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O outro somos nós
Uma análise da representação do popular no cinema brasileiro
FERNÃO PESSOA RAMOS
"Cineastas e Imagens do Povo" morde
na veia forte do cinema brasileiro: a representação do popular. Jean-Claude
Bernardet fez parte da história desse cinema, em particular daquele que foi proposto e realizado pela geração dos anos
1960. Seus livros pontuam a crítica de cinema no Brasil. Neste, estabelece a linha
de costura desse percurso, abordando a
questão do popular dentro de um recorte
que problematiza a posição do sujeito
que enuncia a representação. No conceito
que define o popular enquanto "outro de
classe" se delineia sua originalidade. Trata-se de uma análise que "Brasil em Tempo de Cinema" (1967) introduz e sobre a
qual irá girar parcela significativa da reflexão sobre o cinema brasileiro.
O conceito "outro de classe" tem sua
singularidade dentro do campo dominante dos "estudos culturais" -propostos inicialmente nos países centrais-,
desenvolvido a partir de estudos sobre a
alteridade racial (negra, indígena), sexual
(feminismo, homossexuais) etc., com
forte incidência na teoria do cinema. No
caso do cinema brasileiro, a evidência salta aos olhos: as questões epistemológicas
relativas à representação do outro e ao estatuto da subjetividade estão permeadas
pela fratura social. O "outro" somos nós,
configurados também como como alteridade em relação aos excluídos. Esse é o
corte que nos perpassa e sobrepõe-se.
"Cineastas e Imagens do Povo" é assombrado por uma ética bem característica dos anos 60, que, entre outros, possui
como traço a dificuldade em se enxergar
historicamente. Uma dificuldade própria
das ideologias consensuais no período de
sua dominância histórica.
Essa reedição compõe-se de dois blocos: o original (a íntegra do texto de 1985)
e outro escrito posteriormente nos anos
90, com alguns textos de 2003. No centro
de sua abordagem está a produção do cinema documentário brasileiro que, nos
anos 1960 e 70, vive um momento particularmente positivo.
A questão metodológica é central para
o autor, pois trata-se de não repetir, na
análise da produção cinematográfica, os
erros éticos que incidem sobre os documentários analisados. Mas quais são esses erros e como o movimento de análise
espera resolvê-los?
No eixo da questão está a reafirmação
da postura humilde do sujeito epistemológico que cerca o pensamento dito pós-estruturalista no qual o livro está inserido. A validade ética das asserções que a
voz que enuncia o documentário estabelece sobre o povo é questionada em sua
raiz, a partir de uma análise da narrativa.
Jean-Claude põe em evidência o que chama de "modelo sociológico", no qual, na
representação do universo popular, a voz
off seria composta por enunciados que
reafirmam o saber sobre o outro, reduzindo a nada a dimensão da expressão
desse outro.
Esse é o ponto cego da ética pós-estruturalista que surge nos anos 60 e domina
nosso universo ideológico até hoje. O sujeito humilde (que se apaga dando "voz"
ao outro) é visto positivamente e o livro
tem como parâmetro a "evolução" do cinema documentário nessa direção. "Viramundo" (1965), de Geraldo Sarno, para
grande aflição de seu diretor, está em
uma ponta; "Jardim Nova Bahia" (1971,
de Aloysio Raulino, no qual uma câmera
é, de modo pioneiro, fornecida ao povo),
"Lavrador" (1968, Paulo Rufino) e "Indústria" (1968, Ana Carolina), na outra. A
postura humilde fica ainda mais realçada
em "Congo" (1972), de Arthur Omar, no
qual o conteúdo da manifestação popular
(a congada) desaparece ou se fragmenta,
e a mediação se torna o tema central. No
segundo bloco, continua embutido o
ponto de evolução que a primeira edição
do livro já contém e solicita. Isso surge de
modo nítido nas análises do documentário de entrevista, assim como na crítica
implícita ao estilo dos últimos filmes de
Eduardo Coutinho e na ênfase da importância da manifestação do diretor na forma do documentário-entrevista. Nessa linha, não basta apenas mostrar (o recuo
do sujeito/cineasta não se sustenta eticamente) e muito menos se deve afirmar
um saber: trata-se de deixar claras para o
espectador as condições que cercam a
enunciação da alteridade.
Mas o livro está longe de ser apenas um
receituário de condutas para a realização
de um bom documentário ou para o estabelecimento de uma postura normativa.
Sofisticado metodologicamente, traz para a escrita do texto o desafio que apresenta para os cineastas. Como escapar do
questionamento do saber, implícito na
dialética do particular/geral, que o próprio livro estabelece para seu objeto?
A saída proposta tem a ver com uma
forma de análise, presente não apenas no
campo cinematográfico (a análise estrutural), mas que nessa área teve uma profunda influência na academia: a análise
fílmica. A idéia é trabalhar grudado ao
texto do filme, evitando qualquer salto do
particular para o geral que suponha a
afirmação de um sujeito do saber. Mais
uma vez, a modéstia aqui é servida de
bandeja. Qualquer enunciado mais geral
deve ser castrado para que o sujeito atenha-se à (in) significância do texto.
As análises do primeiro bloco do livro
são fortes, mostrando um crítico arguto,
conhecedor de seu objeto, no exercício
pleno de sua atividade. Seu trabalho está
longe de possuir o caráter enfadonho e
descritivo que muitas vezes é suscitado
por essa metodologia. Mas o leitor não
tem como deixar de se sentir abafado pela
insistência em se ater aos filmes. Essa metodologia, sem dúvida saudável para
principiantes que tendem a voar mais alto que suas asas permitem, não justifica
os cuidados que metodicamente são tomados em "Cineastas e Imagens do Povo". Parece faltar ar ao livro: o ar da história do documentário, dos movimentos cinematográficos, do Cinema Novo, dos
autores e sua obra, da história do Brasil.
Como não mencionar a importância
que teve o aparecimento da estética e das
técnicas do cinema direto para o cinema
documentário que se fazia no Brasil em
1962/63? A análise fílmica não dá conta
do horizonte histórico, fazendo com que
o eixo "evolutivo" que o livro estabelece
na representação do "outro de classe",
passe a ocupar um lugar excessivo. O fato
de a representação manter a voz off tradicional do classicismo documentário, na
forma de um saber sociológico, pode significar pouco se inserirmos filmes como
"Viramundo" e principalmente "Maioria
Absoluta" no contexto de afirmação do
cinema direto que atinge em cheio os jovens do Cinema Novo.
Em "Maioria Absoluta", ouvimos a voz
e, mais particularmente, a fala do povo
em toda sua profusão e espontaneidade.
O filme é dedicado a essa fala, embora
não tenha tido a coragem de deixá-la dominar por completo a narrativa. O ponto
está, então, no contexto histórico que torna possível essa "imagem": a chegada no
Brasil dos ecos do documentário direto,
trazendo a descoberta dos procedimentos técnico/estilísticos de depoimento e
entrevista.
Sucksdorff no Rio, a chegada dos primeiros Nagras, Joaquim Pedro em Nova
York com os irmãos Maysles, a repercussão dos trabalhos de Rouch, Leacock,
Drew, tudo desaparece para dar lugar à
permanência de resquícios do documentário clássico, presentes na "voz sociológica". O estabelecimento muito marcado
de uma linha "evolutiva", centrada na ética pós-estruturalista de constituição da
subjetividade, desloca, a meu ver artificialmente, o ponto de ruptura, no cinema
brasileiro, com o documentário clássico:
de "Garrincha, a Alegria do Povo",
"Maioria Absoluta", "Integração Racial"
e "Viramundo", passamos para filmes
posteriores, e de menor significação, como "Congo" ou "Lavrador".
Seguindo o raciocínio, é possível transferir essa questão às duas versões de "Cabra Marcado para Morrer". No exercício
do "se", proposto pelo livro, podemos
considerar, a partir do material que restou, que o primeiro "Cabra" (1964), uma
vez concluído, nada mais seria do que um
"docudrama" sobre a luta camponesa,
apesar do conteúdo temático inovador
que a análise de Jean-Claude aponta.
O primeiro "Cabra", na realidade, revela-se (e aqui podemos enxergar o distanciamento e as proximidades entre o grupo cinemanovista e o CPC/UNE) um
"docudrama" de reconstituição histórica
bastante tradicional, isolado do trabalho
que vinha sendo desenvolvido na área do
documentário pela geração cinemanovista em 1962/63. E é somente no segundo
"Cabra" (1984) que Eduardo Coutinho
vai estabelecer uma linha de continuidade com a estilística do "direto", mas já
agora em um outro contexto e, principalmente, mediado por sua experiência na
reportagem televisiva, particularmente
no Globo Repórter.
Um dos inconvenientes da análise fílmica é que dificulta a incorporação mais
orgânica da contextualização histórica.
"Cineasta e Imagens do Povo" afirma-se nesse campo, adquirindo a espessura
de um clássico e mostrando um autor
que atua para além das modas. Embora
hoje a produção e a reflexão sobre cinema
documentário tenham se transformado
em tema do momento, atraindo críticos
que costumam colar-se à sensibilidade da
mídia, esse livro foi escrito quando a
questão popular e o gênero documentário estavam completamente fora do foco
de atenção. Quase 20 anos depois, estamos de volta às questões levantadas por
"Cineastas e Imagens do Povo", agora
com o brilho da última atualidade.
Fernão Pessoa Ramos é professor de história e
teoria do cinema da Unicamp, autor de "Cinema
Marginal -1968/1973" (Brasiliense).
Cineastas e Imagens do Povo
Jean-Claude Bernardet
Companhia da Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3707-3500)
318 págs., R$ 38,00
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