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O espectro de Glauber
Uma defesa entusiasta do Cinema Novo
RICARDO MUSSE
Karl Marx, em uma frase célebre de "A
Ideologia Alemã", adverte que a ciência
deve, como já o faz o conhecimento trivial, "distinguir entre o que alguém diz
ser e o que realmente é". A crítica da auto-representação do Cinema Novo teve seu
ápice com "Brasil em Tempo de Cinema"
(1967), por obra, paradoxalmente, de um
dos principais entusiastas dessa tendência. Aí, Jean-Claude Bernardet, que havia
apresentado o movimento ao público
paulista na Bienal de 1961, pretende desmascarar a idéia de um cinema politicamente radical, enfatizando suas similitudes com as oscilações políticas da classe
média.
A publicação do livro fez com que Glauber, além de rejeitar explicitamente o
diagnóstico de Jean-Claude, intensificasse -em entrevistas, artigos, manifestos,
comunicados etc.- sua exposição da
teoria do Cinema Novo, atividade característica da tradição de esquerda. Afinal,
o mesmo Marx assegura que, no "Manifesto", procurou opor "à lenda do espectro do comunismo um manifesto do próprio partido" - diga-se de passagem,
um procedimento comum também à
modernidade artística.
Nos anos subsequentes, essas duas
perspectivas contrapostas digladiam-se
(pois os argumentos de Jean-Claude tornaram-se um dos mananciais da crítica
do grupo dito "marginal" ao Cinema Novo), iluminando a reflexão pública sobre
o cinema brasileiro, até que, na manhã de
22 de agosto de 1981, a voz de Glauber silencia-se. No decorrer dos anos 80, essa
polêmica desloca-se para segundo plano,
com a crítica universitária -Ismail Xavier à frente- debruçando-se sobre seus
filmes em análises pontuais que privilegiam o discurso implícito na fatura de seu
cinema.
A partir dos anos 90, no entanto, evoca-se cada vez mais a voz de Glauber, que
ressurge em filmes e, sobretudo, em livros. Foram editadas suas cartas ("Cartas
ao Mundo", Cia. das Letras, 1997); alguns
de seus textos e entrevistas (em "Glauber
Rocha", Papirus, 1996; em "Cultura em
Trânsito", Aeroplano, 2000; e em "Rocha
que Voa", Aeroplano, 2002); sua participação na TV, no fim dos anos 70, foi revisitada ("A Épica Eletrônica de Glauber",
UFMG, 2001); sua teoria do cinema foi
discutida no contexto latino-americano
("A Ponte Clandestina", ed. 34, 1995); sua
utopia política foi relembrada ("GlauberPátriaRochaLivre", Senac, 2001); começa-se, enfim, a reeditar seus livros (o primeiro é "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro", Cosac & Naify, 2003).
"Glauber - Um Olhar Europeu" é fruto
daquele primeiro momento de polêmica
sobre o significado político do cinema de
Glauber. Escrito nos anos 70, insere-se aí
como obra militante de um entusiasta e
defensor da auto-representação do Cinema Novo. Mas sua publicação tardia, no
século seguinte, talvez seja mais bem
compreendida como mais uma evocação, num tempo de indigência cinematográfica, do espectro de Glauber.
Nessa direção, a contribuição mais relevante do livro é o resgate das explicações
que o cineasta forneceu, muitas vezes no
calor da hora, sobre cada um de seus filmes; mais precisamente do arco que vai
de "Barravento" (1961) a "História do
Brasil" (1974), pois o livro se interrompe
aí, deixando de contemplar a obra subsequente, em que se destacam os longas
"Claro" (1975) e "A Idade da Terra"
(1980). Essas explicações encontram-se
disseminadas em entrevistas à imprensa
européia (especializada ou não). Claudio
Valentinetti resgata também, de forma
abrangente, embora quase sempre em
uma perspectiva pessoal, a recepção européia dos filmes de Glauber.
Um dos méritos do livro, portanto,
consiste em trazer a lume a bibliografia
européia de e sobre Glauber, o que justifica, por si só, o subtítulo "Um Olhar Europeu". À primeira vista, o manejo que Valentinetti faz dessa bibliografia não modifica de forma considerável a descrição
que a crítica brasileira construiu acerca
dessa obra. Aliás, essa crítica nunca deixou de incorporar a recepção européia,
em geral citada a partir de livros dedicados ao cineasta (e quase nunca remetendo a artigos da época). Basta lembrar a
tradução, em 1977, dos ensaios de René
Gardies e Barthélémy Amengual ("Glauber Rocha", Paz e Terra), primeiro volume de uma coleção dirigida por Paulo
Emílio e Jean-Claude Bernardet.
Parte das discrepâncias entre as análises de Valentinetti e o tom geral da recepção brasileira pode ser atribuída a sua reiteração da auto-representação do Cinema Novo. É o caso, por exemplo, da caracterização geral desse cinema como um
"instrumento de agitação política" ou
mesmo como um "instrumento de conhecimento e transformação da sociedade brasileira"; ou ainda do modo como
descreve a relação desse cinema com o
público.
Pontualmente, na apresentação filme a
filme da obra de Glauber, entretanto, a especificidade da versão de Valentinetti
tende a ser mais iluminadora. Na análise
de "Deus e o Diabo na Terra do Sol"
(1964), a consciência ambígua do personagem Antonio das Mortes é associada,
sem nenhum titubeio, a uma representação da história. O capítulo dedicado a
"Terra em Transe" (1967) estabelece um
interessante paralelismo entre as estruturas de composição desse filme e as de
"Deus e o Diabo". "O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro" (1969) é abordado a partir de sua incorporação de diferentes vertentes do teatro anti-realista:
Brecht, mas também Artaud e os "mistérios" medievais.
Os filmes que Glauber fez no exílio nunca foram lançados comercialmente no
Brasil, mesmo depois do fim da ditadura
militar. Só foram ser vistos em mostras,
cada vez mais esporádicas. Isso talvez explique, embora não justifique, o relativo
silêncio a que a crítica brasileira relegou
tais filmes. Já para Valentinetti, eles constituem um objeto privilegiado. Não só
porque escasseiam as referências à cultura popular brasileira (que causa um efeito
de atordoamento nos analistas europeus), mas sobretudo porque, sob a máscara de "cineasta tricontinental", Glauber
ensaia e desdobra uma crítica da civilização ocidental.
Embora essa mudança de âmbito facilite a compreensão dos filmes pelos europeus, Valentinetti não se dá conta inteiramente do teor dessa modificação. Talvez
por ter escrito o livro quando essa transformação ainda estava em curso, ele não
compreende, por exemplo, que Glauber
altera substancialmente sua concepção
de história.
"Der Leone Have Sept Cabeças" (1970)
é examinado na perspectiva da "autodestruição da linguagem cinematográfica
como parte da própria comunicação cinematográfica", o que se desdobra na
tentativa de caminhar, seguindo o anseio
de Eisenstein e de Godard, de um cinema
poético para um cinema conceitual. O capítulo sobre "Cabeças Cortadas" (1970)
ressalta a busca de novas formas de expressão, em "um filme em que a trama
desapareceu e os personagens diluíram-se, deixando somente suas sombras", e
que Glauber sugere que seja apreciado
como uma composição de "imagens e
sons", à maneira da fruição de uma música, de um poema ou de uma pintura de
vanguarda.
Glauber filmou "Câncer" (1968-1972)
simultaneamente a "O Dragão da Maldade". Investiga assim duas possibilidades
opostas, o "filme em cores, espetacular" e
o "filme em 16 mm, underground", antecipando a polarização do cinema brasileiro, nos anos 70, entre o "cinemão" da
Embrafilme e o cinema marginal.
A especificidade do "olhar europeu",
que o livro sublinha, não reside, portanto,
apenas na bibliografia. Vislumbra uma
dimensão da obra de Glauber que a crítica brasileira tem dificuldade em perceber. Mesmo que muitas vezes encoberto
pela discussão sobre o "cinema político"
-a etiqueta que os europeus inventaram, nos anos 60-70 para catalogar o cinema de Glauber (a dos anos 90 é "cinema barroco")-, o olhar europeu quase
nunca deixa de apreender Glauber como
um "pensador do cinema".
Ricardo Musse é professor do departamento de
sociologia da USP.
Glauber - Um Olhar Europeu
Claudio M. Valentinetti
Instituto Lina Bo e P. M. Bardi
(Tel. 0/xx/11/ 3744-9902)
220 págs., R$ 35,00
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