São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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Pseudociência cognitiva

MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA


Steven Pinker é hoje uma das figuras mais destacadas no mundo da ciência cognitiva. Diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), tornou-se conhecido do grande público a partir de 1994, com a publicação do best seller "The Language Instinct". Sua contribuição mais recente, "Como a Mente Funciona", é também um livro de divulgação, ao qual não faltam muitas das qualidades que contribuíram para fazer do outro um sucesso de vendas, como o estilo coloquial ágil e preciso, as tiradas de humor e a disposição polêmica. Digno de nota também, em ambos os volumes, é o recurso à cultura de massas -histórias em quadrinhos, seriados e novelas de televisão, livros de ficção científica etc.- como fonte de exemplos e ilustrações. Sendo uma boa parte dessa produção desconhecida por aqui, para o leitor brasileiro o expediente perde muito da eficácia.
No primeiro capítulo do livro em pauta, Pinker expõe em linhas gerais a base teórica de seu empreendimento, da qual os dois pilares são a ciência cognitiva, entendida como teoria computacional da mente, e a mais recente novidade, a "psicologia evolutiva", associada principalmente aos nomes de John Tooby e Leda Cosmides. Os dois capítulos seguintes discutem mais extensamente esses alicerces. No que se refere à computação, Pinker defende a alternativa dos modelos híbridos, resultantes da associação de sistemas de inteligência artificial tradicional com sistemas conexionistas.
A psicologia evolutiva, apresentada no capítulo 3, é o resultado da aplicação dos princípios da teoria da evolução às questões da psicologia. Seu ponto de partida é a tese de que o cérebro humano foi moldado pelas forças da seleção natural atuando sobre as espécies de hominídeos ancestrais do Homo sapiens que viviam da caça e de outras formas de coleta de alimentos nas savanas da África há centenas de milhares de anos.
Tendo a evolução biológica da espécie humana cessado em algum período entre 100 mil e 200 mil anos atrás, o resultado é termos de viver em estilo completamente diferente, com um equipamento mental adaptado à vida primitiva nas savanas. De acordo com a teoria, muitas das características da mente humana podem ser entendidas a partir dessa diversidade entre os estilos de vida. A psicologia evolutiva tem sido, contudo, alvo de críticas (por parte especialmente de autores de esquerda como S. J. Gould e R. Lewontin) que alegam ser ainda demasiado especulativo o conhecimento do modo de vida desse homem das savanas, dando margem a que as explicações propostas sejam função mais de interesses ideológicos que de evidências bem corroboradas.
Resumida em uma frase, a pressuposição fundamental do livro é que "a mente é um sistema de órgãos de computação que a seleção natural projetou para resolver os problemas enfrentados por nossos ancestrais evolutivos em sua vida de coletores de alimentos". Nos cinco capítulos restantes, Pinker se propõe a tarefa, extremamente ambiciosa, dada sua abrangência, de explicar, a partir desse ponto de vista, aspectos do funcionamento da mente -ou, talvez seja melhor dizer, da vida humana- que incluem: a cognição, desde processos mais básicos da percepção visual e as imagens mentais, até o uso de metáforas e a criatividade, passando pela formação de conceitos, a lógica e os raciocínios probabilísticos; as emoções e sentimentos (o amor e o ódio, a repugnância, as fobias, a felicidade); as relações humanas (de família, de amizade, de rivalidade e muitas outras); as artes plásticas, a música, a literatura, o humor, a religião e a filosofia.
Não é entretanto num mero excesso de ambição que se encontra a raiz dos defeitos do livro. Para se chegar a ela, é necessário ir mais fundo, trazendo à baila seus pressupostos epistemológicos. Os relevantes no caso são dois princípios interligados, e a maneira radical como Pinker os sustenta, para toda a ciência, faz dele um "linha dura" no terreno da epistemologia. O primeiro é o da separação entre sujeito do conhecimento e objeto do conhecimento, em particular a tese de que a reflexão e as pesquisas científicas empreendidas pelos seres humanos não têm impacto algum sobre seu objeto, mesmo quando este é o próprio homem. O segundo é o da separação entre fatos e valores, a tese de que a ciência produz uma descrição puramente fatual da realidade, isenta de valores -os quais devem permanecer encerrados no compartimento estanque da ética, para não contaminar o conhecimento científico com elementos de subjetividade.

Como a Mente Funciona
Steven Pinker Tradução: Laura Teixeira Motta Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 666 págs., R$ 35,50



Em relação aos dois grandes domínios da ciência, o importante é que, seja qual for o grau de validade desses princípios nas ciências naturais, ele é significativamente menor nas ciências humanas, pois o homem (enquanto ser cultural) é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento.
O reflexo disso no livro é o fato de que suas passagens mais satisfatórias referem-se aos aspectos da mente humana mais próximos da natureza, como os processos básicos da percepção visual, estudados no capítulo quatro. Por outro lado, quanto mais os tópicos se aproximam do pólo cultural, mais o discurso degenera em pseudociência da pior espécie, tosca e eivada de ideologia conservadora.
Um exemplo disso são as idéias do autor sobre as artes: sua teoria estética do "cheesecake", ou dos "botões do prazer". Senão, vejamos: "Gostamos de "cheesecake" de morango, mas não porque tenha evoluído em nós o gosto por essa sobremesa. Evoluíram circuitos que nos fornecem gotas de prazer com o gosto doce da fruta madura, a sensação cremosa das gorduras e óleos vegetais e animais, e a frescura da água doce. O "cheesecake" nos dá um golpe nos sentidos como nada existente no mundo da natureza, pois é uma mistura de megadoses de estímulos prazerosos que inventamos com a finalidade expressa de acionar nossos botões de prazer. A pornografia é outra tecnologia do prazer. (...) Uma terceira tecnologia desse tipo é a arte".
A "teoria" é então aplicada às artes plásticas, "um exemplo perfeito de uma tecnologia projetada para violar as travas que salvaguardam nossos botões de prazer e acionar esses botões em várias combinações"; à música, um "cheesecake" auditivo, "uma pura tecnologia do prazer, um coquetel de drogas recreativas que ingerimos pelo ouvido a fim de estimular de uma só vez uma massa de circuitos de prazer"; e à literatura de ficção, pois "até mesmo acompanhar as fraquezas de pessoas comuns virtuais em sua vida cotidiana pode acionar um botão do prazer, aquele denominado "bisbilhotice". Trata-se de um passatempo muito popular da humanidade, pois conhecimento é poder".
Será preciso algum comentário?


Marcos Barbosa de Oliveira é professor da Faculdade de Educação da USP.


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