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RÉPLICA
Lógica da crise
JORGE LUIZ GRESPAN
Não posso negar que me agradou muito o fato de José Arthur
Giannotti ter escrito uma resenha
do meu livro, "O Negativo do Capital", sobretudo porque ela reabre uma discussão sempre importante. Agradaram-me muito também suas considerações sobre
meu rigor e o cuidado e até a generosidade de aproximar o meu projeto do dele próprio, dizendo que
trato "da dialética materialista,
tentando descrever como essa
nasce da virada da dialética hegeliana". Mas, apesar dos elogios,
Giannotti não apreendeu o mais
importante do livro.
O que realmente examino nele é
o conceito de crise econômica elaborado por Marx, fato apenas
mencionado no início da resenha,
para desaparecer no restante dela,
dando lugar a uma discussão sobre lógica. Mas esta discussão só
tem sentido se lembrarmos do seu
contexto de origem: Marx retoma
problemas da dialética porque
concebe o capital como algo contraditório, e este o é por determinar tanto as condições normais de
sua acumulação quanto as das crises de desvalorização, em que nega a sua própria natureza. Assim,
em vez de tratar dessa complicada
questão por uma perspectiva puramente lógica, como Giannotti,
percebi ser mais adequado ao projeto materialista de Marx enfocá-la
pelo ângulo objetivo, das crises,
pois essas explicitam na realidade
econômica o caráter autonegador
do capital.
É preciso, por isso, começar com
esse conceito, definindo-o precisamente, até para escapar dos riscos criados pelo abuso da palavra
"crise" no vocabulário atual. Essa definição, porém, implica realizar uma verdadeira reconstituição
dos vários níveis em que Marx define o conceito de capital, em crescente complexidade e riqueza de
conteúdo. Esses são, em negativo,
também as etapas da determinação gradativa da crise. Mas, mais
do que isso, mediante esse procedimento podem-se resolver algumas dificuldades recorrentes sobre o estatuto da crise. Ela tem sido tema de um debate já clássico
dentro e fora do marxismo, sendo
concebida por alguns autores como colapso do capitalismo e, por
outros, como simples perturbação
passageira no crescimento econômico; por alguns, como um destino inevitável, por outros, como
uma simples possibilidade que
uma política econômica inteligente pode impedir.
Um dos objetivos do meu trabalho é justamente remeter as várias
propostas dessa discussão a sua
matriz comum na teoria de Marx,
em que correspondem a distintos
momentos da apresentação das
categorias. Assim procedendo, é
possível estabelecer tanto as condições de validade dessas diferentes definições como também o estatuto da crise, escapando do falso
dilema entre necessidade inexorável e mera possibilidade: indicações nos textos de Marx levam-me
a formular o conceito de "necessidade relativa". Não se trata nesse
caso, portanto, de importar uma
categoria aristotélica estranha à
dialética, como sugere Giannotti,
pois até Hegel já havia traduzido a
lógica da potência e do ato à sua
língua especulativa.
Aliás, o problema da inversão da
dialética pelo materialismo, embora não seja o assunto principal
do meu livro, merece consideração, até porque foi o eixo da resenha de Giannotti. Seu argumento é
que Marx não teria conseguido
operar tal inversão por não encontrar no conceito de capital o equivalente ao espírito absoluto de Hegel, tendo de recorrer à categoria
de contrariedade, apresentada astuciosamente como se fosse a de
contradição, esta propriamente
dialética.
De fato, o vínculo de Marx à lógica hegeliana é um dos aspectos
mais espinhosos de seu pensamento, nunca elucidado definitivamente pelo seu autor e que já recebeu inúmeras interpretações, algumas negativas, como essa de
Giannotti. No entanto, e apesar de
uma efetiva fluidez terminológica
de Marx em certos momentos,
uma coisa é certa: a forma como
ele concebe a oposição entre capital e trabalho assalariado não é, de
modo algum, uma simples contrariedade, pois nesta os dois termos
não se determinam mutuamente.
Mas a relação entre capital e trabalho é, sim, de mútua determinação, configurando uma oposição
dialética, que já é contraditória,
embora não seja a exatamente a figura plena da contradição aristotélica e hegeliana -atribuir predicados opostos ao mesmo sujeito.
E aqui ajuda remeter o tema ao
artigo de Theunissen, ao contrário
do que afirma Giannotti, pois aí se
distinguem os conceitos de contradição de Hegel e de Marx, que
correspondem mais exatamente à
oposição contraditória. Apenas o
capital forma uma totalidade real
ao incluir o trabalho, ao mesmo
tempo em que o exclui e se opõe a
si mesmo. Marx não pode passar à
forma completa da contradição
justamente por recusar a solução
especulativa que tal passagem significaria; é só a praxis que pode superar de fato a negatividade imanente ao capitalismo. Mas a oposição aqui é real, criando ilusões efetivas e necessárias com o fetiche
das formas do capital, fenômeno
onipresente em meu texto, e que
só Giannotti não viu.
Por determinar-se nessa forma
contraditória, o capital recorrentemente não consegue medir-se,
criando a base para as crises. E é
exatamente esse o eixo do livro.
Ao não colocar a crise no ponto de
partida da reflexão dialética, Giannotti limita o debate a um ângulo
logicista e desfocado, deixando de
lado o que é original e atual na crítica ao capitalismo empreendida
por Marx. Perde com isso o leitor;
perdemos também todos nós.
Jorge Luiz Grespan é professor de história da
USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).
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