São Paulo, sábado, 12 de maio de 2001

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Paixão etnológica

Cartas do guru da etnologia brasileira

MARIZA CORRÊA

Alguns anos atrás, um colega, cujo filho ia fazer pesquisa de campo entre os índios do Brasil, me perguntou: "Não é perigoso?". Respondi, automaticamente, "não, nunca ninguém morreu no campo, no Brasil". Mas não era bem verdade, pensei depois, lembrando, entre os poucos casos que conheço, os de Buell Quain, que se suicidou entre os índios krahôs, em 1939, e o de Curt Nimuendajú, que morreu durante uma visita aos índios ticunas, em 1945, em circunstâncias até hoje debatidas pelos etnólogos.
Buell Quain era um antropólogo norte-americano, orientado por Ruth Benedict, dentre aqueles que tinham vindo fazer pesquisa no Brasil no âmbito de um acordo informal entre o Museu Nacional e a Universidade Columbia: a comoção causada por sua morte foi sentida lá e aqui e durante muitos anos esse foi um dos segredos da história da etnologia.
Curt Nimuendajú, um antropólogo alemão nascido em Jena em 1883, tinha originalmente o nome de Curt Unkel, adotando depois o que lhe foi dado pelos índios guarani, e veio para o Brasil em 1903, tendo tido "residência permanente", como ele dizia, em São Paulo até 1913 e depois, até sua morte, em Belém, no Pará. (1)
Autodidata, construiu sua trajetória na etnologia brasileira pesquisando, pesquisando, pesquisando. Talvez tenha sido o último daquela "falange brilhante de etnógrafos viajantes", mencionada por Herbert Baldus, que vieram ao Brasil para se embrenhar nas selvas e conhecer os verdadeiros nativos do país. Andarilho por definição, recolheu o que pôde sobre a cultura material dos índios brasileiros -material espalhado pelo mundo, em vários museus- e anotou, com minúcia de naturalista interessado no detalhe etnográfico, também o que pôde sobre os rituais, mitos e modos de viver dos grupos com os quais conviveu e aos quais sempre voltava. Mapeou uma série de questões teóricas, ao fazer as suas observações que, anos depois, seriam retomadas por Claude Lévi-Strauss, David Maybury-Lewis, Roberto Da Matta e Eduardo Viveiros de Castro, entre tantos.
O livro que acaba de ser publicado em Portugal começa a pagar uma das tantas dívidas que os antropólogos contemporâneos sentem ter com Nimuendajú: há anos os etnólogos mais velhos, como Darcy Ribeiro e Egon Schaden, reclamavam da falta de suas publicações em português, o que começou a ser remediado desde a tradução de suas observações sobre os sipáias e os guaranis (2).
Tekla Hartman, que foi professora de etnologia da USP, põe agora à disposição dos antropólogos e outros interessados na questão indígena uma série de cartas que ele enviou ao também antropólogo Carlos Estevão de Oliveira, então diretor do Museu Paraense Emilio Goeldi, entre 1923 e 1942.
As cartas foram doadas pela filha de Carlos Estevão a Egon Schaden, etnólogo da Universidade de São Paulo, também rebatizado pelos guaranis, na mesma família que recebera Nimuendajú, o que o fazia considerá-lo seu irmão mais velho. Foram depois depositadas no Museu Paulista e passaram à guarda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, com a fusão das coleções arqueológicas e etnográficas.

Território etnológico
O livro é fascinante. Todos aqueles que, como eu, se interessam pela história da antropologia no país, sentem um calafrio ao lê-lo: é a sensação, sobre a qual alguém já falou, de estar ali, espiando por sobre o ombro de quem escreve e sentindo, outra vez, coisas sentidas por quem escreve. Uma por uma, as cartas vão esboçando o território de uma história da etnologia que não está escrita (ainda) em nenhum lugar. É como se fosse o mapa, em palavras, a ser sobreposto ao mapa etnológico que Nimuendajú também ia desenhando ao longo dos anos e que levou tanto tempo para ser publicado.
Uma por uma, elas vão mostrando as ligações entre os pontos dessas redes de relações que, de fato, faziam a história da etnologia naquele momento. Há uma rede, uma trama, na qual Nimuendajú se movia à vontade -composta de agentes de postos indígenas, de figurões importantes nas instituições conhecidas no país (Museu Emilio Goeldi, Museu Nacional, Serviço de Proteção aos Índios, Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil) e no exterior (museus de Hamburgo, de Leipzig, de Dresden, de Berlim, de Gotemburgo), de antropólogos nacionais e internacionais, dos inimigos dos índios e, principalmente, dos próprios índios, eles mesmos agentes nessa rede. Rede que vinculava marcos topográficos, tribais, institucionais e pessoais.

Uso da fotografia
Tendo sido funcionário da fábrica Zeiss na Alemanha, não é de admirar a constante referência ao uso da fotografia em suas andanças: e é com olho de fotógrafo que Nimuendajú descreve várias cenas para Carlos Estevão. Por exemplo, a cena do funeral de uma moça entre os canelas, tão amada por todos que os guerreiros jovens a fizeram dançar com eles depois de morta: "Choravam todos, homens, mulheres e crianças. E, no meio desses rostos desfeitos pelo pranto, o rosto pálido e sereno da Pepkwéi morta, em pé, dançando...". São muitas suas menções a fotografias, uma das quais é reproduzida no volume: mostra Nimuendajú e uma índia canela, que vestira luto em sua ausência, com os corpos cobertos de penas, numa cerimônia de reintegração à sociedade.
É bonito observar, ao longo de toda a correspondência, um continuado interesse e paixão pelos grupos indígenas que Nimuendajú visitava: ele vai registrando suas rixas com os fazendeiros ou outros mandões locais, com os vendedores de cachaça para os índios e sua impaciência para com os brancos que invadiam as cerimônias indígenas que a custo ele conseguia ajudar a recriar.
Nimuendajú era tão bom observador dos grupos nativos quanto dos nativos de sua terra: ao viajar à Alemanha, em 1934, registrou numa carta: "Causou-me pena o aspecto atual das vitrines das livrarias na Alemanha, porque creio que elas formam em toda parte um índice bastante seguro para o nível intelectual de um povo. Hoje elas são transformadas em meras agências de propaganda do nacional-socialismo, formando um contraste desagradável com o que se vê em outros países germânicos, como a Inglaterra, a Dinamarca e a Suécia. Todo esse nacional-socialismo, justamente pelas suas pretensões supergermânicas, tem para mim um aspecto estranhamente não-germânico: ele me parece um fenômeno nitidamente patológico". E compara Hitler a um médico que, tendo salvo um paciente da gangrena, narcotizando-o e cortando-lhe a perna, resolva-se a mantê-lo para sempre em estado de narcose...
Parece, assim, uma ironia histórica o fato de ele ser perseguido no país em que escolhera viver, por sua origem alemã: não só sua correspondência com o antropólogo de origem alemã, trabalhando nos EUA, Robert Lowie, passa a ser censurada no período da guerra, como o próprio Nimuendajú seria vítima de boatos na região dos ticunas e acabaria preso: sua prisão é sobriamente narrada na última carta desse volume.
Às vésperas da última viagem que fez aos ticunas, ele ainda fazia troça da imagem que dele tinham as autoridades locais, numa carta para Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional: " (...) Assim que eu reaparecer na região, recomeçará imediatamente a campanha de calúnias: a câmera fotográfica se transformará em metralhadora, a máquina de escrever em estação de rádio, o radiotelegrafista de Benjamin Constant captará mensagens misteriosas que só podem ter sido emitidas por mim, se instigarão os índios (a) assassinar-me, e os subdelegados, inspetores de quarteirão e comandantes de destacamentos serão assediados com pedidos de providências. Finalmente o clamor chegará aos ouvidos das autoridades civis e militares de Manaus, que despacharão ordens para prender o perigoso espião. Tudo isso já me tem acontecido".
Uma vida aventurosa que certamente contribuiu, junto com seu minucioso trabalho de pesquisa, para transformá-lo no guru que ele é, merecidamente, da etnologia brasileira. Quem acompanha as também aventurosas peripécias dos pesquisadores que se têm dedicado a registrar sua trajetória, espera que muitas outras cartas se sigam à bem-vinda publicação dessas.

Notas
1. Thekla Hertmann refere o sentido do nome Nimuendajú, tantas vezes citado na bibliografia etnológica, como sendo "aquele que soube abrir o seu próprio caminho neste mundo e conquistou o seu lugar".
2. "Fragmentos de Religião e Tradição dos Índios Sipáia - Contribuições ao Conhecimento das Tribos da Região do Xingu, Brasil Central". Versão traduzida e apresentada por E. Viveiros de Castro e Charlotte Emmerich. In "Religião e Sociedade", 7, São Paulo, 1981, CER/ISER. "As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da Religião dos Apapocúva-Guarani". São Paulo, Hucitec/Edusp, 1987. Apresentação de E. Viveiros de Castro.


Mariza Corrêa é professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).



Cartas do Sertão - De Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira
Apresentação e notas: Thekla Hartmann
Museu Nacional de Etnologia/
Assírio & Alvim (Lisboa)
396 págs., 4.500 escudos
Onde encomendar:
livraria Portugal
(Tel. 0/xx/11/3104-1748)




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