São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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O sertão em surdina

O romance "O Quinze", de Rachel de Queiroz, que apareceu em 1930 e já tem 69 edições, analisado pelo crítico Davi Arrigucci Jr.

DAVI ARRIGUCCI JR.

"O estilo se suspende diante do que até então tinha sido tratado em namoros com o tom sublime; e interrompe o sentido, suprime fechos, se acaba em surdina"
Vilma Arêas, em "Rachel - O Ouro e a Prata da Casa"

Uma jovem professora, em férias na fazenda da avó que a criou, ajeita ao lado da cama o lampião de querosene e alguns livros lidos e relidos. Daí a pouco Conceição recomeçará a leitura, atravessando a noite, até que os resmungos da avó a interrompam pelo adiantado da hora. Momentos antes, fazendo as tranças, demonstrara apreensão, ao interpelar Dona Inácia sobre a falta das chuvas. Março principia, e a avó, com os olhos ainda confiantes no alto, está rezando para São José; vista da janela, a lua limpa dá sinal da estiagem que promete persistir além do esperado. O inverno, estação das águas, tarda a chegar ao sertão de Quixadá, já desolado pela seca.
Assim se pode resumir a cena inicial do primeiro romance de Rachel de Queiroz, "O Quinze" (1930). O livrinho era fino e espantoso: a autora era quase uma menina com seus 19 anos, mais jovem do que a professorinha da ficção. Surpreendeu por isso, mas também pela qualidade literária, reforçando a dúvida sobre sua identidade. Graciliano Ramos julgou ser obra de barbudo; Agripino Grieco duvidou do gênero, mas do gênero literário, pois não sabia dizer se se tratava de romance.
À primeira vista, Rachel dava continuidade à literatura da seca. O tema vinha dos românticos, se alastrou na crônica jornalística e, na esteira do naturalismo, em romances de fins do século 10 e começos do 20; recebeu impulso decisivo rumo à consciência crítica dos problemas brasileiros com "Os Sertões".
Era José Américo de Almeida quem podia parecer próximo, voltado para a renovação modernista, sobretudo pelas ligações com o grupo do Recife e o manifesto de Gilberto Freyre, em 26. Mas "A Bagaceira" (1928) ficou distante. A retórica balofa, o sentimentalismo, o tom de panfleto, quase tudo a afasta da jovem romancista.
Rachel tampouco se filia aos rumos da prosa da vanguarda, mas dependeu das perspectivas abertas pelo movimento de 22. Formada em casa de intelectuais, ligada ao jornalismo e à política, conhecia decerto a tradição local e os ecos do modernismo.
Não se deve ignorar, porém, o seu enraizamento na tradição literária nordestina. As raízes na terra natal alimentaram sua formação e deram o feitio singular da narradora, marcada pela experiência, o modo de ser e a tradição oral da vida cearense.
A combinação das formas da narrativa oral com o romance, gênero moderno, dependente do livro e da leitura solitária, responde pela fisionomia particular que caracteriza "O Quinze". A fusão das formas é a base de seu trabalho de arte.
Considerava-se a literatura da seca uma de nossas manifestações literárias mais originais. Era a opinião de Tristão de Ataíde, que redimiu "O Quinze" da massa de romances da época, por revelar "em sua autora, um autor". Para o crítico católico, não era claro o lugar da mulher na cultura brasileira, e a metafísica de menos pesava mais que as qualidades da romancista.
A questão não é exatamente a de gênero; o ponto de vista feminino está aqui associado à construção literária. Não se trata de um ponto de vista colado ao livro por uma mudança na consideração da mulher em nossa sociedade, mas da experiência histórica de uma situação nova, com a força e a autenticidade das coisas vividas, sedimentada na forma literária do romance. É pela forma artística que se percebe a novidade da experiência, cuja sedimentação formal, pelas mãos da narradora, renova o ciclo da seca.
O pequeno livro de ar despretensioso, magro e ligeiro de porte, como foi visto então, mantém o viço de uma verdadeira obra de arte, com poder de revelação sobre a complexidade da vida brasileira até o fundo do sertão, atingido pelas catástrofes naturais e os movimentos da história. Manifestava, já pela adoção da perspectiva feminina, uma nova percepção da mulher e da realidade sertaneja, cujas mudanças são também condicionadas pelo processo geral de modernização do país. Esse processo mais amplo se exprime na novidade formal do romance, cujo modo de ser inclui a dimensão problemática da experiência a que ele dá forma, permitindo, ironicamente, por sua expressão rica e contraditória, uma visão crítica do próprio processo histórico que o condiciona.
A novidade de "O Quinze" depende da conversão da personagem feminina em sujeito, e não em objeto da narrativa. O modo como o consegue é a questão. Trata-se de uma virada da perspectiva literária, coadunada a uma profunda mudança histórica; tem a ver com o horizonte brasileiro no raiar da década de 30, mas não se reduz a isso e tampouco é mera ilustração do processo histórico.
O que se tem aqui é a forma artística, particular e concreta, de uma experiência humana complexa, encerrada num meio primitivo, aparentemente afastado de toda civilização (o que não é verdade), no momento da catástrofe climática. Tudo experimentado viva e expressivamente na prática pela artista: um universo transposto com precisão e coerência ao plano literário.

Surdina

Nele o assunto da seca perde peso, para ganhar complexidade e alcance. O texto sai enxuto de carnes, reduzido a capítulos curtos, de corte abrupto, ora apagando-se, como no cinema do tempo, ora suspensos de supetão. À mudança externa, corresponde outra na estrutura do enredo: a ação rala nunca se completa direito, inacabada e aberta; dá asas à imaginação. Lacunar e arejado no andamento geral, mas preciso no pormenor, resulta esbatido no todo, como se o sertão acabasse por se aninhar na intimidade lírica de Conceição.
Sem deixar de ser fiel às figuras humanas, à paisagem, aos costumes e à linguagem da região, Rachel incorpora com vivacidade a fala comum do meio cearense, para abordar questões sérias e complexas, unindo o social ao psicológico de um ângulo novo, que é o do olhar deslocado de uma leitora solitária.

Uma leitora no sertão
Na verdade, nenhum resumo pode sequer alcançar a poesia que suscitam as imagens iniciais do romance: a cena doméstica, rodeada pelo sertão ressequido.
A imagem da jovem leitora, no isolamento do quarto, ressalta sobre todas, contrapondo-se à ameaça que vem do mundo exterior. A delicada figura se forma aos poucos, entremeando-se a pequenos movimentos no interior da casa de fazenda do Logradouro, no Ceará, onde se acham as duas mulheres: Conceição faz as tranças, conversa com a avó, ceia em silêncio, dirige-se ao quarto, olha a lua pela janela, vai até a estante em busca de um livro. A naturalidade é o que se nota primeiro. Reina uma absoluta ausência de ênfase na linguagem, despida e próxima da fala corriqueira. Os diálogos são curtos, a descrição sucinta, quase se ouve o silêncio.
Na prosa sóbria, notam-se raros termos regionais, ajustados ao ambiente, sem apelo ao pitoresco. O interior da casa parece despojado, lembrando a escassez da paisagem fora; dentro, os gestos são comedidos; mal se entrevê a sutil apreensão que vai tomando conta das duas mulheres, na falta das chuvas. Tudo é vivo, mas nada chama a atenção: o foco só se concentra sobre a leitora solitária.
Um sumário nos dá o retrospecto da vida da moça. Nas férias da escola, ela vem ter sempre com a avó, de quem recebe afeto e cuidados. A normalista de 22 anos parece ter nascido para solteirona, acostumada "a pensar por si, a viver isolada", entregue às leituras e às idéias -até socialistas-, condenando-se ao insulamento, ao optar pela independência e o destino diferente do das moças do lugar.
O livro não apresenta uma história; antes se abre pelo descortino de uma interioridade em contraste com o exterior. No conflito latente entre essa interioridade e o sertão, se revela o desacordo entre uma alma e o mundo -eixo que ordena a construção do romance.
A imagem da leitora solitária é a matriz de toda a organização formal; nela já se desenha a configuração total do enredo como uma unidade de sentido. A partir dela, se vê que os conteúdos anímicos dão a dinâmica própria da narrativa e constituem o verdadeiro objeto da composição literária.
A narração, concentrando-se no interior da leitora, atua primeiro como revelação lírica. Ganha ainda intensidade maior, mediante a linguagem descarnada, sugerindo o modo de ser independente: de um lado, a "seca, com aquele sol eterno"; de outro, "Conceição com sua indiferença tão fria e longínqua". É como se Conceição tivesse tudo aquilo de que necessita, dispensando qualquer contacto com o mundo que a rodeia. Parece sentir-se integrada na passividade de uma reclusão em que a alma apenas depende da própria alma para viver.
No decorrer do livro, a seca não atinge do mesmo modo a todos: a moça e a avó escapam de trem, enquanto Chico Bento e a família, sem posses para as passagens, se vêem obrigados a enfrentar as piores agruras do cansaço, da fome, da sede, da perda dos entes queridos, na fuga a pé, sob o sol inclemente.
Só através da solidariedade à miséria dos retirantes, Conceição afirmará um vínculo com o mundo de fora. Centrando sobre ela o foco, o romance se desenvolve sobretudo como análise psicológica. No sertão os caminhos são muitos e nenhum; são errância e não podem corresponder à necessidade vital que a faz se refugiar no exílio interior.
Nenhuma das possibilidades existenciais do repertório tradicional das moças do lugar -amor, casamento, família- tampouco pode movê-la, pois para ela tudo parece estar decidido de antemão, encadeada como se acha à resignada solidão e a um precoce desconsolo.
Conceição murcha ou definha desde o princípio, de modo que terá contra si o tempo, desgarrando-se em sua busca errante, à medida que ele passa. Assim, encontrará na paisagem ressequida um espelho moral de si mesma, imagem de seu ressecamento interior.
É a personagem quem aqui imita a escritora, não porque esteja escrevendo um livro sobre pedagogia ou tenha rabiscado dois sonetos, mas porque a paixão da leitura, que a torna única em seu meio, é o acompanhamento natural para alguém que se observa e experimenta a vida à maneira de um escritor. A atitude estética diante da existência nasce de sua opção de vida. O romance vai sendo moldado enquanto forma artística a partir da escolha ética inicial, que afasta Conceição do ambiente. Nada mais oposto à sua interioridade do que o meio em que lhe toca viver.
No entanto, o destino da leitora isolada no quarto, na calma da noite sertaneja, se mostra paralelo ao acontecimento em curso na natureza, a que se vão enredando, de forma análoga, as demais personagens. Assim surge Vicente, às voltas com o trato do gado faminto em meio à terra esturricada. Vive perto da prima Conceição. A relação amorosa entre eles dá a impressão de repetido desacerto, apesar dos gestos de aproximação. Do seu reduto, a moça julga o tempo todo o pretendente a namorado, afeito ao mato. Vicente, forte e tenaz no trabalho contra a seca -oposto ao irmão, promotor no Cariri-, percebe a distância de Conceição e vai se retirando, simbolicamente envolto na poeira que por fim o leva de vez para longe dela.
Mais adiante, se encontra Chico Bento, que, a mando da fazendeira desanimada da luta, deverá abandonar à míngua o gado e seguir com a família a triste sina dos retirantes rumo a Fortaleza. Com ele, a história se abre para o social e a amplitude do sertão.
Serão esses os elos de Conceição com o mundo sertanejo; eles a puxam para fora de si mesma, sem corresponderem às aspirações de sua alma, a plenitude de vida que o tempo a uma só vez encarna e afasta do alcance de sua busca.
Desde o princípio, o elemento épico só se vê a distância, confundido com o espaço do sertão. Por isso parece relativamente ralo, e mesmo ao longo da fuga de Chico Bento, em momentos fortes e pungentes, tende a mostrar-se abafado, como a natureza no fundo do relato. A moça nunca permanece de todo alheia a essa realidade externa a que acaba enredada por vários fios da história.
Rasante à secura do assunto, quando se estende pelo sertão, a prosa recolhe em surdina os acontecimentos de fora. O sertão em surdina é o ponto de partida e a perspectiva principal do romance. Arma-se, pois, o contraponto entre a subjetividade lírica e o espaço épico, a terra erma onde até o tempo é espaço, espacializando-se tudo quanto nela se passa: as "estórias", como dirá Rosa, e a história.
Mas a seca traz também consigo o movimento perturbador de um outro ritmo que a todos liga e, ao mesmo tempo, separa: repercute dentro do mais íntimo desde o primeiro instante; resseca o destino de todos, ao reduzir tudo por fim à terra estéril, antes do retorno da chuva.
Vira então o mito da seca, a fábula exemplar que inclui Conceição como figurante, herdeira de destroços, mãe igualmente estéril, cujos sonhos murcharam com o tempo. A natureza, espelho último do ser, guarda perdida sua própria face.
É que para ela, a seca, com seu estirão de desgraças, foi um meio de ler o mundo e de buscar-se a si mesma. No espaço deserto, buscou o sentido fugidio de sua existência, selado, desde o começo, na solidão da leitura.
Daí nasce ressequido o romance da desilusão: relato moderno da moça independente, emancipada e infeliz, que só tem por companheiro o livro em sua travessia solitária.

A voz de Rachel
Desde logo se destaca um dos feitos fundamentais de Rachel: o sábio aproveitamento das formas da oralidade. Sua narração é muito simples e sem discrepâncias da fala culta comum; vem limpa de cacoetes regionalistas, mas perfeitamente integrada às necessidades concretas de expressão de suas personagens e de seu mundo ficcional.
Mas o decisivo é que a voz narradora, em terceira pessoa, atua como se pudesse ser um desses seres, de modo que do ponto de vista autoral se passa naturalmente à subjetividade da personagem, por meio do estilo indireto livre, próximo do monólogo interior -as mesmas armas de que disporá Graciliano, para contar por dentro a experiência de seus retirantes quase sem palavras, resumidos às suas "Vidas Secas".
Cria-se entre Conceição e a voz da narração um elo mimético, em notável jogo expressivo: uma atmosfera aconchegante aproxima o leitor dos estados de ânimo e das reflexões da moça. Modulam-se, a partir da subjetividade de antemão desiludida, os rumores dramáticos que vêm do mar enxuto, a épica do sertão.
Os ruídos da catástrofe ecoam na concha solitária, o quarto de Conceição. Aí, abafado na intimidade, o vasto mundo. O sertão -espaço também da tradição oral e fonte do narrador- chega ao lugar da experiência individual. Com sua história, apenas pressentido pelos sinais fatídicos da natureza. Só depois se patenteia em palco aberto: a terra estéril da tragédia de Chico Bento.
A mudança decisiva de eixo e perspectiva elimina os velhos descompassos do romance regionalista: as diferenças de classe, de saber e outras entre o narrador culto e o falar rústico das personagens, vício sintomático de cisões mais fundas entre o narrador e um universo do qual ele realmente não faz parte ou ao qual busca ter acesso por meios indiretos.
Ao contrário do narrador tradicional, nela se observa a novidade do ângulo que identifica a voz narrativa à expressão íntima, porque é parte do mesmo universo, voz que nasce da própria terra e faz parte dela quando se distancia para torná-la objeto da narração. O trato linguístico que converte uma linguagem estufada pela retórica no instrumento rente ao real é trabalho de miúdo artesanato: depende da aprendizagem, da observação do meio, da leitura refletida de mestres distantes. É obra de uma narradora nata, capaz de transformar a experiência há pouco acumulada em matéria e arte de sua narrativa.
A fina arte de Rachel dá a impressão paradoxal de coisa tosca em sua simplicidade. Lembra -notou com agudeza Vilma Arêas- o universo do trabalho manual, como se a narradora fizesse obra de rendeira de bilro, ou tecesse os fios da escrita feito Conceição as tranças ou sua avó a renda, devolvendo o texto à sua origem metafórica de objeto tecido. O trabalho de arte parece produto saído da convivência comunitária e da sociedade pré-capitalista, fruto primitivo da região. Ao mesmo tempo, pela personagem feminina independente e emancipada, segue o curso dos tempos modernos que fizeram das professoras, desde o final do século 19, agentes do processo de modernização da sociedade brasileira, cujas bases a certa altura pareciam depender desse específico "trabalho de mulher" a que se viu ligada a imagem do magistério.
A simplicidade tão à mostra do livro dá lugar a uma complexidade guardada com recatos de sertaneja. Ela decorre das contradições entre a simplificação do estilo e as exigências do desenvolvimento temático, pela mistura de elementos tradicionais e modernos que correspondem a temporalidades também diversas e contraditórias, como se observa no paralelismo, de tanta força poética, que aproxima a interioridade moderna e fria de Conceição à paisagem primitiva e calcinada do sertão.
A tudo acompanhará solidário o olhar da romancista. Rachel fala de dentro de seu mundo como quem sabe. Revela um desejo de conhecer para compartilhar, fazendo da ficção o instrumento do olhar que mergulha no outro para exprimi-lo como parte de si mesmo. Abre caminhos para experiências mais radicais, como a de "Vidas Secas" e a do mundo misturado de "Grande Sertão: Veredas".
O título de seu livro remete à grande seca de 1915: indício importante do processo de composição, pois que evoca, pela redução metonímica da data à expressão "o quinze", a catástrofe latente na memória nordestina. Pela idade, a autora não poderia ter vivido os fatos dramáticos que transformaria na matéria de seu romance. Mas Rachel trabalha com os acontecimentos sedimentados na memória social da região, ligados à experiência da narradora que ali se formou. Assim conseguiu dar expressão, de um ângulo pessoal, ao drama da região de modo a torná-lo reconhecível no detalhe concreto e no mais íntimo e, a uma só vez, transfigurado em universo de ficção de valor simbólico geral.
A tudo Rachel imprime de fato a sua "marca de casa", à maneira de Conceição, no romance. E o que resulta é sóbrio, bem feito, na medida certa.
É que se guia pelo senso prático da narradora e sabe tornar concreta na expressão a secura real do sertão. Para tanto, depende do procedimento moderno da simplificação, manejado com a perícia da artesã de poucas palavras: talho justo na matéria agreste. A experiência histórica, acumulada na memória regional, ressurge então fundida na forma particular, concreta e nova de sua narrativa: memória coletiva esbatida na câmara íntima da heroína individual.
A seca de 15 se foi, e depois dela outras, repetindo-se o drama dos desamparados, que são sempre os pobres; a literatura da seca mais parece agora velharia. "O Quinze" guarda, entretanto, o verdor de resistente juazeiro: enigma estampado a seco.

O sertão e o livro
O romance, observou Walter Benjamin, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida. Narrativa da era moderna, conta a história da travessia solitária de um herói cuja existência pode aquecer com sua chama a alma de um leitor também isolado pelo ato da leitura. Aqui é este destinatário ideal o foco de interesse do próprio romance.
No "Dom Quixote", na origem dessa história, a situação do leitor já está na raiz do gênero. É essa a condição da leitura moderna, que o romance glosa, espelhando sua própria gênese, oposta à tradição oral em que beberam as outras formas de narrativa.
A novidade de "O Quinze" é trazer essa condição moderna da leitura e do gênero para dentro da região do atraso, problematizando-a, sem abdicar da tradição da oralidade, em sua simplicidade artesanal, ao avançar na direção de uma heroína desanimada da vida, cuja modernidade é dada de antemão por sua condição de leitora.
A busca moderna pelo sentido penetra na intimidade do sertão, espaço desértico do percurso solitário da jovem leitora que se prepara para viver, ou para aprender a viver, que é o viver mesmo, como dirá um Riobaldo descorçoado. Muito diferente dele, porém, que repassa o vivido, ao abrir-se "O Quinze", Conceição, sem ter ainda vivido, já traz a marca do desencanto do mundo.
O desejo de esclarecimento e emancipação, que a caracteriza, se liga ao gênero de narrativa com que se veicula o percurso de sua vida. Mas também ao processo histórico que, mesmo em meio à região atrasada, se faz presente até nos interiores do homem.
A heroína de "O Quinze" faz parte do mundo mais amplo, além mesmo do sertão, e indicia esse processo, insulada no espaço da interioridade; as transformações por que passa sua existência, à primeira vista atrelada apenas a uma região específica, na verdade apontam, de forma particular, com o halo simbólico que lhes confere o tratamento artístico, para um processo muito mais geral, relativo a todos nós.
Contra o escuro, a figura da professorinha alumiada pela luz tosca se recorta com nitidez por força da delicada poesia e nos deixa vislumbrar a complexidade de um destino que é o seu, mas também o nosso. Destino problemático, com a marca do desencanto, a cota de infelicidade que paga o preço da modernização. A força literária que vem do livrinho tem a ver com o que, em sua sobriedade, revela de todos nós enquanto participantes de uma experiência histórica similar, até nos fundos mais obscuros de nossa alma.
No Brasil, nos voltamos para o sertão quando desejamos saber quem somos ou para formular as perguntas para as quais não temos as respostas. Retornamos sempre à terra achada e mesmo ao antes dela: à natureza bravia que não sabemos o que foi ou quando começou, às vezes considerada uma barbárie primitiva -na verdade, inventada pela ideologia dos que vieram depois, em nome da civilização. Desejamos o que permaneceu dentro de nossas cidades e de nós mesmos como a contraparte possível de outra música intocada. E tudo por conta da experiência moderna, que nunca se livrou por completo do que veio antes e nunca foi tão civilizada quanto propaga ser, sendo mais bárbara, tantas vezes, do que os bárbaros que pretendeu desterrar.
"O Quinze" retoma a busca de um fio perdido no desertão onde de algum modo ficou retida nossa alma, ao perseguir errante seu destino histórico, tão deficiente e mal cumprido.
Por isso tudo, dito com despretensão, em surdina, na voz de uma mulher, está tão vivo e nos toca tanto.


Davi Arrigucci Jr. é crítico, ensaísta e autor de "Outros Achados e Perdidos" (Cia. das Letras).


O Quinze
Rachel de Queiroz
69 ª edição
Siciliano (Tel. 0/xx/11/3649-4600)
149 págs., R$ 15,00




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