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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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O espectro de Glauber

Uma defesa entusiasta do Cinema Novo

RICARDO MUSSE

Karl Marx, em uma frase célebre de "A Ideologia Alemã", adverte que a ciência deve, como já o faz o conhecimento trivial, "distinguir entre o que alguém diz ser e o que realmente é". A crítica da auto-representação do Cinema Novo teve seu ápice com "Brasil em Tempo de Cinema" (1967), por obra, paradoxalmente, de um dos principais entusiastas dessa tendência. Aí, Jean-Claude Bernardet, que havia apresentado o movimento ao público paulista na Bienal de 1961, pretende desmascarar a idéia de um cinema politicamente radical, enfatizando suas similitudes com as oscilações políticas da classe média.
A publicação do livro fez com que Glauber, além de rejeitar explicitamente o diagnóstico de Jean-Claude, intensificasse -em entrevistas, artigos, manifestos, comunicados etc.- sua exposição da teoria do Cinema Novo, atividade característica da tradição de esquerda. Afinal, o mesmo Marx assegura que, no "Manifesto", procurou opor "à lenda do espectro do comunismo um manifesto do próprio partido" - diga-se de passagem, um procedimento comum também à modernidade artística.
Nos anos subsequentes, essas duas perspectivas contrapostas digladiam-se (pois os argumentos de Jean-Claude tornaram-se um dos mananciais da crítica do grupo dito "marginal" ao Cinema Novo), iluminando a reflexão pública sobre o cinema brasileiro, até que, na manhã de 22 de agosto de 1981, a voz de Glauber silencia-se. No decorrer dos anos 80, essa polêmica desloca-se para segundo plano, com a crítica universitária -Ismail Xavier à frente- debruçando-se sobre seus filmes em análises pontuais que privilegiam o discurso implícito na fatura de seu cinema.
A partir dos anos 90, no entanto, evoca-se cada vez mais a voz de Glauber, que ressurge em filmes e, sobretudo, em livros. Foram editadas suas cartas ("Cartas ao Mundo", Cia. das Letras, 1997); alguns de seus textos e entrevistas (em "Glauber Rocha", Papirus, 1996; em "Cultura em Trânsito", Aeroplano, 2000; e em "Rocha que Voa", Aeroplano, 2002); sua participação na TV, no fim dos anos 70, foi revisitada ("A Épica Eletrônica de Glauber", UFMG, 2001); sua teoria do cinema foi discutida no contexto latino-americano ("A Ponte Clandestina", ed. 34, 1995); sua utopia política foi relembrada ("GlauberPátriaRochaLivre", Senac, 2001); começa-se, enfim, a reeditar seus livros (o primeiro é "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro", Cosac & Naify, 2003).
"Glauber - Um Olhar Europeu" é fruto daquele primeiro momento de polêmica sobre o significado político do cinema de Glauber. Escrito nos anos 70, insere-se aí como obra militante de um entusiasta e defensor da auto-representação do Cinema Novo. Mas sua publicação tardia, no século seguinte, talvez seja mais bem compreendida como mais uma evocação, num tempo de indigência cinematográfica, do espectro de Glauber.
Nessa direção, a contribuição mais relevante do livro é o resgate das explicações que o cineasta forneceu, muitas vezes no calor da hora, sobre cada um de seus filmes; mais precisamente do arco que vai de "Barravento" (1961) a "História do Brasil" (1974), pois o livro se interrompe aí, deixando de contemplar a obra subsequente, em que se destacam os longas "Claro" (1975) e "A Idade da Terra" (1980). Essas explicações encontram-se disseminadas em entrevistas à imprensa européia (especializada ou não). Claudio Valentinetti resgata também, de forma abrangente, embora quase sempre em uma perspectiva pessoal, a recepção européia dos filmes de Glauber.
Um dos méritos do livro, portanto, consiste em trazer a lume a bibliografia européia de e sobre Glauber, o que justifica, por si só, o subtítulo "Um Olhar Europeu". À primeira vista, o manejo que Valentinetti faz dessa bibliografia não modifica de forma considerável a descrição que a crítica brasileira construiu acerca dessa obra. Aliás, essa crítica nunca deixou de incorporar a recepção européia, em geral citada a partir de livros dedicados ao cineasta (e quase nunca remetendo a artigos da época). Basta lembrar a tradução, em 1977, dos ensaios de René Gardies e Barthélémy Amengual ("Glauber Rocha", Paz e Terra), primeiro volume de uma coleção dirigida por Paulo Emílio e Jean-Claude Bernardet.
Parte das discrepâncias entre as análises de Valentinetti e o tom geral da recepção brasileira pode ser atribuída a sua reiteração da auto-representação do Cinema Novo. É o caso, por exemplo, da caracterização geral desse cinema como um "instrumento de agitação política" ou mesmo como um "instrumento de conhecimento e transformação da sociedade brasileira"; ou ainda do modo como descreve a relação desse cinema com o público.
Pontualmente, na apresentação filme a filme da obra de Glauber, entretanto, a especificidade da versão de Valentinetti tende a ser mais iluminadora. Na análise de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), a consciência ambígua do personagem Antonio das Mortes é associada, sem nenhum titubeio, a uma representação da história. O capítulo dedicado a "Terra em Transe" (1967) estabelece um interessante paralelismo entre as estruturas de composição desse filme e as de "Deus e o Diabo". "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969) é abordado a partir de sua incorporação de diferentes vertentes do teatro anti-realista: Brecht, mas também Artaud e os "mistérios" medievais.
Os filmes que Glauber fez no exílio nunca foram lançados comercialmente no Brasil, mesmo depois do fim da ditadura militar. Só foram ser vistos em mostras, cada vez mais esporádicas. Isso talvez explique, embora não justifique, o relativo silêncio a que a crítica brasileira relegou tais filmes. Já para Valentinetti, eles constituem um objeto privilegiado. Não só porque escasseiam as referências à cultura popular brasileira (que causa um efeito de atordoamento nos analistas europeus), mas sobretudo porque, sob a máscara de "cineasta tricontinental", Glauber ensaia e desdobra uma crítica da civilização ocidental.
Embora essa mudança de âmbito facilite a compreensão dos filmes pelos europeus, Valentinetti não se dá conta inteiramente do teor dessa modificação. Talvez por ter escrito o livro quando essa transformação ainda estava em curso, ele não compreende, por exemplo, que Glauber altera substancialmente sua concepção de história.
"Der Leone Have Sept Cabeças" (1970) é examinado na perspectiva da "autodestruição da linguagem cinematográfica como parte da própria comunicação cinematográfica", o que se desdobra na tentativa de caminhar, seguindo o anseio de Eisenstein e de Godard, de um cinema poético para um cinema conceitual. O capítulo sobre "Cabeças Cortadas" (1970) ressalta a busca de novas formas de expressão, em "um filme em que a trama desapareceu e os personagens diluíram-se, deixando somente suas sombras", e que Glauber sugere que seja apreciado como uma composição de "imagens e sons", à maneira da fruição de uma música, de um poema ou de uma pintura de vanguarda.
Glauber filmou "Câncer" (1968-1972) simultaneamente a "O Dragão da Maldade". Investiga assim duas possibilidades opostas, o "filme em cores, espetacular" e o "filme em 16 mm, underground", antecipando a polarização do cinema brasileiro, nos anos 70, entre o "cinemão" da Embrafilme e o cinema marginal.
A especificidade do "olhar europeu", que o livro sublinha, não reside, portanto, apenas na bibliografia. Vislumbra uma dimensão da obra de Glauber que a crítica brasileira tem dificuldade em perceber. Mesmo que muitas vezes encoberto pela discussão sobre o "cinema político" -a etiqueta que os europeus inventaram, nos anos 60-70 para catalogar o cinema de Glauber (a dos anos 90 é "cinema barroco")-, o olhar europeu quase nunca deixa de apreender Glauber como um "pensador do cinema".


Ricardo Musse é professor do departamento de sociologia da USP.

Glauber - Um Olhar Europeu
Claudio M. Valentinetti
Instituto Lina Bo e P. M. Bardi
(Tel. 0/xx/11/ 3744-9902)
220 págs., R$ 35,00


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