São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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O corpo domesticado

MARIA HELENA VILLAS BÔAS CONCONE

As linhas de amarração dos ensaios que compõem o livro são indicadas por Renato Queirós ao estabelecer a dupla natureza do corpo: sua natureza biológica e específica e sua natureza como objeto de domesticação exercida pela cultura. Reconhecido este princípio, alerta para a dificuldade do estabelecimento de uma rígida separação entre esses domínios, "de tal forma amalgamados que suas formas instrumentais, técnicas, raramente se manifestam isoladamente de aspectos expressivos ou simbólicos, assim como os comportamentos inatos trazem sempre a marca do aprendizado".
Em uma palavra, a partir do corpo como um ponto de observação privilegiado, Queirós expõe a própria complexidade da antropologia, ciência do único e do múltiplo. São esses compromissos que fazem a um tempo a riqueza e a dificuldade da reflexão antropológica digna do nome: revelam um nó que não deve ser desatado nem cortado, mas identificado em suas poderosas tramas.
Sobre esse nó o organizador do livro se debruça com delicadeza e simplicidade, sem reduzi-lo a fórmulas fáceis. Dessa perspectiva, volta-se para os fios que fazem do corpo artefato de cultura, recolhendo análises propostas numa rica bibliografia composta de textos antigos e atuais, sem desprezar as contribuições literárias. A bibliografia utilizada se enriquece à medida que avançamos no texto e nele se incorporam outros ângulos de análise, sempre acentuando o amálgama entre o biológico e o cultural. Em continuidade, somos levados a observar esses domínios quando mostra algumas expectativas culturais -e suas mudanças- em relação ao ideal de corpos masculinos e femininos, relacionando-as ao dimorfismo sexual. Oferece-nos uma literatura poucas vezes explorada em textos de antropologia cultural e/ou social, em geral mais atentos aos modos culturais e aspectos simbólicos e expressivos, sem relacioná-los às questões biológicas gerais e suas consequências em termos evolutivos e reprodutivos.
O artigo de João Baptista Borges Pereira trata do uso do corpo como linguagem dentro da cultura brasileira. O autor faz dialogar textos acadêmicos, literários e depoimentos colhidos durante sua rica trajetória como pesquisador, trazendo o debate teórico para o campo específico da sociedade brasileira, realizando um percurso que vai do ético ao estético. Faz um curto passeio pela literatura nacional, assinalando definições e redefinições de uma "topografia simbólica do corpo", explorando em seguida a questão da miscigenação. Numa linguagem ao mesmo tempo elegante e divertida, Borges Pereira antecipa temas que serão tratados nos outros trabalhos que compõem o livro como, por exemplo, a consideração da cor do corpo.
Tal é um dos aspectos centrais do ensaio de Lilia Moricz Schwartz, que apresenta um ângulo novo: o da exploração das cores e nomes a elas atribuídos num país marcado, desde os seus primórdios, pelas considerações relativas à miscigenação. A autora nos apresenta Antonil, von Martius, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Mario de Andrade, Gilberto Freyre, mostrando como as considerações sobre a miscigenação, que se estendem do século 16 ao 20, estão longe de ser unívocas.
A parte mais interessante do trabalho, contudo, se refere exatamente à apresentação que faz e aos comentários que tece aos dados da PNAD, de 1976, que se baseou na autoclassificação nacional quanto ao quesito "cor". Essa auto-atribuição culminou numa verdadeira "aquarela do Brasil" com nada menos que 136 nomes diferentes para a "cor" do brasileiro que a autora reúne e comenta.
Já o ensaio de Teófilo Queirós retoma o campo da literatura para caracterizar o "Corpo do Brasileiro". Define o seu trabalho como "um estudo socioantropológico da beleza do corpo", atendo-se ao feminino. Justifica o recorte lembrando que, "sendo a nossa uma sociedade em que subsistem componentes paternalistas e o machismo é mal dissimulado", a beleza do corpo masculino é assunto recente para os próprios homens. O empreendimento que define como "menos ambicioso" e "mais seguro" o leva a analisar 11 títulos que cobrem 114 anos da atividade literária brasileira. A proposta é estabelecer o que é "uma mulher bela", da ótica de escritores que "por dever de ofício enfrentam o desafio de retratá-la". Aponta assim as diferenças de perspectiva (entre autores e épocas) e as persistências durante o período que vai de meados do século 19 a meados do 20. No conjunto, alguns elementos são constantes na criação das personagens: cor, cabelos, idade, sensualidade, dotes físicos, sem, contudo, haver valorização exclusiva de um tipo sobre outro.
Qual será o padrão a prevalecer no futuro quanto à beleza do corpo? Essa foi uma pergunta que Borges Pereira também se fez diante de uma sociedade plural, mestiça e policromática, como mostra Schwarcz em seu ensaio. Nos tempos que correm, lembra Borges Pereira, além da literatura, outros parceiros participam da conformação de um padrão de "beleza nacional", dentre os quais a hoje poderosa mídia televisiva não pode ser desprezada.
Por fim, Renate B. Viertler trata da beleza do corpo entre os índios brasileiros. Se o artigo de abertura traz a ótica européia "branca" -primeiro de Caminha, cujo encantamento vai pouco a pouco se diluindo no empreendimento colonial e assumindo um caráter negativo mais abrangente-, temos agora uma mudança de interlocutor. É o índio que fala por meio da autora. Fala de si e dos outros: brancos e negros. Claro está que esse singular -"índio"- é apenas um recurso retórico. Em seu ensaio, Renate B. Viertler transita por várias sociedades indígenas, detendo-se de modo especial nos bororos, sobre os quais a antropóloga já produziu preciosas monografias.
Ao autora nos mostra que, "como ocorre em todas as sociedades humanas, os índios brasileiros" também têm seus ideais estéticos, "cujo verdadeiro sentido só pode ser compreendido à luz da visão de mundo e da cultura que lhes é peculiar". Assim, antes de tratar dos valores estéticos, fala de valores sociais. Agora, além dos bororos, também os alto-xinguanos são considerados quanto à integração de valores sociais e ideais de beleza.
Temos em mãos um livro composto por cinco ensaios completos em si, mas complementares, compondo uma unidade que nos coloca diante de uma totalidade altamente complexa: biológica, cultural, social e psicológica.


Maria Helena Villas Bôas Concone é professora de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.



O Corpo do Brasileiro - Estudos de Estética e Beleza
Renato da Silva Queirós (org.)
Editora Senac (Tel. 0/xx/11/3884-8122)
182 págs., R$ 25,00




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