São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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Fora do casamento

A Outra Família: Concubinato, Igreja e Escândalo na Colônia
Fernando Torres-Londoño
Loyola (Tel. 0/xx/11/6914-1922)
216 págs., R$ 16,00

RONALDO VAINFAS

O tema do concubinato é questão crucial de nossa história e historiografia. Na bibliografia clássica, foi tratado como sinônimo de desregramento, prova de que no período colonial o casamento era raro, restrito às elites senhoriais. Viu-se o concubinato ou amancebamento associado à promiscuidade do "viver em colônias", às relações interétnicas que caracterizaram a colonização portuguesa, ao povoamento da terra e à miscigenação.
Alguns autores "positivaram" o concubinato, a exemplo de Gilberto Freyre, em razão de a mancebia ser parte inseparável da miscigenação, por ele louvada. Autor que fez da casa-grande metáfora do Brasil e não se inibiu em face das lubricidades do trópico, Freyre viu no concubinato um território de encontros sexuais e culturais, embora deliciosamente desregrados. Paulo Prado, antes dele, ou Caio Prado Jr., depois, não foram tão generosos com o concubinato, emitindo juízos desabonadores face a uma "opção" que, em prejuízo do matrimônio, caracterizava a maioria das relações amorosas e conjugais da Colônia.
A historiografia das últimas décadas pôs em xeque as interpretações tradicionais e buscou nas relações de concubinato formas alternativas de relação conjugal e organização familiar no passado colonial. É nessa linhagem que se insere o livro de Torres-Londoño, cujo título dá bem a medida de suas intenções. Baseado em farta documentação das visitas diocesanas, fontes normativas da Igreja e copiosa bibliografia especializada, o autor investiga no detalhe o que era o concubinato na colônia, com ênfase no século 18. Analisa quem o praticava e por quê. Examina como eram descobertos os concubinários e como eram punidos. Desvenda, com perícia, o imaginário ligado ao concubinato, os estigmas, os escândalos a que davam ensejo.
Joga um papel estratégico na análise de Torres-Londoño o impacto das vistas eclesiásticas, mecanismo acionado pela Igreja para averiguar, de tempos em tempos, a quantas andavam a religiosidade e a moralidade das populações, colhendo denúncias, procedendo a diligências que verdadeiramente devassavam as intimidades de outrora. Torres-Londõno problematiza o registro eclesiástico e tende, no limite, a relacionar o "escândalo" do concubinato às pressões da Igreja, pressupondo que, na vida cotidiana, ele era mais bem aceito do que o suposto.
O autor examina à farta as relações entre concubinato, casamento e família, centrando o foco no tipo de relações que eram estabelecidas ou eram visitas como concubinato. Empreende uma "devassa" sobre os significados da palavra e esquadrinha as inúmeras situações por ela abrigadas no cotidiano, desde as relações amorosas de pessoas que preferiam não casar até as que estavam impedidas de fazê-lo por mil razões: impedimentos consanguíneos, impedimentos derivados do voto de castidade, estigmas raciais sobre a descendência, diferenças sociais no interior do "casal". O "casamento entre desiguais" era, de fato, o maior impedimento social e ideológico para que homens e mulheres se unissem na Colônia. O outro era a instabilidade da organização social, sobretudo nas regiões de fronteira, no remoto ano de 1936. Instabilidade traduzida no ir-e-vir permanente, na pouca fixidez, na fluidez imensa, na pobreza da maioria.
Regras canônicas, preconceitos raciais institucionalizados ou enraizados, desigualdades de todo tipo, instabilidade extrema, mobilidade infrene, tudo isto empurrava a maioria da população para o concubinato. Adensava-o, ainda, a fragilidade da Igreja, "um poder fraco", não obstante o "regimento do auditório eclesiástico", sempre lido nos domingos, dias santos e "visitas diocesanas". Torres-Londoño esmiuça a análise dessas visitas na segunda parte do livro, fazendo quase que "uma devassa das devassas", aspecto-chave de sua tese. Para o autor -repita-se-, eram elas que, no limite, divisavam o lícito socialmente do ilícito teológica e institucionalmente.
O concubinato era "outra família"? Às vezes sim, às vezes não. Sem dúvida o era quando havia coabitação, quando o casal não abençoado "vivia de portas adentro", quando o "marido" era padre, quando já era casado e tinha amante ou, se solteiro fosse, não pudesse esposar mulher de condição inferior, pobre ou portadora de "sangue infecto", como rezavam os estatutos de pureza de sangue portugueses até bem entrado o século 18.
Mas muitos "concubinatos" não ensejavam "família" nenhuma, pois nem eram vividos, nem eram vistos como "casamentos alternativos" na sociedade colonial. Nosso autor por muito pouco não cai nessa interpretação algo "libertária", e decerto anacrônica, na análise do concubinato. Isso porque as visitas diocesanas talvez mais não fizessem que dar eco às murmurações cotidianas contra os que viviam "como se casados fossem", embora não o fossem, na verdade, e todos sabiam disso na comunidade. Sociedade e Igreja eram mais cúmplices nessa tessitura de estigmas do que parece à primeira vista. Mas, apesar do título discutível, o livro sustenta avaliação equilibrada e rica do concubinato no Brasil Colonial, constituindo talvez o trabalho mais completo e inovador sobre o assunto em nossa bibliografia.
Além disso, sugere-nos, e várias vezes comprova, a evidência de que o amor entre homens e mulheres do passado -"amor profano", como diriam os religiosos- era apanágio dos concubinatos. No seio dos matrimônios, movidos quase sempre por interesses materiais, grandes ou minúsculos, por razões patrimoniais e preocupações com "status", o amor, coitado, ficou à deriva.


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna da Universidade Federal Fluminense.


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