São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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A justa memória

Paul Ricoeur explora as relações entre memória, história e esquecimento

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Recordem-se as cenas de Porto Seguro: a festa a portas (e cidade!) fechadas, para um grupo seleto de convidados; a marcha de índios e sem-terra, em face da violência oficial; a caravela incapaz de mover-se até o porto (inseguro?) do destino. A refundação simbólica da nação acabou como palco para as fraturas (isto é: o a-simbólico), em imagens transmitidas mundo afora. Para alguns, mero fiasco, fruto da incompetência dos organizadores. Explicação simplória que só esconde a questão de fundo: a que ponto a comemoração pode estar dissociada da rememoração; os usos e abusos da história; os desvios entre memória individual, coletiva e oficial; enfim, a (im)possibilidade do esquecimento e do perdão.
O exemplo vem a propósito da atualidade do livro de Paul Ricoeur, que visa justamente cruzar uma "fenomenologia da memória" com uma "epistemologia da história", para culminar, com a "meditação sobre o esquecimento", numa "hermenêutica da condição histórica dos homens que somos". Portanto: memória, história, esquecimento, nessa ordem, explorando suas intrincadas relações, bem como sua indiscutível (mas nem sempre percebida) distinção.
Para enfrentar o tema, o autor examina, passo a passo, a questão da memória e da reminiscência, o estatuto da história, a condição histórica, trazendo à tona, no epílogo, a dificuldade do perdão. Toda vastidão do percurso se constrói num diálogo cerrado com interlocutores que podem ser classificados em quatro grupos.
De um lado, aqueles que, em diferentes pontos, são invocados para fundamentar certas reflexões, como Husserl, Freud e Bergson, a propósito dos fenômenos mnemônicos; Foucault, Michel de Certeau e Norbert Elias, com relação à operação historiográfica; Nietzsche e Ginzburg, no que concerne à condição histórica; Pierre Nora e Hannah Arendt, respectivamente, sobre os temas do esquecimento e do perdão. De outro, estão os convocados para o debate e a crítica, como Heidegger, no campo da metafísica, Marc Bloch e Lucien Febvre, no da historiografia.
Mas há ainda um terceiro tipo de autor que aflora em pontos cruciais, como balizas para questões de longa duração: a memória como "impressão" e a escrita como seu "phármakon" (remédio/veneno), conforme Platão; a memória como o que "é do passado", segundo Aristóteles; a dialética entre passado, presente e futuro e os "vastos palácios da memória", da perspectiva de Santo Agostinho. Finalmente uma última categoria de escritores pontua o texto com instantâneas e fulgurantes aparições: Michelet, Proust, Lévinas, Spinoza, Kierkegaard, Pascal, dentre outros.
Nesse amplo diálogo, o objetivo não é elaborar uma teoria ou metodologia da história, mas pensar, sob a égide unificadora da filosofia, a "representação do passado", em vista do "inquietante espetáculo" oferecido pelo "excesso de memória aqui", pelo "excesso de esquecimento acolá", bem como "pela influência das comemorações e dos abusos da memória -e do esquecimento". O livro pretende ser um manifesto a favor de uma "política da justa memória", na condição de tema cívico da maior relevância (cuja atualidade as cenas de Porto Seguro nos garantem).

Memória e história
O principal resultado é a clara distinção entre memória e história, contra o senso comum que insiste em sua indiferença (como no slogan "um país sem memória é um país sem história"). Aliás, esta é uma virtude de Ricoeur, o não se contentar com generalizações, esmiuçar cada tema, mesmo quando o ponto de chegada traz novas indagações.
A ampla investigação fenomenológica da memória conduz a uma série de distinções: "memória-hábito" e "memória-lembrança" (é de Bergson a ênfase no "inegável parentesco entre a lição aprendida de cor e meu hábito de andar ou escrever"), "memória que se repete" e "memória que imagina", "memória" e "lembranças" (como se diz, os velhos têm mais lembranças, mas menos memória!). Tudo conduz à constatação do "privilégio espontâneo" dado "aos acontecimentos" como o objeto da memória, o que confirmaria a presunção de Aristóteles de que ela "é do passado".
Sendo do passado, pode a memória manifestar-se como afecção, sob a forma de evocação (lembramo-nos disso ou daquilo em tal ou qual ocasião), mas existe também uma memória ativa, que comporta um enigma, já que "busca o que teme ter esquecido". Na rememoração ("recherche", "rappel"), a memória assume a forma de "trabalho" e revela sua "dimensão cognitiva", "seu caráter de saber". O que a torna possível? A resposta, buscada no campo da neurologia, da psicologia e dos objetos de memória, insiste no conceito de "traços", que fornece uma passagem articulada entre memória individual e coletiva: há "lugares de memória" que permitem uma organização social do tempo e a comunhão de lembranças. Assim, "à dialética entre espaço vivido, espaço geométrico e espaço habitado corresponde uma dialética semelhante do tempo vivido, do tempo cósmico e do tempo histórico".
Ora, partindo da "memória declarada", isto é, dos testemunhos, a operação historiográfica comporta então três fases: a dos arquivos, a da interpretação/compreensão e, finalmente, a da escrita. Contudo, desde o momento do arquivo, exibe ela seu caráter escritural: "O testemunho é originalmente oral: ele é ouvido, escutado. O arquivo é escrita: ele é lido, consultado. Nos arquivos, o historiador profissional é um leitor", em que pese a existência de outras espécies de vestígios materiais e orais.

Em favor da diversidade
É na fase da interpretação/compreensão que se mostra toda a riqueza da história. Ricoeur percorre algumas tendências do século que passou, com ênfase na escola dos "Annales" e na "Nova História", um balanço importante, ainda que se concentre quase só na historiografia francesa e deixe de lado outras questões, como as da história oral. Entretanto a estatura de nomes como os de Braudel, Le Goff e Nora torna o debate significativo, ficando a cargo do leitor estabelecer outras relações.
Duas são as contribuições principais de Ricoeur. A primeira, substituir o conceito de "mentalidades" pelo de "representação", ou melhor, o que ele denomina como "représentance", a representação que é ao mesmo tempo suplência, no sentido jurídico do termo latino "repraesentatio": quem representa/supre o outro para o outro. A representação pode pois englobar o conceito de mentalidade sem reduzir-se a ele. É assim que, no clássico de Braudel, o Mediterrâneo pôde ser alçado à condição de protagonista, da mesma forma que o obscuro moleiro que fornece o tema para "O Queijo e os Vermes", de Ginzburg.
À "représentance" deve aliar-se o conceito fértil de "variação de escalas", que permite ao historiador uma pluralidade de enfoques: seja o olhar amplo sobre vastas épocas ou extensos espaços, sejam abordagens pontuais como as da "micro-história". O mote é dado por um fragmento de Pascal: "Diversidade. Uma cidade, um campo, de longe é uma cidade e um campo; mas, à medida que alguém se aproxima deles, são casas, árvores, telhas, folhas, ervas, formigas, patas de formigas, até o infinito". Também na historiografia, acrescenta Ricoeur, em cada escala vêem-se coisas que não se vêem em outra e cada visão tem sua legitimidade.
Essa defesa da diversidade autoriza a existência de várias histórias, em princípio um contra-senso, de acordo com o postulado de que à história só cabe dizer o que se passou e como se passou. Justamente contra essa carga parecem reagir autores como Michelet, ao propugnar uma "ressurreição" do passado, ou Collingwood, que defende sua "re-efetuação no presente". Com efeito, se "os fatos são indeléveis, se não se pode mais desfazer o que foi feito ou fazer o que aconteceu não acontecer, o sentido do que aconteceu não se encontra fixado para sempre. Além de os acontecimentos poderem ser contados e interpretados de modo diferente, a dívida para com eles pode tornar-se mais pesada ou mais leve". A vantagem dessa postura é clara: "Fraturar o determinismo, reintroduzindo, na história, a perspectiva de contingência", entendida esta como "a impossibilidade de deduzir o acontecimento do conjunto da situação anterior", de acordo com Raymond Aron.

Esquecimento e perdão
Uma conclusão se impõe: não só a história não se reduz à memória, como se constrói de lembranças e de esquecimentos, desde a fase de constituição dos testemunhos e arquivos. O esquecimento é assim o ponto de chegada, induzindo ao tema do perdão, pois enquanto o esquecimento põe em questão a memória e a fidelidade ao passado, o perdão diz respeito à culpabilidade e à reconciliação com o mesmo. Em princípio, ambos agem contra a obrigação de lembrar, sobretudo numa época, como a nossa, dominada pelos abusos da história e pela cultivo das comemorações.
Esse tipo de reflexão é explicitamente motivado pelo debate em torno das grandes tragédias do século 20, em especial o genocídio dos judeus na Alemanha nazista. Como fazer história daquilo que ultrapassa os limites do compreensível? É possível ir além dos testemunhos dos sobreviventes, que se encontram num estágio anterior ao da operação historiográfica? Mais ainda: é legítimo que o historiador interprete/compreenda situações marcadas por extrema crueldade? A tensão entre memória e história atinge assim seu ponto máximo, como se esta não deixasse de ser uma sorte de traição daquela. Não é a posição grosseira do revisionismo que pretende negar o que aconteceu que está em jogo, mas a legitimidade do que faz com que a história seja o que é: o esforço de compreender por que tudo aconteceu como aconteceu.
Compreender implica, de algum modo, justificar? Mais ainda: com relação a acontecimentos desse porte, é possível perdoar? Nas páginas finais do livro encontra-se provavelmente o que há de mais rico sobre o próprio sentido da história. Perdoar não é anestesiar. A anistia, não o perdão, é correlata da amnésia, um esquecimento forçado ("amnesía" e "amnestía" implicando uma pura e simples negação). Ora, se a anistia impõe a amnésia oficial, o perdão supõe sempre a condenação. Não se perdoa um inocente, como não se pode perdoar quem não foi julgado culpado. Perdoar é a alternativa (sempre difícil) quando existe a obrigação de punir.
Avalie-se assim a urgência de uma política da justa memória, capaz de evitar tanto a obsessão pelo passado, quanto as amnésias impostas, já que ambas eludem a função judicativa da história, impedindo a condenação e, por consequência, a possibilidade do perdão. Seria então razoável admitir que, na anestésica comemoração de Porto Seguro, o clamor que se ouviu foi exatamente o dos sem-história. Uma história nascida da justa memória deve saber dosar um uso saudável de lembranças e de esquecimentos, para não sucumbir ao abuso das memórias totalitárias, que inviabilizam a diversidade.
Já ensinava Hesíodo como, unida a Zeus, Memória gerou as Musas para o esquecimento. É por não se reduzir à Memória que, conforme lembrava Paul Veyne, a história é uma Musa.


Jacyntho Lins Brandão é professor de língua e literatura grega da Universidade Federal de Minas Gerais e autor, entre outros livros, de "A Poética do Hipocentauro" (Editora da UFMG).



La Mémoire, l'Histoire, l'Oubli
Paul Ricoeur
Éditions du Seuil
Onde encomendar: Livraria Francesa
(Tel. 0/xx/11/3849-7956)
676 págs., 195 francos




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