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O poemão
É interessante registrar que só
em 1975, com "Beijo na Boca" e
"Segunda Classe", Antônio Carlos de Brito passa a assinar Cacaso
(1944-87). É esse o momento no
qual definitivamente abandona o
tom elevado e começa um duro
trabalho de "desrepressão" da linguagem que se consolida com a
publicação de "Na Corda Bamba"
(1978) e "Mar de Mineiro" (1982).
É dessa época a intensificação
de seu contato com os poetas
mais novos, do grupo "Nuvem
Cigana", como Charles, Chacal,
Luiz Olavo Fontes, João Carlos
Pádua, Guilherme Mandaro, Ronaldo Santos, Bernardo Vilhena e
outros.
É também dessa época sua performance como o teórico e maior
aglutinador da poesia marginal,
articulando projetos, coleções, interpretando, criticando, até "explicando para os poetas o que eles
estavam fazendo", como lembrou
Charles em recente entrevista.
Nessa mesma época, começa a
releitura sistemática do projeto
modernista e a escrever seus ensaios mais complexos sobre o novo "surto poético" que fazia a cena dos anos 70. Exemplares são os
artigos "Tudo de Minha Terra",
"26 Poetas Hoje", "Coleção Capricho" ou mesmo o "Poeta do Outros", estudo inacabado sobre
Chico Alvim. Incansável, Cacaso
colocava a poesia marginal em
perspectiva, punha questões em
marcha, denunciava as mazelas
da vida literária e acadêmica, como na polêmica que alimentou
sobre o estruturalismo, muito em
voga naquela hora.
Banquete de todos
Foi ainda nesse período, que começou a desenvolver seu grande
insight sobre a poesia marginal, a
tese do "poemão". Percebendo
uma certa transitividade entre os
autores, os assuntos e as atitudes,
Cacaso começa a sistematizar a
idéia de que cada poema marginal
era, na verdade, parte de uma experiência mais geral e transcendente. Como se a poesia de cada
um fosse parcela integrante de
um mesmo poema maior, um
poemão, que todos estivessem escrevendo juntos e cuja matéria era
a experiência do período da repressão.
Insight que desenvolve com
mais cuidado no artigo que deixou inédito sobre Chico Alvim.
Dizia Cacaso: "Houve um momento em que a poesia tornou-se
um banquete de todos". E observa
como nesse movimento de produção, o peso maior é do coletivo,
o que traz como contrapartida
uma notável desindividualização
da autoria, na qual o grande lugar-comum poético foi o poema
curto, de registro direto e breve,
em tom coloquial.
Essa questão da não-autoria e
do poema curto foi experimentada diretamente em "Segunda
Classe" (1975). Escrito durante
uma viagem ao rio São Francisco
em parceria com Luiz Olavo Fontes, "Segunda Classe" não tem nenhum poema identificado como
tendo sido escrito por este ou por
aquele poeta, construindo meticulosamente um eterno disfarçar
da autoria.
Um ponto inexplicável na editoria de "Lero-Lero" é ter "corrigido" essa indefinição nomeando,
em cada poema, seu "verdadeiro
autor" e, por consequência, golpeando ao mesmo tempo o grande "leitmotiv" e a questão central
de "Segunda Classe".
Outro problema desta edição,
diga-se de passagem, belíssima e
bem cuidada é a eliminação das
ilustrações que o poeta havia incluído nas publicações originais.
Os desenhos infantis de seu filho
Pedro, em "Na Corda Bamba", o
desenho da Massoca em "Segunda Classe" ou sua foto de matuto,
de chapéu de palha, limpando a
unha com um facão, enquanto,
feliz, pitava um cigarrinho em
"Mar de Mineiro". Imagens com
valor-texto, claramente produzidas e estruturadas no conjunto de
cada livro.
Voltando às questões da poética
marginal que não fogem da mira
de Cacaso, quero ainda apontar
os conflitos que se apresentam
quando o poeta trabalha assumidamente com os valores ingenuidade, gratuidade e espontaneidade como pontos de partida de sua
criação poética.
No artigo "Alegria da Casa", Cacaso lembra que Manuel Bandeira
chamava a atenção para a inexistência, na nossa poesia, de inspiração nacional, do poeta matuto,
aquele cuja obra se confundisse
com o assunto e ambos com o sertão. São precisamente esses valores modernistas que seriam examinados e trazidos para a poesia
de Cacaso num sentido bastante
diferenciado daquele realizado
pelo concretismo poucos anos
antes. No caso de Cacaso, esse resgate revestia-se, muitas vezes, do
caráter de intervenção cultural e
mostrava um viés estratégico.
Lado paradoxal
A valorização do coloquial, do
fato cotidiano, a sistematização
do direito de errar como princípio
mesmo da arte ressurgem agora
com ênfase em interpretações visceralmente contextualizadas e
historicizadas, definindo uma releitura, digamos, mais cultural do
literário.
Por outro lado, a ênfase na gratuidade e na espontaneidade, que
se tornaram bandeiras da produção marginal, apresenta seu lado
paradoxal: a pressuposição inevitável do poeta como um ser simples, sem duplicidade, identificado consigo mesmo. O poeta matuto que Bandeira queria. Cacaso
procura enfrentar esse conflito
promovendo a difícil manutenção de um equilíbrio instável,
quase imobilizante, em sua poesia. A prova mais eloquente de solução deste paradoxo é "Beijo na
Boca", um livro inteiro sobre o
amor, curiosamente um tema não
muito caro aos poetas marginais.
Sobre isso, o posfácio de Clara
Alvim para a edição original é esclarecedor. Diz Clara: "A poética
fundamental de "Beijo na Boca" é a
não escolha face à impossibilidade de opção -entre dois amores,
entre dois poemas. Fiquem as
duas namoradas, o passado não
se ultrapasse, fique mais de um
estilo; sobreponham-se e sucessivamente briguem entre si".
É precisamente essa negociação
calculada com as bandeiras e com
os paradoxos da poesia marginal
que promove a importância da
aspereza e da ambivalência de
textura na obra de Antônio Carlos
de Brito, o Cacaso. Seja em suas
letras de música, impregnadas de
procedimentos literários, seja em
sua poesia, profundamente vinculada às regularidades e irregularidades rítmicas, seja nos seus ensaios e estudos, a um tempo especulativos e militantes, ou mesmo
no design inesquecível de sua personagem. Dizia Charles na mencionada entrevista: "Cacaso não
era um matuto enrustido. Era um
jeca abusado".
Prefiro citar o próprio Cacaso
em seu poema "Modéstia à Parte": "Exagerado em matéria de
ironia e em/ Matéria de matéria
moderado".
Heloisa Buarque de Hollanda é professora de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, com Zuenir Ventura, de "Cultura em Trânsito - Da Repressão à Abertura" (Aeroplano).
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