São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Luiz Gama reitera a proposta romântica de desorganizar a forma
Sem cadência nem bitola

CILAINE ALVES

Apesar do grande interesse despertado pela única obra de Luiz Gama, a recepção crítica de "Primeiras Trovas Burlescas" tendeu a alijá-la de seu tempo, anulando sua especificidade. Pelos padrões do multiculturalismo, sua sátira seria uma manifestação avulsa da consciência negra em poesia, representativa da "brasilidade". Constrói-se, assim, um Gama precursor do modernismo: o riso, conformado pelo modelo satírico do poeta português Felinto Elísio, foi identificado como traço do "caráter" alegre do brasileiro negro e como antecipação da antropofagia.
A antropologia modernista recrimina o poeta por sua tentativa de assimilar os padrões canônicos europeus e não absorver os cânticos religiosos africanos e as cantigas de ninar de mucamas. Afastando-se de uma representação "séria" da realidade social do negro, haveria em Gama um desejo dissimulado de embranquecimento, o que o converte em agente involuntário da exclusão racial. Apesar de seu autodidatismo, o ex-escravo não teria conseguido dominar a técnica do verso, distanciando-se da "alta" poesia dos brancos.
Parte da dificuldade em inserir o poeta no seu tempo deriva da compreensão predominante de que o romantismo brasileiro seria um movimento unívoco, delimitado apenas pela melancolia, nacionalismo oficial e linguagem edificante, deslocando para a margem o riso e a negatividade.
Quando se considera o romantismo como plural e contraditório, não há como ignorar as afinidades de "Primeiras Trovas Burlescas" com as propostas de renovação literária formuladas por Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães. Embora do conjunto da obra de Gama sobressaia um sistema poético frouxamente alinhavado, esse diálogo evidencia uma reação à hegemonia do modelo estético indianista e uma aproximação com outro projeto de literatura nacional.
Filho natural de um membro da oligarquia baiana, Luiz Gama (1830-1882), vendido pelo pai em 1840, foi transportado para São Paulo por um traficante. Em 1848, conquista as provas de sua liberdade. Alista-se na Guarda Municipal, torna-se ordenança do chefe de polícia, logo depois cabo-de-esquadra e, em seguida, amanuense da Secretaria de Polícia. Jornalista, ativista dos movimentos republicano e abolicionista, atuou em processos que resultaram na libertação de mais de 500 escravos (ver sua autobiografia, reeditada pelo nº 23 da revista "Novos Estudos", da Cebrap"). Suas trovas foram compostas entre 1848 e 1859, data da primeira publicação.

Progresso e patriotismo
Com os byronianos, Gama partilha a convicção de que, no Brasil, o culto ao progresso e o patriotismo são moedas de troca de letrados políticos em busca de ascensão social. Para ele, o progresso é inseparável da corrupção e da degradação moral, o que lhe permitiu aproximar-se da teoria do prosaísmo formulada por Álvares de Azevedo, que prescreve a expressão do sentimento de indignação com as contradições sociais e a incorporação da crítica e da reflexão na obra. Propõe ainda dignificar os gêneros tradicionalmente baixos e, no limite, destruir, pelo fragmento, a regularidade formal.
Aproximando-se de Guimarães, Gama desqualifica a modernização a partir de sua face mais visível, a obediência à imposição da moda, seja em literatura, seja em vestuário. Entre seus tópicos privilegiados está a saia-balão, que entrou em voga a partir de 1848, tornando-se índice da prosperidade econômica e do triunfo burgueses. Nesses dois poetas, os movimentos da crinolina para trás, para frente, à esquerda e à direita aludem aos esforços de certo tipo de poesia cuja linguagem se incha, compensando a carência de profundidade pela pompa e soberba. Guimarães alegoriza assim a importação unilateral do romantismo, circunscrito ao gênero amoroso lamartiniano, em detrimento da reflexão e da ironia.
Gama, por seu turno, joga com os dois planos da saia, o externo e o interno, levando-os a representar, de um lado, a musa etérea, vaporosa e inacessível e, de outro, uma bruxa lasciva; uma duplicidade reproduzida nas figuras do mancebo de casaca virada, por fora poeta consagrado e, por dentro, produtor de berros, e do charlatão travestido de doutor e sábio.
Como Guimarães, Gama satiriza o gênero patético amoroso, denunciando sua saturação. Em "Meus Amores", a figura feminina afasta-se da idealidade etérea, materializando-se na sensualidade da mulher negra. Em "Laura" (lido pela crítica como emblema de uma suposta atração pela mulher branca), os encantos da virgem alvíssima desembocam, depois de uma longa descrição que sacraliza o tipo, numa inesperada e irônica objetivação da amada, transformada em modelo artístico marmóreo, frio e carente de sentimentos.
Sua sátira, embora encene os vícios, não procura reafirmar a ordem estabelecida, estilizando todo o tecido social como um mundo corrupto, numa reiterada desqualificação do Estado, da Igreja e da sociedade estamental. Num jogo ambíguo com a linguagem, no qual desestabiliza a crença de que as palavras reproduzem fielmente uma ordem divina, relativiza a moral vigente, considerando-a do ponto de vista do excluído ou da ordem.
Numa retomada dos "liliputianos poetastros" de Álvares de Azevedo, em Gama, o tipo sábio branco talentoso -os favoritos do mecenato, glorificados como "heróis da pátria"-, tentando reproduzir monotonamente a elegia lamartiniana e edulcorar a paisagem local, produz, na verdade, sofismas e bestialógicos.
Em contraposição, a voz e a forma aptas a vislumbrar a degradação social são atribuídas ao excluído social e à irregularidade formal. Quando define sua poesia como "rimas de tarelo, sem metro, sem cadência e sem bitola" (verso interpretado pela crítica como autoconfissão de incapacidade poética), reitera a proposta romântica de desorganizar a forma, opondo-se aos versos perfeitos das "almas fementidas".
Entre suas "personae" satíricas, o negro de "Lá Vai Verso" retrata-se como um "bestunto", incorporando as vozes da sociedade que o compõem como carente de juízo. Assumindo com orgulho sua condição, o enunciador questiona os altos feitos da "gente luminosa", de uma elite (seja ela militar, jurídica ou letrada) moldada pelo tráfico da pátria, na qual predominam aves de rapina.
A nova edição dessas sátiras recolheu poemas dispersos em jornais da época e inseriu, em notas de rodapé, suas alterações para a edição de 1861.



Primeiras Trovas Burlescas Luiz Gama
Organização e introdução: Ligia F. Ferreira
Martins Fontes (Tel. 0/xx/11/ 239-3677) 296 págs., R$ 27,50



Cilaine Alves é autora de "O Belo e o Disforme" (Edusp).


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