esposar mulher de condição
inferior, pobre ou portadora de "sangue infecto", como
rezavam os estatutos de pureza de sangue portugueses até
bem entrado o século 18.
Mas muitos "concubinatos" não ensejavam "família"
nenhuma, pois nem eram vividos, nem eram vistos como
"casamentos alternativos" na sociedade colonial. Nosso
autor por muito pouco não cai nessa interpretação algo
"libertária", e decerto anacrônica, na análise do
concubinato. Isso porque as visitas diocesanas talvez mais
não fizessem que dar eco às murmurações cotidianas contra
os que viviam "como se casados fossem", embora não o
fossem, na verdade, e todos sabiam disso na comunidade.
Sociedade e Igreja eram mais cúmplices nessa tessitura de
estigmas do que parece à primeira vista. Mas, apesar do
título discutível, o livro sustenta avaliação equilibrada e rica
do concubinato no Brasil Colonial, constituindo talvez o
trabalho mais completo e inovador sobre o assunto em
nossa bibliografia.
Além disso, sugere-nos, e várias vezes comprova, a
evidência de que o amor entre homens e mulheres do
passado -"amor profano", como diriam os religiosos-
era apanágio dos concubinatos. No seio dos matrimônios,
movidos quase sempre por interesses materiais, grandes ou
minúsculos, por razões patrimoniais e preocupações com
"status", o amor, coitado, ficou à deriva.
Ronaldo Vainfas é professor de história moderna da Universidade Federal Fluminense.
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