São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999 |
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O silêncio e muitas vozes
DAVI ARRIGUCCI JR.
Sob muitos aspectos, a matéria deste livro é a mesma, configurada, porém, em ritmo de verso, com outra concentração e intensidade. Não mais sob o hausto longo da narração, mesmo se na cadência entrecortada pelos capítulos curtos das memórias, mas, sim, condensada no instantâneo lírico, que recorta do fundo histórico e pessoal da experiência seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. Na verdade, figuras de uma dança da morte, que o poeta traz de novo à nossa presença, não pela mão, como no tópico medieval da dança macabra, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua, a voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Cabral, Rilke. Comoventes poemas breves em que se tece na forma quebrada do ritmo o diálogo interrompido com os mortos: "Thereza", "Visita", "Internação", "Meu Pai", "Evocação de Silêncios", "O Morto e o Vivo". Complexos e límpidos poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: "Nasce o Poeta", "Adormecer", "Tato", "Reflexão", "Aprendizado", "Lição de um Gato Siamês", "Não-Coisa", "Isto e Aquilo". Extraordinários poemas longos de pressentimento e antecipação da morte: "Nova Concepção da Morte", "Morrer no Rio de Janeiro". E ainda muito mais, belos poemas eróticos e de exaltação da vida e seus instantes fugazes: "Definição da Moça", "Sortilégio", "Coito", "Improviso Matinal", "Pergunta e Resposta". A atitude do homem comum, sem lugar entre a pretensão e a humildade, exposto com todas as suas fragilidades, exatamente como nas memórias, está de novo presente aqui. Com efeito, é um homem frágil quem está atrás da voz que nos fala, sozinho como o caniço pensante de Pascal em face do infinito silêncio do cosmo. O poeta que reconhece "que a poesia/ é saber falhar". Ou aquele que ao sentir-se a si mesmo pelo tato, diante da "certeza invencível da morte" também se dá conta da realidade palpável de sua presença no mundo. É na solidão cósmica, isolado dos mortos queridos, onde o poema é apenas um "inaudível ruído" em meio à vastidão indiferente do universo, que o poeta se reconhece no pequeno sinal de vida, capaz no entanto de iluminar aos nossos olhos não só a morte, mas também o amor e o gosto da vida. A lírica se exprime aqui nos ocos de uma história vivida e lembrada, talhada no corte breve e emocionante do poema, supondo, porém, o processo oculto de um aprendizado diante do que arrasta a tudo e a todos junto com o próprio poeta e que está além de toda experiência possível: a morte que o tempo traz implacavelmente e o poeta experiente espera sem ênfase, "mera noção que existe/ só enquanto existo", o fim que está fora de seu alcance. Depois de 12 anos de silêncio, oculta como a natureza, a poesia volta ao sol do Rio, à luz de São Luís. Não se podia pedir mais a Gullar. Davi Arrigucci Jr. é ensaísta, professor de literatura e autor, entre outros livros, de "Outros Achados e Perdidos" (Companhia das Letras) Próximo Texto: Poema Índice |
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