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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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A poesia completa de Cacaso analisada por Heloisa Buarque de Hollanda

O poemão de todos nós


Lero-Lero (1967-1985)
Cacaso
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
304 págs., R$ 39,00

HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA

Mesmo inacessível por mais de 15 anos, a obra de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, não desapareceu do nosso panorama poético. Ao contrário, sua presença nos idos da década de 1970 continua sendo uma forte referência para os poetas da geração 1980/90. Talvez por causa disso, a atual edição de sua obra completa, em "Lero-Lero", não seja apenas a redescoberta do poeta Antônio Carlos de Brito, mas uma importante dívida saldada para a compreensão da poesia dos anos 70.
Poeta em tempo integral, ensaísta, letrista, desenhista, principal articulador e teórico da poesia marginal, Cacaso foi, antes de mais nada, personagem totalmente singular numa hora em que a poesia foi eleita como a forma de expressão predileta da geração que experimentou, de forma cabal, o peso dos anos de chumbo. Num certo sentido, Cacaso nos colocou uma armadilha interessante: pensar sua poesia sem pensar na sua vida é quase errado.
Sobre a personagem Cacaso, que começava insofismavelmente no layout que criou para si próprio, não posso evitar de citar Roberto Schwarz, que, com argúcia, fez o desenho mais definitivo que temos do poeta (e como pára-efeito, também de sua poesia):
"A estampa de Cacaso era rigorosamente 68: cabeludo, óculos John Lennon, sandálias, paletó vestido em cima de camisa de meia, sacola de couro. Na pessoa dele entretanto esses apetrechos de rebeldia vinham impregnados de outra conotação mais remota. Sendo um cavalheiro de masculinidade ostensiva, Cacaso usava a sandália com meia soquete branca, exatamente como era obrigatório no jardim-de-infância. A sua bolsa a tiracolo fazia pensar numa lancheira, o cabelo comprido lembrava a idade dos cachinhos, os óculos de vovó pareciam de brinquedo, e o paletó, que emprestava um decoro meio duvidoso ao conjunto, também".
Sabidíssimo, meio interiorano, meio irônico, ressabiado, conseguindo manter uma ambiguidade cortante, Cacaso foi fiel a esse personagem em todas as situações. Como poeta, como professor, como letrista, como amigo.
Quando escreve, por exemplo, o poema "Na Corda Bamba": "Poesia/ Eu não te escrevo/ Eu te/ Vivo/ E viva nós!", num poema que, à primeira vista, poderia ser classificado como um versinho "rápido e rasteiro", Cacaso mostra o que seria o traço distintivo do conjunto de sua obra. Ao escrever "Na Corda Bamba", o poeta não estava na certa defendendo uma posição ingenuamente vitalista nem mesmo pregando a gratuidade como valor poético. O poema, que se tornou um de seus best-sellers e foi dedicado a Chico Alvim, tem um sentido bem mais fino e ácido do que aparenta.
Cacaso era um aplicado teórico em tempo integral. A questão que levanta aqui -a gratuidade como ponto de partida e pressuposto da criação artística- é, na realidade, um problema que perpassou vários estudos do crítico-poeta. No artigo "Alegria da Casa", de 1980, diz: "O modernismo, para quem a criação é igual à realização, em ato, de um ideal, é portanto um esforço empenhado em prol da gratuidade, da autonomia das coisas e dos valores, um jeito de constranger para que a espontaneidade pudesse aflorar sem constrangimento, o que em si já configura um paradoxo".
Voltando ao emblemático poema de Cacaso, tudo indica que a aparente gratuidade proposta no poema coloca em pauta a contradição que inevitavelmente se esboça quando nos aproximamos de um poema "autenticamente marginal". Ou seja, quando o poeta marginal propõe uma quase coincidência entre poesia e vida, essa proposta poderia, no limite, resultar no desaparecimento da própria poesia. É a produção poética literalmente "na corda bamba" (que aliás dá nome não apenas ao poema, mas também ao livro), na qual o poeta marginal consegue equilibrar-se quase sempre com alguma dificuldade. Um caminho difícil e conflituado que pode ser entrevisto na própria trajetória da obra poética de Cacaso.
Em 1967, Antonio Carlos de Brito lança "Palavra Cerzida", um livro ainda muito tímido e dentro dos padrões literários do momento. Já "Grupo Escolar" (1974), uma edição que traz a marca da produção coletiva e semi-artesanal, mostra o poeta pressentindo outros caminhos, identificado com o grupo que integra a "Coleção Frenesi": Chico Alvim, Geraldinho Carneiro e Roberto Schwarz.


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