São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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RÉPLICA
Lógica da crise

JORGE LUIZ GRESPAN


Não posso negar que me agradou muito o fato de José Arthur Giannotti ter escrito uma resenha do meu livro, "O Negativo do Capital", sobretudo porque ela reabre uma discussão sempre importante. Agradaram-me muito também suas considerações sobre meu rigor e o cuidado e até a generosidade de aproximar o meu projeto do dele próprio, dizendo que trato "da dialética materialista, tentando descrever como essa nasce da virada da dialética hegeliana". Mas, apesar dos elogios, Giannotti não apreendeu o mais importante do livro.
O que realmente examino nele é o conceito de crise econômica elaborado por Marx, fato apenas mencionado no início da resenha, para desaparecer no restante dela, dando lugar a uma discussão sobre lógica. Mas esta discussão só tem sentido se lembrarmos do seu contexto de origem: Marx retoma problemas da dialética porque concebe o capital como algo contraditório, e este o é por determinar tanto as condições normais de sua acumulação quanto as das crises de desvalorização, em que nega a sua própria natureza. Assim, em vez de tratar dessa complicada questão por uma perspectiva puramente lógica, como Giannotti, percebi ser mais adequado ao projeto materialista de Marx enfocá-la pelo ângulo objetivo, das crises, pois essas explicitam na realidade econômica o caráter autonegador do capital.
É preciso, por isso, começar com esse conceito, definindo-o precisamente, até para escapar dos riscos criados pelo abuso da palavra "crise" no vocabulário atual. Essa definição, porém, implica realizar uma verdadeira reconstituição dos vários níveis em que Marx define o conceito de capital, em crescente complexidade e riqueza de conteúdo. Esses são, em negativo, também as etapas da determinação gradativa da crise. Mas, mais do que isso, mediante esse procedimento podem-se resolver algumas dificuldades recorrentes sobre o estatuto da crise. Ela tem sido tema de um debate já clássico dentro e fora do marxismo, sendo concebida por alguns autores como colapso do capitalismo e, por outros, como simples perturbação passageira no crescimento econômico; por alguns, como um destino inevitável, por outros, como uma simples possibilidade que uma política econômica inteligente pode impedir.
Um dos objetivos do meu trabalho é justamente remeter as várias propostas dessa discussão a sua matriz comum na teoria de Marx, em que correspondem a distintos momentos da apresentação das categorias. Assim procedendo, é possível estabelecer tanto as condições de validade dessas diferentes definições como também o estatuto da crise, escapando do falso dilema entre necessidade inexorável e mera possibilidade: indicações nos textos de Marx levam-me a formular o conceito de "necessidade relativa". Não se trata nesse caso, portanto, de importar uma categoria aristotélica estranha à dialética, como sugere Giannotti, pois até Hegel já havia traduzido a lógica da potência e do ato à sua língua especulativa.
Aliás, o problema da inversão da dialética pelo materialismo, embora não seja o assunto principal do meu livro, merece consideração, até porque foi o eixo da resenha de Giannotti. Seu argumento é que Marx não teria conseguido operar tal inversão por não encontrar no conceito de capital o equivalente ao espírito absoluto de Hegel, tendo de recorrer à categoria de contrariedade, apresentada astuciosamente como se fosse a de contradição, esta propriamente dialética.
De fato, o vínculo de Marx à lógica hegeliana é um dos aspectos mais espinhosos de seu pensamento, nunca elucidado definitivamente pelo seu autor e que já recebeu inúmeras interpretações, algumas negativas, como essa de Giannotti. No entanto, e apesar de uma efetiva fluidez terminológica de Marx em certos momentos, uma coisa é certa: a forma como ele concebe a oposição entre capital e trabalho assalariado não é, de modo algum, uma simples contrariedade, pois nesta os dois termos não se determinam mutuamente. Mas a relação entre capital e trabalho é, sim, de mútua determinação, configurando uma oposição dialética, que já é contraditória, embora não seja a exatamente a figura plena da contradição aristotélica e hegeliana -atribuir predicados opostos ao mesmo sujeito.
E aqui ajuda remeter o tema ao artigo de Theunissen, ao contrário do que afirma Giannotti, pois aí se distinguem os conceitos de contradição de Hegel e de Marx, que correspondem mais exatamente à oposição contraditória. Apenas o capital forma uma totalidade real ao incluir o trabalho, ao mesmo tempo em que o exclui e se opõe a si mesmo. Marx não pode passar à forma completa da contradição justamente por recusar a solução especulativa que tal passagem significaria; é só a praxis que pode superar de fato a negatividade imanente ao capitalismo. Mas a oposição aqui é real, criando ilusões efetivas e necessárias com o fetiche das formas do capital, fenômeno onipresente em meu texto, e que só Giannotti não viu.
Por determinar-se nessa forma contraditória, o capital recorrentemente não consegue medir-se, criando a base para as crises. E é exatamente esse o eixo do livro. Ao não colocar a crise no ponto de partida da reflexão dialética, Giannotti limita o debate a um ângulo logicista e desfocado, deixando de lado o que é original e atual na crítica ao capitalismo empreendida por Marx. Perde com isso o leitor; perdemos também todos nós.


Jorge Luiz Grespan é professor de história da USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).


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