São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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Metamorfoses do corporativismo



Estudo faz gênese do sindicalismo oficial
GLAUCO ARBIX


Não raramente, a pesquisa acadêmica é vítima de uma artimanha dos conceitos. O estudioso fecha os olhos, vaga pelos meandros do seu próprio mundo e, quando dispara sua análise, o alvo já não está lá. Descobre-se, então, que nunca esteve. Ou que teria se transformado no tempo e no espaço, pelo menos na dimensão prescrita para ele.
A redescoberta de um novo corporativismo na metade dos anos 70 sugeriu-nos esse "trompe l'oeil" conceitual. Quando começou a ser utilizado nos anos 80 para explicar estruturas-chave das sociedades avançadas, o corporativismo como forma de organização social já havia atingido seu ápice e iniciado seu irreversível declínio. Porém, logo à frente, após o anúncio ruidoso de sua segunda morte, novas formas de corporativismo ressurgiriam na década de 90 com fôlego renovado.
No Brasil, se já se disse à exaustão que o sindicato corporativista vem sobrevivendo com garbo às alterações da economia e da política, mostrando-se útil tanto em tempos democráticos quanto ditatoriais, a revelação das fontes de sua invejável energia ainda é desafio e enigma. Exatamente por isso, o livro de Angela Araújo, ao repensar o nascimento do corporativismo brasileiro nos anos 30, mostra-se extremamente atual.
A recomposição da malha de escolhas e decisões dos diversos grupos que disputaram ascendência e construíram legitimidades no Brasil dos anos 30 e 40 estimulou a autora a buscar o espaço do genuinamente político no desenho das instituições getulistas. Por essa tentativa, o livro irradia luz própria na nova safra de pesquisadores que vêm reinterpretando alguns fundamentos da nossa sociedade.
Sua reflexão refaz as trajetórias clássicas de Oliveira Vianna, Alberto Torres e Francisco Campos, produzindo páginas encharcadas pelas idéias de Antonio Gramsci, a começar pela noção de hegemonia, pedra de toque do pensador italiano. Segundo a autora, o corporativismo teria correspondido a um processo de revolução passiva inaugurado pela Revolução de 30, quando as elites no poder iniciaram a construção de uma nova ordem econômica e de um Estado voltado para a intervenção e controle da sociedade.
As estruturas corporativistas então instituídas permitiram a emergência de uma forma específica e orgânica de hegemonia política, baseada na inclusão dos trabalhadores e voltada para a produção do consentimento que, para ser alcançado, exigiu a aliança da força com uma bela e boa dose de persuasão. Ao olhar a dominação assim construída, a autora encontrou, para além da coerção, o consentimento do dominado, muito maior do que o gesto de suas lideranças.

Eterno retorno
Essa abordagem diminui a força das explicações mais rasas que, quase sempre, reduzem o social a um jogo entre a vítima e o algoz, numa eterna relação de engano ou de imposição. A noção de "falsa consciência" torna-se estrangeira nessa análise que destaca a adesão de grande parte dos trabalhadores a um projeto de Estado. A discussão sugerida pela autora tende a mostrar os trabalhadores persuadidos pela elite varguista, que atende muitas de suas reivindicações. O deslocamento do conflito tradicional e o relevo das afinidades agora eletivas dão novo élan à reinterpretação.

A Construção do Consentimento - Corporativismo e Trabalhadores nos Anos 30
Angela Araújo Edições Sociais (Tel. 011/263-7836) 420 págs., R$ 39,00



Mesmo assim, o livro ganharia se reconstruísse a experiência brasileira em meio à explosão do corporativismo no mundo e na América Latina no entre-guerras. Pois é difícil entender Vargas fora da maré dos regimes de inspiração corporativista que se espalharam pelo continente, mesclando as organizações dos trabalhadores com as novas formas de Estado.
A profundidade dessas experiências continua sugerindo um reequacionamento dos processos institucionais, dos constrangimentos estruturais e da gênese dos modernos Estados latino-americanos. Essa foi uma das lições deixadas por Schmitter, condensadas em sua metáfora do eterno retorno do corporativismo neste século, que estaria expressando a incansável recusa das sociedades em aceitar como inelutável a polaridade e a fratura irredutível entre o Estado e os mercados.
Essa sugestão de Schmitter, porém, está em conflito com a redução do corporativismo ao "egoísmo de fração" gramsciano. Quando a autora se interroga sobre o preço do consentimento, a resposta perde força: se ganharam reconhecimento governamental, passando a compor o novo arranjo de poder, os trabalhadores tiveram sua autonomia como classe bloqueada. Isto é, o projeto autônomo dos trabalhadores teria parado no meio do caminho, apenas como um esboço de consciência de classe.
A tentativa de mesclar dois olhares diferentes provoca oscilações na análise. Momentos há em que as conexões da sociedade com as estruturas do funcionamento capitalista cedem a cena para o sistema visto como ardil, voltado para abortar uma consciência de classe supostamente em contínuo movimento. O corporativismo como prestidigitação reaparece, então, pela porta dos fundos da análise.
O valor do livro, porém, permanece. O corporativismo, banido do vocabulário oficial e das mentalidades, porque associado ao horror nazi-fascista, nunca deixou de insinuar-se pelas veias do capitalismo contemporâneo. Na América Latina, onde nunca deixou o palco nem as coxias, o corporativismo é apresentado como entulho nacional-desenvolvimentista que, todavia, teima em não ser desmontado.
Apenas para ilustrar, Fernando Henrique Cardoso, apesar das ameaças em contrário, continua presidindo a República corporativa brasileira, cujos contornos mais perversos transparecem na estrutura sindical, na justiça do trabalho, no relacionamento promíscuo dos setores público e privado, no sistema cartorial de atendimento, na colonização do espaço público pelo privado. Ironicamente, experiências avançadas de tipo neocorporativista, como as câmaras setoriais da indústria, que souberam unir democracia com eficiência, foram condenadas à morte lenta e constante pelo próprio governo.
Na verdade, todo e qualquer reordenamento institucional em nosso país e na América Latina pede uma reflexão de fundo sobre o necessário do trânsito do corporativismo para uma nova organização social, econômica e política. O livro de Angela Araújo é um atraente convite a essa reflexão.


Glauco Arbix é professor de sociologia na USP.


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