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O obstáculo da teoria
EDSON L.A. DE SOUSA
Certamente todos os campos do
conhecimento se confrontam, em
maior ou menor grau, com maior
ou menor determinação, com o
desafio de pensar o lugar da teoria
em sua prática. Esses pensamentos, se conduzidos ao limite de
seus efeitos, podem eventualmente revelar certas resistências da
"teoria" em se deixar interpelar
pela clássica indagação: para que
serve? Protege-se muitas vezes,
em silêncio, da revelação de uma
genealogia de sua natureza. Aliás,
justamente pelo fato de ser, por
vezes, vivida como natural por
aqueles que a praticam é que a dimensão crítica de seu estatuto se
esvanece diante da potência narcísica de seus adeptos. Em que a
psicanálise poderia contribuir para essa reflexão?
Encontramos alguns esboços de
resposta no excelente livro que
nos oferece Fábio Landa. Seu fio
condutor segue a trilha da porta
aberta por Elias Canetti em "Massa e Poder": "Não há nada que o
homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Quer
ver o que vai tocá-lo, quer poder
reconhecê-lo ou, em todo caso,
classificá-lo. Sempre o homem se
esquiva do contato insólito" (pág.
9). O autor inicia o livro com esse
fragmento, e os desenvolvimentos que seguem mostram a íntima
relação entre teoria e resistência,
revelando, de forma categórica, o
quanto o saber pela via do conhecimento vem inúmeras vezes fazer sombra à verdade.
Essa é a grande inovação freudiana, à qual Fábio Landa vem
apontar inúmeras consequências.
A ressonância particular que a
psicanálise produz no debate evidencia, por exemplo, a riqueza de
um conceito como o de transferência, na medida em que este nos
permite ver o quanto as densidades e espessuras teóricas podem
funcionar como obstáculos ao
olhar. É por isso que podemos
pensar a teoria no campo da psicanálise como uma formação do
inconsciente e não nos surpreender quando identificamos a presença viva da fantasia de seus autores em muitos projetos teóricos
da metapsicologia. Freud, como
sabemos, criou sua metapsicologia para dar conta dos pontos cegos que encontrava na atividade
de escuta de seus pacientes. Podemos pensar, portanto, a teoria como metáfora da transferência.
O livro de Fábio Landa, assim
como a casa de vidro construída
por Bruno Taut em 1914, nos
mostra a transparência opaca. A
experiência da criação teórica em
psicanálise é muito bem definida
por este oxímoro, pois toda condição de visibilidade nesse campo
só pode ser pensada a partir de
seus obstáculos, de sua opacidade
ou, como queria Freud, pela via
do sintoma.
Buscar a eloquência do sintoma
é restituir a palavra aprisionada e
reverter o silêncio que empobrece
a experiência. A arquitetura de vidro, como bem nos indica Walter
Benjamin, veio contribuir para
dar forma à subjetividade do homem moderno, denunciando
com essas utopias a ficção do sonho de transparência. Dessa forma, seria interrogada de forma radical a "ilusão da decifração"
(pág. 145).
Se seguirmos os desenvolvimentos de Ferenczi, Nicolas
Abraham e Maria Torok, não poderemos mais nos surpreender
com o lado sombrio do conhecimento. Essa cegueira subjetiva é
que ilumina o objeto teórico que
vemos. É do reconhecimento e da
crítica a essas posições que uma
nova nominação, quem sabe, pode advir. Jacques Derrida, em seu
ensaio "Fora - As Palavras Angulosas de Nicolas Abraham e Maria
Torok", que foi publicado como
posfácio ao livro, insiste para o
quanto esse reconhecimento poderia ser pensado como a introjeção que fala, à qual ele opõe a incorporação que se cala.
Depois da leitura desse livro,
não há como nos surpreender
diante da afirmação de Roger Caillois, quando este nos diz em "O
Mito e o Homem": "O conhecimento tende à supressão de todas
as distinções, à redução de todas
as oposições, de maneira que seu
objetivo parece ser o de propor à
sensibilidade a solução ideal do
seu conflito com o mundo exterior". Poder interrogar a teoria,
não só no que ela ilumina, mas no
que ela também esconde, é a
aposta que Fábio Landa coloca
em cena.
O autor percorre a obra de Ferenczi, Abraham e Torok , organizando sua reflexão em quatro
grandes capítulos e desenvolvendo, em cada qual, um conceito-chave. Primeiramente, discorre
sobre a distinção entre a introjeção de pulsões e a incorporação
de objeto; em seguida, desenvolve
o conceito de símbolo, fazendo
sobretudo uma detalhada leitura
do polêmico texto de Ferenczi ,
"Thalassa"; em seguida ainda,
apresenta e discute o conceito de
anasemia, que, segundo Landa, é
o ponto de partida da teoria de
Nicolas Abraham; e, finalmente,
conclui seu percurso com uma reflexão sobre a noção de cripta, que
será amplamente retomada por
Derrida no ensaio final do livro.
Percorrer o livro de Fábio Landa
é como entrar numa das passagens parisienses, imortalizadas
pelas palavras precisas de Benjamin. Encontramos o espaço do
devaneio fundamental em toda
reflexão que se pretende criativa.
A densidade teórica que apresenta não afugenta os espíritos da
poesia, pois, como ele mesmo
lembra, a psicanálise tem que ser
pensada como "poética da autocriação". Privar a prática e a reflexão clínica desse caminho é, sem
sombra de dúvida, perder o essencial dessa experiência que deveria caminhar no caminho contrário ao da "teologização do objeto da psicanálise", como sublinha Nicolas Abraham.
Certamente, trata-se de uma leitura essencial, que vem nos trazer
algumas luzes sobre nossos passos por vezes hesitantes na construção de teoria em psicanálise.
Ensaio Sobre a Criação Teórica em Psicanálise -
De Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok
Fábio Landa
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
320 págs., R$ 28,00
Edson Luiz André de Sousa é professor
de psicologia social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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