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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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Coleção leva o leitor aos ateliês de vários artistas mineiros

O outro lado da obra


Coleção Circuito Atelier
20 volumes (Maria Helena Andrés, Andréa Lanna, Mônica Sartori, Júlio Resende, Amilcar de Castro, Fernando Lucchesi, Orlando Castaño, Arlindo Daibert, Isaura Pena, Hélio Siqueira, Eymard Brandão, Erli Fantini, Sara Ávila, Álvaro Apocalypse, Fani Bracher, Lotus Lobo, Rodelnégio, Jorge dos Anjos, Franz Weissmann e Rosângela Rennó)

Coordenação: Fernando Pedro da Silva e Marília Andrés Ribeiro
C/Arte (Tel. 0/xx/31/3491-2001)
96 págs. e R$ 20,00 cada volume

ANNATERESA FABRIS

Desde a publicação de "O Livro da Arte", de Cennino Cennini, no final do século 14, têm sido constantes as manifestações dos artistas plásticos sobre os próprios processos de trabalho e sobre o fenômeno artístico em geral. Se o tratado de Cennini é representativo de um momento da história da arte no qual o artista era ainda considerado um artesão, o século 15 propicia, ao contrário, o surgimento de um conjunto de reflexões por parte de nomes como Alberti, Piero della Francesca, Leonardo, Filarete, Dürer, as quais podem ser enfeixadas em três grupos principais: tratados sobre a perspectiva e sobre a pintura como um método de reprodução fidedigna da realidade; busca de leis universais para a composição; discussão do conceito de beleza.
O engajamento dos artistas numa discussão profunda sobre os processos criadores e as concepções a eles subjacentes é resultado direto de uma transformação radical de seu estatuto na sociedade daquele período: deixam de lado a condição de artesãos para serem alçados à de intelectuais. Tendo como destinatários tanto o ambiente artístico quanto o público em geral, os discursos dos artistas ampliam-se cada vez mais, atingindo um momento particularmente fecundo no século 19.

Intervenção pública
A exaltação da expressão pessoal desde o Romantismo explica o papel fundamental desempenhado pela correspondência e pelo diário. A seu lado deve ser destacado um conjunto de manifestações públicas, que marca a inserção do pensamento do artista no circuito social da arte e sua tomada de posição em relação às poéticas contemporâneas: artigos para jornais e revistas; textos de apresentação para as próprias exposições; manifestos, entre outros.
Ao herdar essas modalidades de intervenção pública, o século 20 não só as multiplica, como as transforma em passagens obrigatórias na relação do artista com a sociedade, pois detecta nelas uma consciência específica do novo papel a ser desempenhado pela arte. Obra e teoria tornam-se cada vez mais interdependentes: enquanto projeto estético, a vanguarda só alcança sua plena significação quando essas duas dimensões se encontram reunidas num programa operacional, num projeto, cuja expressão tanto poderá ser explícita quanto implícita.
Guiado por um intuito pedagógico, o artista moderno, além de manifestos, escreve artigos e livros, nos quais expõe, quase sempre, suas próprias concepções de arte e seus métodos de trabalho. Matisse, Léger, Lhote, Boccioni, Carrà, Severini, Soffici, Kandinsky, Klee, Albers, Mondrian são alguns exemplos de artistas-teóricos que se destacam nas primeiras décadas do século 20. Embora no segundo pós-guerra a relação do artista com o público enverede por outras formas de discussão da problemática artística, é possível detectar a existência de uma postura pedagógica quer em defensores de uma pesquisa de cunho rigoroso e programado, como Bill e Vasarely, quer em arautos de uma expressão espontânea e profundamente subjetiva como Dubuffet e Mathieu.

Definição de arte
Nas décadas de 60 e 70 a atitude teórica torna-se dominante graças ao minimalismo e à arte conceitual. Morris, por exemplo, está sobretudo interessado em explicitar em seus artigos a moldura teórica que justifica a própria práxis artística. Kosuth, por sua vez, apresenta a vertente conceitual como um processo contínuo de auto-análise, auto-reflexão, no qual cada proposição é uma definição de arte.
Como os artistas brasileiros se inscrevem nesse quadro de referências? Tomando como primeiro parâmetro o modernismo, é possível dizer que a bem poucos artistas pode ser atribuído um projeto articulado, embora a maioria tenha se posicionado em entrevistas, artigos e correspondências. As atitudes de Flávio de Carvalho, Paulo Rossi Osir, Portinari, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral (cujo papel de cronista foi valorizado numa publicação recente da Edusp) constituem exceções num panorama dominado muito mais pela prática de ateliê do que pelo interesse em elaborar programas e teorias, quase sempre apanágio de uma crítica de extração literária. O panorama torna-se mais denso nos anos 50, graças a uma presença fundamental como Waldemar Cordeiro, cujos escritos estão sendo resgatados em teses, catálogos, livros e no CD-Rom organizado pela filha Analívia em 2001.
O rastreamento da poética implícita dos artistas brasileiros depende fundamentalmente de pesquisas que organizem um corpus de textos, inserindo-o num aparato crítico adequado, mas não pode prescindir do interesse de editoras dispostas a trazer a público um tipo de produção, em geral desconhecida no próprio circuito especializado.
Se as editoras brasileiras têm demonstrado interesse pela divulgação de textos de figuras populares como Gauguin e Van Gogh, de livros pedagógicos de artistas ligados à Bauhaus, da antologia de Herschell Chipp ("Teorias da Arte Moderna", Martins Fontes), não se nota um esforço semelhante em relação à produção nacional.
As exceções são poucas e bastante rarefeitas: o catálogo "Projeto Construtivo Brasileiro na Arte" (Pinacoteca/ MAM-RJ, 1977); as entrevistas com expoentes da abstração geométrica e informal, publicadas por Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger em (Rocco, 1987); a divulgação do pensamento de Hélio Oiticica em "Aspiro ao Grande Labirinto" (1986) e na correspondência que trocou com Lygia Clark (1996); a nova edição de "Experiência no 2", de Flávio de Carvalho (Nau Editora, 2001); os seis volumes da coleção "Palavra do Artista" (1998-1999); a edição póstuma do "Caderno de Escritos", de Arlindo Daibert (Sette Letras, 1995), entre outros.
Justamente a Daibert é dedicado o volume mais completo da coleção "Circuito Atelier", idealizada pela C/Arte, de Belo Horizonte. Coordenada por Fernando Pedro da Silva e Marília Andrés Ribeiro, a coleção, cujo início data de 1998, tem como objetivo levar o público a adentrar os ateliês de artistas que atuam ou atuaram em Minas Gerais. Para tanto, conjuga uma farta seleção de obras e uma cronologia com um depoimento autobiográfico ou uma entrevista, em que são expressas concepções de arte e é reconstruída uma trajetória, ora de maneira mais sintética, ora concedendo um espaço significativo à fala do artista, como acontece no caso de Daibert.

Entrevistas
Homenagem ao artista falecido em 1993, o volume dedicado a Daibert traz diversas entrevistas, trechos de cartas, textos inéditos, além da reprodução de artigos já divulgados em "Caderno de Escritos", configurando-se como um apanhado bastante completo de sua visão artística e crítica. Trata-se de uma exceção no âmbito da concepção geral da coleção, uma vez que a maior parte dos artistas -Amilcar de Castro, Fernando Lucchesi, Orlando Castaño, Isaura Pena, Hélio Siqueira, Eymard Brandão, Fani Bracher, Lotus Lobo, Rodelnégio, Franz Weissmann e Rosângela Rennó- opta pela entrevista. Esse tipo de opção nem sempre pode ser atribuído a uma "dificuldade" dos artistas em relação à escrita, como comprovam os poemas e os artigos de Amilcar de Castro publicados na imprensa, ou a postura de Rosângela Rennó, que acredita que a complexidade de muitas manifestações contemporâneas torna necessária a presença do texto do autor enquanto "outro lado" da obra.
Os artistas que preferiram o depoimento autobiográfico -Maria Helena Andrés, Andréa Lanna, Mônica Sartori, Marco Túlio Resende, Erli Fantini, Sara Ávila, Álvaro Apocalypse, Jorge dos Anjos- abordam a problemática do texto de diversas maneiras, mas quase todos se detêm numa explicitação da própria concepção de arte, vista como o desenvolvimento de uma necessidade vital. Maria Helena Andrés atribui à arte a possibilidade de transformação da humanidade, desde que se liberte "dos antigos padrões do passado, do mito do sucesso, da valorização da mídia, da ambição material".
Para Mônica Sartori, a gestualidade de seus desenhos pode ser reportada a um plano existencial, no qual a artista se mostraria capaz de captar "todas as angústias do mundo" e transformar os próprios medos. Marco Túlio Resende afirma que se dedica à arte "por instinto de sobrevivência". Jorge dos Anjos, que se vincula a uma matriz africana, considera o próprio fazer "quase religioso".
A importância da operação empreendida pela C/Arte, que traz a público diferentes visões do fato artístico e do fazer criador, não pode fazer esquecer que a fala do artista deve ser analisada com a devida cautela, pois não são raros os casos em que são negados diálogos (evidentes) com outros criadores ou são refutadas, sem outras explicações, interpretações propostas pela crítica. Isso fica evidente, por exemplo, na entrevista de Franz Weissmann, que recusa a aproximação dos "Amassados" e das "Esculturas Moles" aos "Bichos" de Lygia Clark, aventada por Sônia Salzstein, com um simples: "Não há nada em comum, não tem nada a ver", mesmo reconhecendo que, no período em que as obras foram realizadas, esteve muito próximo e trocou experiências com a artista.
O material visual e a cronologia que acompanham os depoimentos e as entrevistas do "Circuito Atelier" permitem que seja estabelecida uma relação pontual entre palavra e imagem e que seja elaborado um quadro referencial bastante completo. Uma sugestão, que poderia ser feita para tornar os volumes ainda mais úteis para o público e para os especialistas, diz respeito à inclusão de uma bibliografia selecionada. Esta enriqueceria, sem dúvida, a concepção pedagógica da coleção, que se desdobra numa exposição, na realização de um vídeo e na veiculação da produção de cada artista no site da editora. Num panorama ainda pobre em termos de publicações artísticas, só se pode elogiar a iniciativa da C/Arte e auspiciar que ela sirva de exemplo a outras editoras.

Annateresa Fabris é professora de pós-graduação em artes da Escola de Comunicação e Artes da USP e autora, entre outros livros, de "Fragmentos Urbanos" (Studio Nobel).


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