São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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O novo contrato social

O Futuro por Armar - Democracia e Socialismo na Era Globalitária
Tarso Genro
Vozes (Tel. 0/xx/24/273-5112)
160 págs. R$ 13,00

CELSO FREDERICO

"Não há nenhuma possibilidade à vista de substituir o capitalismo pelo socialismo, é preciso ter claro que todos os projetos socialistas faliram e as social-democracias estão à beira da bancarrota." A partir dessa constatação, gravitam os ensaios do novo livro de Tarso Genro, que propõe uma estratégia para se chegar ao socialismo no interior e por meio das instituições democráticas.
Lembra o autor que o marxismo, em suas origens, nasceu na esteira da segunda revolução industrial. O desenvolvimento das forças produtivas, ao ser travado pelas relações de produção, criou a necessidade de ruptura revolucionária para que o progresso social pudesse seguir em frente. A transição para o socialismo estava, assim, posta pela base daquela base material: de um lado, o Estado como guardião da propriedade e, de outro, um proletariado concentrado nas grandes fábricas.
O partido revolucionário, idealizado por Lênin, foi o instrumento político para tomar de assalto o Estado e, a partir dele, planejar a produção social. Para Genro, foi justamente a identificação classe operária-partido-Estado a responsável pela desagregação do socialismo. A hipertrofia do aparelho estatal e o aniquilamento da sociedade civil sufocaram o socialismo e levaram a classe operária a desinteressar-se por aquele partido-Estado que, teoricamente, a representava.
Paralelamente, ocorreu a crise da social-democracia. A concessão de benefícios não criou "novas instituições" do Estado (estruturas institucionais sólidas para garantir os direitos sociais), e seus beneficiários, exigentes em suas cobranças e apáticos politicamente, tornaram-se apenas objetos da ação estatal. A crise fiscal, minguando os recursos das políticas públicas, e a globalização, impondo o barateamento da mão-de-obra, golpearam a social-democracia.

O Estado ampliado
As duas experiências trazem para primeiro plano a reflexão sobre o Estado e a necessidade de um novo contrato social. O Estado moderno, ao legalizar o conflito e atender às demandas operárias por intermédio do direito trabalhista, mostrou ser algo mais do que um aparelho repressivo a serviço do capital. Instituiu direitos coletivos, transformando o operário em cidadão.
Seguindo Gramsci, o autor fala em "Estado ampliado": nas sociedades desenvolvidas, o momento hegemônico tende a superar a simples coerção. Não se trata, portanto, de tomar de assalto o poder do Estado para colocá-lo a serviço do socialismo: a estratégia do confronto deve ceder lugar à ampliação dos direitos de cidadania. O socialismo é uma extensão da democracia.
Também a sociedade civil conheceu modificações que levaram Genro a concluir que "as bases de sustentação da esquerda, inspiradas nas condições modernas da segunda revolução industrial, desapareceram (...). A fonte do poder é cada vez menos a fábrica propriamente dita, os conflitos fabris, heróicos e desestabilizadores da ordem não subvertem mais nenhuma ordem. Só podem tender para o corporativismo...". Essa afirmação abre caminho para o autor repensar a política.
As transformações em curso mudaram o perfil da classe operária: o trabalho deixa de ser criador de valor; os setores de ponta da classe se deslocam para os setores informatizados; o emprego não é a forma jurídica predominante etc. Com isso, deduz o autor, não faz mais sentido pensar a emancipação por meio do "ponto de vista de classe". O processo histórico teria hoje, ao lado do proletariado industrial, novos atores que não se sentem representados. O "ponto de vista de classe" precisa ser substituído por uma plataforma mais ampla.
No novo contexto, as classes subalternas precisam mudar sua forma de atuação. O Estado e a sociedade civil sofreram modificações que trouxeram uma crise nas formas de representação e legitimação. Trata-se de uma verdadeira "crise civilizatória": a sociabilidade inaugurada pelo modernismo cedeu lugar ao individualismo exacerbado e ao "apartheid", que ameaçam transformar os cidadãos em consumidores "diferenciados" e condôminos protegidos pela auto-segregação espacial das cidades.
A política, consciente da crise de representação, deve buscar um novo lugar de atuação: a esfera pública não-estatal (os conselhos de saúde, de orçamento participativo etc). Ela, diz Genro, é um lugar "público" que não é Estado e, ao mesmo tempo, não é um lugar "civil". Local de conflito e negociação em que o interesse geral e o corporativo se encontram, a esfera pública não-estatal consagra a democracia direta. A combinação desta com a democracia representativa cria uma situação de aprendizagem social, de radicalização, acenando para uma "utopia", que o autor teima em chamar de socialismo.
A ousadia de Tarso Genro há muito vem sendo criticada. Infelizmente, tais críticas permanecem na esfera doutrinária. Talvez fosse mais producente sair do discurso epistemológico e voltar a atenção para a crítica ontológica, que contrasta os fatos novos postos pela vida com a teoria que pretende explicá-los.
Assim, o leitor pode constatar o caráter abstrato do livro que, salvo referências localizadas, poderia ter sido escrito em qualquer um daqueles países incluídos no "Ocidente" de Gramsci. Essa orientação intelectual recalca os aspectos "orientais" e bárbaros de nossa sociedade: não há uma palavra sobre a "tradição" de golpes militares, dominação oligárquica e a rede do narcotráfico presente em todas as instâncias de poder; a questão agrária não resolvida até hoje etc.
Quanto à combinação da democracia direta com a representativa, a experiência recente convida a refletir sobre impasses. A dualidade de poderes, em vez de "corrigir" a democracia, pode, no limite, favorecer a ação de "lobbies" e grupos corporativos que se sobrepõem à representação universal, tornando inviável o funcionamento das instituições.
Por outro lado, a defesa do "Estado ampliado" tem como principal referência o agonizante Welfare State. O recente encolhimento dos Estados nacionais e sua completa submissão ao capital financeiro internacional problematizam as formas de ação. Na visão politicista-juridicista do autor, a economia política não ocupa o lugar que lhe é de direito. E, sem ela, fica impossível equacionar a questão nacional.


Celso Frederico é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor, entre outros, de "Lukács, um Clássico do Século 20" (Moderna).


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