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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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Coletânea discute o equilíbrio entre os poderes no Brasil

Democracia em ato


A Democracia e os Três Poderes no Brasil
Luiz Werneck Vianna (org.)
Ed. UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4642)
569 págs., R$ 47,00

CESAR GUIMARÃES

Na apresentação a esta coletânea, Luiz Werneck Vianna nos alerta para eventual convergência de perspectivas dos artigos reunidos, que não resultou de deliberada diretriz unificante, mas de afinidades da equipe sobre as questões da justiça e da democracia em nosso país. Teorias e métodos tão diversificados, acrescento, convergiram porque decorreram de pressuposições tácitas, para cujo entendimento gostaria de sugerir um procedimento quase alegórico, permitido, talvez, a um não-historiador praticante de irresponsabilidades metodológicas: o da datação imaginária. As obras são desses dois recentes anos, mas a convergência data de 1988, momento em que podemos falar de nosso patriotismo constitucional e orgulho cívico, e de 1989, a circunstância fatídica de seu avesso.
É, portanto, uma obra que extrapola o cânone acadêmico, pois, para além de seus méritos nesse plano, é trabalho do conceito de democracia em ato, na única forma em que ele se pode dar, isto é, na resistência, teórica ou ativa, a seus opostos (porque são vários), tão poderosamente presentes desde a década de 1990.
Sabe-se, com Aristóteles, que o governo do maior número -vale dizer dos pobres-, que a ele tanto repugnava, não existe. Nem pode existir em sua plenitude, quer na modernidade, quer numa Atenas não idealizada pela historiografia. A democracia é, antes, um agir continuado de resistência e de conquistas do grande número. É a afirmação permanente da "inquietude sem demandas definidas", da "potência constituinte reprimida" a que alude o trabalho de Maria Alice Rezende de Carvalho, com a cautela de ressalvar a importância da institucionalidade democrática a tanto custo conquistada. Tenho dificuldades com a noção de "institucionalidade" conjugada à de democracia, à conta, é claro, da noção mesma de democracia que esbocei. Não as tenho em relação ao uso da institucionalidade da República para objetivos democratizantes, o uso propiciado pelas características de "obra aberta" da Constituição de 1988, a que Gisele Cittadino dedicou um belo livro e mais a sua contribuição a esse volume.
Nos limites impostos por qualquer institucionalização -é essa abertura que enseja patriotismo constitucional-, ela abre espaços para práticas democráticas que se conjugam ou podem ir além das do "governo representativo" convencional, a que usualmente denominamos democracia. Mas, se essa Constituição é obra aberta, a democracia é atividade sempre inacabada, que nos interpela sobre o que pode vir a ser, para lembrar o princípio esperança, de Ernst Bloch. Não existe como forma de governo porque não é uma institucionalidade, mas um processo. Democracia é democratização; e democratização remete ao maior número, ou seja, aos pobres de Aristóteles.
E porque assim é, há de se buscar os instrumentos de democratização onde eles estejam, em condições propícias ou adversas -as adversidades, por exemplo, dos nossos anos 90. Outro não é o objetivo, a meu juízo, do empreendimento de Luiz Werneck Vianna, de Maria Alice Rezende de Carvalho, de Manuel Palácios e de Marcelo Burgos em seu livro sobre a judicialização da política e das relações sociais no Brasil, que conhece agora um desdobramento no longo trabalho de Werneck Vianna e Burgos, sequência e aprofundamento de sua "Introdução".
Aludo à introdução a esse específico trabalho a partir de uma citação, no caso, de Sue Golding, sobre a teoria democrática de Antonio Gramsci: "Haverá um jeito de assimilar as contribuições de Gramsci à teoria democrática pós-liberal, pondo de lado seus aspectos teleológicos, vale dizer, sem ter que tomar como transcendental a eticidade de um determinado agente social?". Salvo melhor juízo, a alusão à teleologia e a "determinado agente social" refere-se ao proletariado, em seu significado marxista, cujas dificuldades, na década de 1990, são objeto do artigo de Adalberto Moreira Cardoso.
A democratização perdeu a esquerda como seu agente privilegiado nos últimos 200 anos, sua classe universal. E contudo persiste pela ampliação dos instrumentos à disposição do homem comum, expressão reiterada de Werneck Vianna, pela via do que vem chamando de "uma revolução passiva em registro positivo", que, ao falar do homem comum ou do "homem massa", se pergunta se essas noções (e realidades) permitem a constituição de um (novo?) "personagem democrático em geral", capaz de valer-se das instituições representativas ou assim chamadas -mas também dos espaços de participação e deliberação de que o Judiciário seria uma instância-, conforme apontam os textos de José Eisenberg e Manuel Palácios.
Aqui reitero a idéia do desejo, da esperança e do valor da noção de democratização como luta milenar, a que Werneck se refere como democracia progressiva. Os homens comuns sempre foram os seus agentes, o operário de ontem foi o anabatista de anteontem. O que nos põe a questão do que será a nova forma daquilo que Antonio Negri, em seu espinozismo, alude como a multidão.
De súbito, ao escrever esse comentário, surpreendo-me esquecendo uma parte do título da obra: "A Democracia e os Três Poderes no Brasil". Ainda que esboçados juridicamente em 1988, eles se nos fazem conhecer nos tristes 90. A hipertrofia do Executivo todo-poderoso, dedicado ao que entendemos ser uma tarefa de "desconstitucionalização" -a tradição histórica o favorece, ensina-nos Charles Pessanha-, e seus novos formatos, "o intervencionismo regulatório" de Renato Boschi e Maria Regina Soares de Lima não parecem ter outro objetivo. São agências diferentes, com dirigentes de mandato fixo -independentes do mandato popular de fóruns eleitos-, cujo objetivo, escrevi em algum lugar, está em sua funcionalidade para o mercado, aspecto-chave do que chamei a "teoria política do Banco Mundial". Nesse caso, a teoria da captura pode ser esquecida e substituída por considerações sobre um bonapartismo de terno e gravata.
A análise da produção legislativa do Congresso, elaborada por Otávio Amorim Neto e Fabiano Santos, se o valoriza no caráter nacional, e não paroquial, de sua atividade, deixa-nos diante de um poder enfraquecido, a remeter, afinal, à valorização legislativa do Judiciário. Felizes devíamos estar, portanto, com a participação eleitoral que Jairo Nicolau estuda, mas permitam uma nota pessimista: sim, votamos, mas votamos em massa em regimes representativos minimalistas. A contrapartida otimista consiste em perceber que o voto mais vale pelo que vale do que pelo que produz.

Cesar Guimarães é professor do Instituto de Pesquisas Universitárias do Rio de Janeiro (Iuperj).


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