São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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Sonho dos pobres, desejo uterino

FÁTIMA TOLEDO


Construído sobre três eventos que ocorrem paralelamente -Roma, o advento do cristianismo e a penetração dos germanos-, o período medieval surge com uma série de características ao mesmo tempo cristãs, romanas e germânicas. É a partir desse pressuposto que Hilário Franco Jr. analisa a fábula da "Cocanha", poema francês de autoria desconhecida, cuja primeira versão escrita é do século 13. Paraíso alimentar, na Cocanha os telhados são de toucinho, as cercas de salsicha, o riacho de vinho. Lá, não é preciso trabalhar para viver, quem trabalha é preso e ganha mais quem mais dorme. O tempo é gasto em festas perpétuas e faz-se amor livremente.
Numa obra anterior, "Cocanha - Várias Faces de uma Utopia" (Ateliê Editorial, 1988), Hilário Franco reuniu 20 versões do mito, desde o poema francês do século 13 até o folheto de cordel brasileiro do século 20, que fala de São Saruê, terra onde as pedras são de queijo e rapadura e "o feijão nasce no mato já maduro e cozinhado".
Neste livro, dedica-se à versão francesa da Cocanha e às relações entre essa sociedade imaginária e a real na qual o "fabliau" foi escrito. Seu objetivo é mostrar que a primeira não é um reflexo às avessas da última, que ambas representam uma totalidade. Situando sua análise no campo da história social do imaginário, Hilário Franco parte do conceito semiótico de cultura como uma rede de significados, a fim de mostrar que uma fonte literária como o poema da Cocanha não é fruto da mente de um único autor, mas um mosaico textual elaborado a partir de relações sincrônicas e diacrônicas, adaptadas pelo poeta no momento de seu registro escrito.
Em "A Civilização do Ocidente Medieval" (Lisboa, Editorial Estampa), Jacques Le Goff já apontava para a necessidade de se adotar categorias antropológicas para a compreensão da sociedade medieval, aproximando-a das primitivas, sem entretanto abrir mão da história. Como Le Goff, Hilário não nega a dinâmica histórica. Quando fala em estrutura, não se refere à imutável de Lévi-Strauss, mas a uma histórica, cujas modificações só são perceptíveis na longa duração, aos moldes de Braudel.
Assim, o autor revela a persistência no tempo e a dispersão no espaço do sonho da Cocanha e do desejo de evasão, presentes desde o antigo Oriente Médio até o Nordeste do Brasil. Isso explica as diversas referências míticas e literárias do poema. Da epopéia de Gilgamesh, cerca de 2500 a.C., à sabedoria proverbial da cultura cristã medieval do século 13, o "fabliaux" da Cocanha é uma reescritura de antigos relatos.

Cocanha - História de um País Imaginário
Hilário Franco Jr. Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) Prefácio: Jacques Le Goff 344 págs., R$ 27,00



Em seguida, o autor procura entender o processo de elaboração do texto, a emissão/ recepção do poema e a maneira pela qual se deu o contato do poeta anônimo com essa "herança multicultural". A utopia da abundância fornece-lhe as pistas para investigar por que e para quem o texto foi escrito. O sonho da mesa farta e rica, negação de uma realidade de fome e miséria, pode ser compreendido em virtude dos rigores vividos na Alta Idade Média, até o século 11. Num plano mais profundo, porém, Hilário Franco vê na ausência de alimentos considerados banais do banquete cocaniano -como o pão- uma crítica ao processo de clericalização que ocorria naquele momento, que fazia da comunhão com hóstias e vinho um privilégio dos sacerdotes, enquanto aos leigos restava a comunhão com pão. Essa ausência pode indicar, ainda, uma faceta aristocrática do autor/receptor do "fabliau", mas é igualmente possível associar a autoria do poema ao imaginário camponês.
Esse mesmo tipo de análise será empregado para tratar dos temas da ociosidade, juventude e liberdade. Sociedade caracterizada pelas condições de trabalho árduas e rigorosa moral sexual exigida pelas autoridades religiosas, o mito da Cocanha certamente é, em primeiro lugar, uma compensação às vicissitudes históricas vividas pelo homem medieval. O autor, porém, levando ao limite a análise interpretativa, examina inúmeras possibilidades de autoria e público do poema.
Terra da ociosidade, onde o tempo não passa e "todos se mantêm com 30 anos", a inexistência do tempo na Cocanha pode ser explicada como vestígio da herança multicultural do poema, resultado do entrecruzamento das culturas pagã, germânica e cristã, que permitia ao homem medieval sentir passado, presente e futuro como momentos simultâneos.
Terra das festas, a Cocanha pode ser uma forma de viagem mística ao além, o relato de um sonho, a fantasia do retorno ao útero ou a abolição da oposição natureza/ cultura. Terra da juventude, o país imaginário pode significar a visão idealizada que um cruzado tinha de Jerusalém, ou a alegoria do rito iniciático ao qual se submetiam os jovens artesãos, ou ainda uma crítica à própria juventude.
Terra da liberdade, a Cocanha nega o fortalecimento dos poderes monárquico e eclesiástico, ao mesmo tempo que pode significar uma visão hedonista da divindade ou uma crítica à vida monástica e ao ascetismo cristão.
Hilário Franco analisa ainda as versões tardias do poema, sobretudo as realizadas nos séculos 16 e 17, quando o mito da Cocanha conhece sua maior difusão. Aqui, debate principalmente com Jean Delumeau ("La Mort des Pays de Cocagne", Publications de La Sorbonne, 1976), para quem as utopias modernas são essencialmente materialistas, não propondo nenhum outro ideal além da felicidade sobre a terra. Não disponho de espaço para retomar a argumentação de Hilário Franco, mas apenas seu resultado. Para ele, também a Cocanha moderna pode não ser apenas o "sonho dos pobres", como quer Delumeau, mas também o "sonho uterino" de unidade, de retorno a uma condição primordial da humanidade.
O livro, como um todo, é bastante audacioso e original, combinando erudição, domínio das fontes e talento literário. Hilário Franco Jr. faz de "Cocanha" uma obra inspiradora para todos os que estudam a história do imaginário e as relações entre a cultura popular e a erudita.


Fátima Toledo é pós-graduanda do departamento de história da USP.


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