UOL


São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O outro somos nós

Uma análise da representação do popular no cinema brasileiro

FERNÃO PESSOA RAMOS

"Cineastas e Imagens do Povo" morde na veia forte do cinema brasileiro: a representação do popular. Jean-Claude Bernardet fez parte da história desse cinema, em particular daquele que foi proposto e realizado pela geração dos anos 1960. Seus livros pontuam a crítica de cinema no Brasil. Neste, estabelece a linha de costura desse percurso, abordando a questão do popular dentro de um recorte que problematiza a posição do sujeito que enuncia a representação. No conceito que define o popular enquanto "outro de classe" se delineia sua originalidade. Trata-se de uma análise que "Brasil em Tempo de Cinema" (1967) introduz e sobre a qual irá girar parcela significativa da reflexão sobre o cinema brasileiro.
O conceito "outro de classe" tem sua singularidade dentro do campo dominante dos "estudos culturais" -propostos inicialmente nos países centrais-, desenvolvido a partir de estudos sobre a alteridade racial (negra, indígena), sexual (feminismo, homossexuais) etc., com forte incidência na teoria do cinema. No caso do cinema brasileiro, a evidência salta aos olhos: as questões epistemológicas relativas à representação do outro e ao estatuto da subjetividade estão permeadas pela fratura social. O "outro" somos nós, configurados também como como alteridade em relação aos excluídos. Esse é o corte que nos perpassa e sobrepõe-se.
"Cineastas e Imagens do Povo" é assombrado por uma ética bem característica dos anos 60, que, entre outros, possui como traço a dificuldade em se enxergar historicamente. Uma dificuldade própria das ideologias consensuais no período de sua dominância histórica.
Essa reedição compõe-se de dois blocos: o original (a íntegra do texto de 1985) e outro escrito posteriormente nos anos 90, com alguns textos de 2003. No centro de sua abordagem está a produção do cinema documentário brasileiro que, nos anos 1960 e 70, vive um momento particularmente positivo.
A questão metodológica é central para o autor, pois trata-se de não repetir, na análise da produção cinematográfica, os erros éticos que incidem sobre os documentários analisados. Mas quais são esses erros e como o movimento de análise espera resolvê-los?
No eixo da questão está a reafirmação da postura humilde do sujeito epistemológico que cerca o pensamento dito pós-estruturalista no qual o livro está inserido. A validade ética das asserções que a voz que enuncia o documentário estabelece sobre o povo é questionada em sua raiz, a partir de uma análise da narrativa. Jean-Claude põe em evidência o que chama de "modelo sociológico", no qual, na representação do universo popular, a voz off seria composta por enunciados que reafirmam o saber sobre o outro, reduzindo a nada a dimensão da expressão desse outro.
Esse é o ponto cego da ética pós-estruturalista que surge nos anos 60 e domina nosso universo ideológico até hoje. O sujeito humilde (que se apaga dando "voz" ao outro) é visto positivamente e o livro tem como parâmetro a "evolução" do cinema documentário nessa direção. "Viramundo" (1965), de Geraldo Sarno, para grande aflição de seu diretor, está em uma ponta; "Jardim Nova Bahia" (1971, de Aloysio Raulino, no qual uma câmera é, de modo pioneiro, fornecida ao povo), "Lavrador" (1968, Paulo Rufino) e "Indústria" (1968, Ana Carolina), na outra. A postura humilde fica ainda mais realçada em "Congo" (1972), de Arthur Omar, no qual o conteúdo da manifestação popular (a congada) desaparece ou se fragmenta, e a mediação se torna o tema central. No segundo bloco, continua embutido o ponto de evolução que a primeira edição do livro já contém e solicita. Isso surge de modo nítido nas análises do documentário de entrevista, assim como na crítica implícita ao estilo dos últimos filmes de Eduardo Coutinho e na ênfase da importância da manifestação do diretor na forma do documentário-entrevista. Nessa linha, não basta apenas mostrar (o recuo do sujeito/cineasta não se sustenta eticamente) e muito menos se deve afirmar um saber: trata-se de deixar claras para o espectador as condições que cercam a enunciação da alteridade.
Mas o livro está longe de ser apenas um receituário de condutas para a realização de um bom documentário ou para o estabelecimento de uma postura normativa. Sofisticado metodologicamente, traz para a escrita do texto o desafio que apresenta para os cineastas. Como escapar do questionamento do saber, implícito na dialética do particular/geral, que o próprio livro estabelece para seu objeto?
A saída proposta tem a ver com uma forma de análise, presente não apenas no campo cinematográfico (a análise estrutural), mas que nessa área teve uma profunda influência na academia: a análise fílmica. A idéia é trabalhar grudado ao texto do filme, evitando qualquer salto do particular para o geral que suponha a afirmação de um sujeito do saber. Mais uma vez, a modéstia aqui é servida de bandeja. Qualquer enunciado mais geral deve ser castrado para que o sujeito atenha-se à (in) significância do texto.
As análises do primeiro bloco do livro são fortes, mostrando um crítico arguto, conhecedor de seu objeto, no exercício pleno de sua atividade. Seu trabalho está longe de possuir o caráter enfadonho e descritivo que muitas vezes é suscitado por essa metodologia. Mas o leitor não tem como deixar de se sentir abafado pela insistência em se ater aos filmes. Essa metodologia, sem dúvida saudável para principiantes que tendem a voar mais alto que suas asas permitem, não justifica os cuidados que metodicamente são tomados em "Cineastas e Imagens do Povo". Parece faltar ar ao livro: o ar da história do documentário, dos movimentos cinematográficos, do Cinema Novo, dos autores e sua obra, da história do Brasil.
Como não mencionar a importância que teve o aparecimento da estética e das técnicas do cinema direto para o cinema documentário que se fazia no Brasil em 1962/63? A análise fílmica não dá conta do horizonte histórico, fazendo com que o eixo "evolutivo" que o livro estabelece na representação do "outro de classe", passe a ocupar um lugar excessivo. O fato de a representação manter a voz off tradicional do classicismo documentário, na forma de um saber sociológico, pode significar pouco se inserirmos filmes como "Viramundo" e principalmente "Maioria Absoluta" no contexto de afirmação do cinema direto que atinge em cheio os jovens do Cinema Novo.
Em "Maioria Absoluta", ouvimos a voz e, mais particularmente, a fala do povo em toda sua profusão e espontaneidade. O filme é dedicado a essa fala, embora não tenha tido a coragem de deixá-la dominar por completo a narrativa. O ponto está, então, no contexto histórico que torna possível essa "imagem": a chegada no Brasil dos ecos do documentário direto, trazendo a descoberta dos procedimentos técnico/estilísticos de depoimento e entrevista.
Sucksdorff no Rio, a chegada dos primeiros Nagras, Joaquim Pedro em Nova York com os irmãos Maysles, a repercussão dos trabalhos de Rouch, Leacock, Drew, tudo desaparece para dar lugar à permanência de resquícios do documentário clássico, presentes na "voz sociológica". O estabelecimento muito marcado de uma linha "evolutiva", centrada na ética pós-estruturalista de constituição da subjetividade, desloca, a meu ver artificialmente, o ponto de ruptura, no cinema brasileiro, com o documentário clássico: de "Garrincha, a Alegria do Povo", "Maioria Absoluta", "Integração Racial" e "Viramundo", passamos para filmes posteriores, e de menor significação, como "Congo" ou "Lavrador".
Seguindo o raciocínio, é possível transferir essa questão às duas versões de "Cabra Marcado para Morrer". No exercício do "se", proposto pelo livro, podemos considerar, a partir do material que restou, que o primeiro "Cabra" (1964), uma vez concluído, nada mais seria do que um "docudrama" sobre a luta camponesa, apesar do conteúdo temático inovador que a análise de Jean-Claude aponta.
O primeiro "Cabra", na realidade, revela-se (e aqui podemos enxergar o distanciamento e as proximidades entre o grupo cinemanovista e o CPC/UNE) um "docudrama" de reconstituição histórica bastante tradicional, isolado do trabalho que vinha sendo desenvolvido na área do documentário pela geração cinemanovista em 1962/63. E é somente no segundo "Cabra" (1984) que Eduardo Coutinho vai estabelecer uma linha de continuidade com a estilística do "direto", mas já agora em um outro contexto e, principalmente, mediado por sua experiência na reportagem televisiva, particularmente no Globo Repórter.
Um dos inconvenientes da análise fílmica é que dificulta a incorporação mais orgânica da contextualização histórica.
"Cineasta e Imagens do Povo" afirma-se nesse campo, adquirindo a espessura de um clássico e mostrando um autor que atua para além das modas. Embora hoje a produção e a reflexão sobre cinema documentário tenham se transformado em tema do momento, atraindo críticos que costumam colar-se à sensibilidade da mídia, esse livro foi escrito quando a questão popular e o gênero documentário estavam completamente fora do foco de atenção. Quase 20 anos depois, estamos de volta às questões levantadas por "Cineastas e Imagens do Povo", agora com o brilho da última atualidade.


Fernão Pessoa Ramos é professor de história e teoria do cinema da Unicamp, autor de "Cinema Marginal -1968/1973" (Brasiliense).

Cineastas e Imagens do Povo
Jean-Claude Bernardet
Companhia da Letras (Tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
318 págs., R$ 38,00


Texto Anterior: O espectro de Glauber
Próximo Texto: Três batutas
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.