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Paixão etnológica
Cartas do guru da etnologia brasileira
MARIZA CORRÊA
Alguns anos atrás, um colega,
cujo filho ia fazer pesquisa de
campo entre os índios do Brasil,
me perguntou: "Não é perigoso?".
Respondi, automaticamente,
"não, nunca ninguém morreu no
campo, no Brasil". Mas não era
bem verdade, pensei depois, lembrando, entre os poucos casos que
conheço, os de Buell Quain, que se
suicidou entre os índios krahôs,
em 1939, e o de Curt Nimuendajú,
que morreu durante uma visita
aos índios ticunas, em 1945, em
circunstâncias até hoje debatidas
pelos etnólogos.
Buell Quain era um antropólogo norte-americano, orientado
por Ruth Benedict, dentre aqueles
que tinham vindo fazer pesquisa
no Brasil no âmbito de um acordo
informal entre o Museu Nacional
e a Universidade Columbia: a comoção causada por sua morte foi
sentida lá e aqui e durante muitos
anos esse foi um dos segredos da
história da etnologia.
Curt Nimuendajú, um antropólogo alemão nascido em Jena em
1883, tinha originalmente o nome
de Curt Unkel, adotando depois o
que lhe foi dado pelos índios guarani, e veio para o Brasil em 1903,
tendo tido "residência permanente", como ele dizia, em São Paulo
até 1913 e depois, até sua morte,
em Belém, no Pará. (1)
Autodidata, construiu sua trajetória na etnologia brasileira pesquisando, pesquisando, pesquisando. Talvez tenha sido o último
daquela "falange brilhante de etnógrafos viajantes", mencionada
por Herbert Baldus, que vieram
ao Brasil para se embrenhar nas
selvas e conhecer os verdadeiros
nativos do país. Andarilho por definição, recolheu o que pôde sobre
a cultura material dos índios brasileiros -material espalhado pelo mundo, em vários museus- e
anotou, com minúcia de naturalista interessado no detalhe etnográfico, também o que pôde sobre
os rituais, mitos e modos de viver
dos grupos com os quais conviveu e aos quais sempre voltava.
Mapeou uma série de questões
teóricas, ao fazer as suas observações que, anos depois, seriam retomadas por Claude Lévi-Strauss,
David Maybury-Lewis, Roberto
Da Matta e Eduardo Viveiros de
Castro, entre tantos.
O livro que acaba de ser publicado em Portugal começa a pagar
uma das tantas dívidas que os antropólogos contemporâneos sentem ter com Nimuendajú: há anos
os etnólogos mais velhos, como
Darcy Ribeiro e Egon Schaden,
reclamavam da falta de suas publicações em português, o que começou a ser remediado desde a
tradução de suas observações sobre os sipáias e os guaranis (2).
Tekla Hartman, que foi professora de etnologia da USP, põe
agora à disposição dos antropólogos e outros interessados na questão indígena uma série de cartas
que ele enviou ao também antropólogo Carlos Estevão de Oliveira, então diretor do Museu Paraense Emilio Goeldi, entre 1923 e
1942.
As cartas foram doadas pela filha de Carlos Estevão a Egon
Schaden, etnólogo da Universidade de São Paulo, também rebatizado pelos guaranis, na mesma
família que recebera Nimuendajú, o que o fazia considerá-lo seu
irmão mais velho. Foram depois
depositadas no Museu Paulista e
passaram à guarda do Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP,
com a fusão das coleções arqueológicas e etnográficas.
Território etnológico
O livro é fascinante. Todos
aqueles que, como eu, se interessam pela história da antropologia
no país, sentem um calafrio ao lê-lo: é a sensação, sobre a qual alguém já falou, de estar ali, espiando por sobre o ombro de quem
escreve e sentindo, outra vez, coisas sentidas por quem escreve.
Uma por uma, as cartas vão esboçando o território de uma história
da etnologia que não está escrita
(ainda) em nenhum lugar. É como se fosse o mapa, em palavras,
a ser sobreposto ao mapa etnológico que Nimuendajú também ia
desenhando ao longo dos anos e
que levou tanto tempo para ser
publicado.
Uma por uma, elas vão mostrando as ligações entre os pontos
dessas redes de relações que, de
fato, faziam a história da etnologia naquele momento. Há uma
rede, uma trama, na qual Nimuendajú se movia à vontade
-composta de agentes de postos
indígenas, de figurões importantes nas instituições conhecidas no
país (Museu Emilio Goeldi, Museu Nacional, Serviço de Proteção
aos Índios, Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
Científicas no Brasil) e no exterior
(museus de Hamburgo, de Leipzig, de Dresden, de Berlim, de Gotemburgo), de antropólogos nacionais e internacionais, dos inimigos dos índios e, principalmente, dos próprios índios, eles mesmos agentes nessa rede. Rede que
vinculava marcos topográficos,
tribais, institucionais e pessoais.
Uso da fotografia
Tendo sido funcionário da fábrica Zeiss na Alemanha, não é de
admirar a constante referência ao
uso da fotografia em suas andanças: e é com olho de fotógrafo que
Nimuendajú descreve várias cenas para Carlos Estevão. Por
exemplo, a cena do funeral de
uma moça entre os canelas, tão
amada por todos que os guerreiros jovens a fizeram dançar com
eles depois de morta: "Choravam
todos, homens, mulheres e crianças. E, no meio desses rostos desfeitos pelo pranto, o rosto pálido e
sereno da Pepkwéi morta, em pé,
dançando...". São muitas suas
menções a fotografias, uma das
quais é reproduzida no volume:
mostra Nimuendajú e uma índia
canela, que vestira luto em sua ausência, com os corpos cobertos de
penas, numa cerimônia de reintegração à sociedade.
É bonito observar, ao longo de
toda a correspondência, um continuado interesse e paixão pelos
grupos indígenas que Nimuendajú visitava: ele vai registrando suas
rixas com os fazendeiros ou outros mandões locais, com os vendedores de cachaça para os índios
e sua impaciência para com os
brancos que invadiam as cerimônias indígenas que a custo ele conseguia ajudar a recriar.
Nimuendajú era tão bom observador dos grupos nativos quanto
dos nativos de sua terra: ao viajar
à Alemanha, em 1934, registrou
numa carta: "Causou-me pena o
aspecto atual das vitrines das livrarias na Alemanha, porque
creio que elas formam em toda
parte um índice bastante seguro
para o nível intelectual de um povo. Hoje elas são transformadas
em meras agências de propaganda do nacional-socialismo, formando um contraste desagradável com o que se vê em outros países germânicos, como a Inglaterra, a Dinamarca e a Suécia. Todo
esse nacional-socialismo, justamente pelas suas pretensões supergermânicas, tem para mim
um aspecto estranhamente não-germânico: ele me parece um fenômeno nitidamente patológico". E compara Hitler a um médico que, tendo salvo um paciente
da gangrena, narcotizando-o e
cortando-lhe a perna, resolva-se a
mantê-lo para sempre em estado
de narcose...
Parece, assim, uma ironia histórica o fato de ele ser perseguido no
país em que escolhera viver, por
sua origem alemã: não só sua correspondência com o antropólogo
de origem alemã, trabalhando
nos EUA, Robert Lowie, passa a
ser censurada no período da guerra, como o próprio Nimuendajú
seria vítima de boatos na região
dos ticunas e acabaria preso: sua
prisão é sobriamente narrada na
última carta desse volume.
Às vésperas da última viagem
que fez aos ticunas, ele ainda fazia
troça da imagem que dele tinham
as autoridades locais, numa carta
para Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional: " (...) Assim que eu reaparecer na região,
recomeçará imediatamente a
campanha de calúnias: a câmera
fotográfica se transformará em
metralhadora, a máquina de escrever em estação de rádio, o radiotelegrafista de Benjamin Constant captará mensagens misteriosas que só podem ter sido emitidas por mim, se instigarão os índios (a) assassinar-me, e os subdelegados, inspetores de quarteirão e comandantes de destacamentos serão assediados com pedidos de providências.
Finalmente o clamor chegará aos
ouvidos das autoridades civis e
militares de Manaus, que despacharão ordens para prender o perigoso espião. Tudo isso já me
tem acontecido".
Uma vida aventurosa que certamente contribuiu, junto com seu
minucioso trabalho de pesquisa,
para transformá-lo no guru que
ele é, merecidamente, da etnologia brasileira. Quem acompanha
as também aventurosas peripécias dos pesquisadores que se têm
dedicado a registrar sua trajetória,
espera que muitas outras cartas se
sigam à bem-vinda publicação
dessas.
Notas
1. Thekla Hertmann refere o sentido do
nome Nimuendajú, tantas vezes citado
na bibliografia etnológica, como sendo
"aquele que soube abrir o seu próprio caminho neste mundo e conquistou o seu
lugar".
2. "Fragmentos de Religião e Tradição
dos Índios Sipáia - Contribuições ao Conhecimento das Tribos da Região do Xingu, Brasil Central". Versão traduzida e
apresentada por E. Viveiros de Castro e
Charlotte Emmerich. In "Religião e Sociedade", 7, São Paulo, 1981, CER/ISER. "As
Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da Religião dos
Apapocúva-Guarani". São Paulo, Hucitec/Edusp, 1987. Apresentação de E. Viveiros de Castro.
Mariza Corrêa é professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Cartas do Sertão - De Curt
Nimuendajú para Carlos
Estevão de Oliveira
Apresentação e notas:
Thekla Hartmann
Museu Nacional de Etnologia/
Assírio & Alvim (Lisboa)
396 págs., 4.500 escudos
Onde encomendar:
livraria Portugal
(Tel. 0/xx/11/3104-1748)
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