São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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O obstáculo da teoria

EDSON L.A. DE SOUSA

Certamente todos os campos do conhecimento se confrontam, em maior ou menor grau, com maior ou menor determinação, com o desafio de pensar o lugar da teoria em sua prática. Esses pensamentos, se conduzidos ao limite de seus efeitos, podem eventualmente revelar certas resistências da "teoria" em se deixar interpelar pela clássica indagação: para que serve? Protege-se muitas vezes, em silêncio, da revelação de uma genealogia de sua natureza. Aliás, justamente pelo fato de ser, por vezes, vivida como natural por aqueles que a praticam é que a dimensão crítica de seu estatuto se esvanece diante da potência narcísica de seus adeptos. Em que a psicanálise poderia contribuir para essa reflexão?
Encontramos alguns esboços de resposta no excelente livro que nos oferece Fábio Landa. Seu fio condutor segue a trilha da porta aberta por Elias Canetti em "Massa e Poder": "Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Quer ver o que vai tocá-lo, quer poder reconhecê-lo ou, em todo caso, classificá-lo. Sempre o homem se esquiva do contato insólito" (pág. 9). O autor inicia o livro com esse fragmento, e os desenvolvimentos que seguem mostram a íntima relação entre teoria e resistência, revelando, de forma categórica, o quanto o saber pela via do conhecimento vem inúmeras vezes fazer sombra à verdade.
Essa é a grande inovação freudiana, à qual Fábio Landa vem apontar inúmeras consequências. A ressonância particular que a psicanálise produz no debate evidencia, por exemplo, a riqueza de um conceito como o de transferência, na medida em que este nos permite ver o quanto as densidades e espessuras teóricas podem funcionar como obstáculos ao olhar. É por isso que podemos pensar a teoria no campo da psicanálise como uma formação do inconsciente e não nos surpreender quando identificamos a presença viva da fantasia de seus autores em muitos projetos teóricos da metapsicologia. Freud, como sabemos, criou sua metapsicologia para dar conta dos pontos cegos que encontrava na atividade de escuta de seus pacientes. Podemos pensar, portanto, a teoria como metáfora da transferência.
O livro de Fábio Landa, assim como a casa de vidro construída por Bruno Taut em 1914, nos mostra a transparência opaca. A experiência da criação teórica em psicanálise é muito bem definida por este oxímoro, pois toda condição de visibilidade nesse campo só pode ser pensada a partir de seus obstáculos, de sua opacidade ou, como queria Freud, pela via do sintoma.
Buscar a eloquência do sintoma é restituir a palavra aprisionada e reverter o silêncio que empobrece a experiência. A arquitetura de vidro, como bem nos indica Walter Benjamin, veio contribuir para dar forma à subjetividade do homem moderno, denunciando com essas utopias a ficção do sonho de transparência. Dessa forma, seria interrogada de forma radical a "ilusão da decifração" (pág. 145).
Se seguirmos os desenvolvimentos de Ferenczi, Nicolas Abraham e Maria Torok, não poderemos mais nos surpreender com o lado sombrio do conhecimento. Essa cegueira subjetiva é que ilumina o objeto teórico que vemos. É do reconhecimento e da crítica a essas posições que uma nova nominação, quem sabe, pode advir. Jacques Derrida, em seu ensaio "Fora - As Palavras Angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok", que foi publicado como posfácio ao livro, insiste para o quanto esse reconhecimento poderia ser pensado como a introjeção que fala, à qual ele opõe a incorporação que se cala.
Depois da leitura desse livro, não há como nos surpreender diante da afirmação de Roger Caillois, quando este nos diz em "O Mito e o Homem": "O conhecimento tende à supressão de todas as distinções, à redução de todas as oposições, de maneira que seu objetivo parece ser o de propor à sensibilidade a solução ideal do seu conflito com o mundo exterior". Poder interrogar a teoria, não só no que ela ilumina, mas no que ela também esconde, é a aposta que Fábio Landa coloca em cena.
O autor percorre a obra de Ferenczi, Abraham e Torok , organizando sua reflexão em quatro grandes capítulos e desenvolvendo, em cada qual, um conceito-chave. Primeiramente, discorre sobre a distinção entre a introjeção de pulsões e a incorporação de objeto; em seguida, desenvolve o conceito de símbolo, fazendo sobretudo uma detalhada leitura do polêmico texto de Ferenczi , "Thalassa"; em seguida ainda, apresenta e discute o conceito de anasemia, que, segundo Landa, é o ponto de partida da teoria de Nicolas Abraham; e, finalmente, conclui seu percurso com uma reflexão sobre a noção de cripta, que será amplamente retomada por Derrida no ensaio final do livro.
Percorrer o livro de Fábio Landa é como entrar numa das passagens parisienses, imortalizadas pelas palavras precisas de Benjamin. Encontramos o espaço do devaneio fundamental em toda reflexão que se pretende criativa. A densidade teórica que apresenta não afugenta os espíritos da poesia, pois, como ele mesmo lembra, a psicanálise tem que ser pensada como "poética da autocriação". Privar a prática e a reflexão clínica desse caminho é, sem sombra de dúvida, perder o essencial dessa experiência que deveria caminhar no caminho contrário ao da "teologização do objeto da psicanálise", como sublinha Nicolas Abraham.
Certamente, trata-se de uma leitura essencial, que vem nos trazer algumas luzes sobre nossos passos por vezes hesitantes na construção de teoria em psicanálise.

Ensaio Sobre a Criação Teórica em Psicanálise - De Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok
Fábio Landa
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
320 págs., R$ 28,00


Edson Luiz André de Sousa é professor de psicologia social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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