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Luiz Gama reitera a proposta romântica de desorganizar a forma
Sem cadência nem bitola
CILAINE ALVES
Apesar do grande interesse despertado pela única obra de Luiz
Gama, a recepção crítica de "Primeiras Trovas Burlescas" tendeu
a alijá-la de seu tempo, anulando
sua especificidade. Pelos padrões
do multiculturalismo, sua sátira
seria uma manifestação avulsa da
consciência negra em poesia, representativa da "brasilidade".
Constrói-se, assim, um Gama
precursor do modernismo: o riso,
conformado pelo modelo satírico
do poeta português Felinto Elísio,
foi identificado como traço do
"caráter" alegre do brasileiro negro e como antecipação da antropofagia.
A antropologia modernista recrimina o poeta por sua tentativa
de assimilar os padrões canônicos
europeus e não absorver os cânticos religiosos africanos e as cantigas de ninar de mucamas. Afastando-se de uma representação
"séria" da realidade social do negro, haveria em Gama um desejo
dissimulado de embranquecimento, o que o converte em agente involuntário da exclusão racial.
Apesar de seu autodidatismo, o
ex-escravo não teria conseguido
dominar a técnica do verso, distanciando-se da "alta" poesia dos
brancos.
Parte da dificuldade em inserir
o poeta no seu tempo deriva da
compreensão predominante de
que o romantismo brasileiro seria
um movimento unívoco, delimitado apenas pela melancolia, nacionalismo oficial e linguagem
edificante, deslocando para a
margem o riso e a negatividade.
Quando se considera o romantismo como plural e contraditório, não há como ignorar as afinidades de "Primeiras Trovas Burlescas" com as propostas de renovação literária formuladas por Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães. Embora do conjunto da
obra de Gama sobressaia um sistema poético frouxamente alinhavado, esse diálogo evidencia
uma reação à hegemonia do modelo estético indianista e uma
aproximação com outro projeto
de literatura nacional.
Filho natural de um membro da
oligarquia baiana, Luiz Gama
(1830-1882), vendido pelo pai em
1840, foi transportado para São
Paulo por um traficante. Em 1848,
conquista as provas de sua liberdade. Alista-se na Guarda Municipal, torna-se ordenança do chefe de polícia, logo depois cabo-de-esquadra e, em seguida, amanuense da Secretaria de Polícia.
Jornalista, ativista dos movimentos republicano e abolicionista,
atuou em processos que resultaram na libertação de mais de 500
escravos (ver sua autobiografia,
reeditada pelo nº 23 da revista
"Novos Estudos", da Cebrap").
Suas trovas foram compostas entre 1848 e 1859, data da primeira
publicação.
Progresso e patriotismo
Com os byronianos, Gama partilha a convicção de que, no Brasil,
o culto ao progresso e o patriotismo são moedas de troca de letrados políticos em busca de ascensão social. Para ele, o progresso é
inseparável da corrupção e da degradação moral, o que lhe permitiu aproximar-se da teoria do prosaísmo formulada por Álvares de
Azevedo, que prescreve a expressão do sentimento de indignação
com as contradições sociais e a incorporação da crítica e da reflexão
na obra. Propõe ainda dignificar
os gêneros tradicionalmente baixos e, no limite, destruir, pelo
fragmento, a regularidade formal.
Aproximando-se de Guimarães, Gama desqualifica a modernização a partir de sua face mais
visível, a obediência à imposição
da moda, seja em literatura, seja
em vestuário. Entre seus tópicos
privilegiados está a saia-balão,
que entrou em voga a partir de
1848, tornando-se índice da prosperidade econômica e do triunfo
burgueses. Nesses dois poetas, os
movimentos da crinolina para
trás, para frente, à esquerda e à direita aludem aos esforços de certo
tipo de poesia cuja linguagem se
incha, compensando a carência
de profundidade pela pompa e
soberba. Guimarães alegoriza assim a importação unilateral do romantismo, circunscrito ao gênero
amoroso lamartiniano, em detrimento da reflexão e da ironia.
Gama, por seu turno, joga com
os dois planos da saia, o externo e
o interno, levando-os a representar, de um lado, a musa etérea, vaporosa e inacessível e, de outro,
uma bruxa lasciva; uma duplicidade reproduzida nas figuras do
mancebo de casaca virada, por fora poeta consagrado e, por dentro, produtor de berros, e do charlatão travestido de doutor e sábio.
Como Guimarães, Gama satiriza o gênero patético amoroso, denunciando sua saturação. Em
"Meus Amores", a figura feminina afasta-se da idealidade etérea,
materializando-se na sensualidade da mulher negra. Em "Laura"
(lido pela crítica como emblema
de uma suposta atração pela mulher branca), os encantos da virgem alvíssima desembocam, depois de uma longa descrição que
sacraliza o tipo, numa inesperada
e irônica objetivação da amada,
transformada em modelo artístico marmóreo, frio e carente de
sentimentos.
Sua sátira, embora encene os vícios, não procura reafirmar a ordem estabelecida, estilizando todo o tecido social como um mundo corrupto, numa reiterada desqualificação do Estado, da Igreja e
da sociedade estamental. Num jogo ambíguo com a linguagem, no
qual desestabiliza a crença de que
as palavras reproduzem fielmente
uma ordem divina, relativiza a
moral vigente, considerando-a do
ponto de vista do excluído ou da
ordem.
Numa retomada dos "liliputianos poetastros" de Álvares de
Azevedo, em Gama, o tipo sábio
branco talentoso -os favoritos
do mecenato, glorificados como
"heróis da pátria"-, tentando reproduzir monotonamente a elegia lamartiniana e edulcorar a paisagem local, produz, na verdade,
sofismas e bestialógicos.
Em contraposição, a voz e a forma aptas a vislumbrar a degradação social são atribuídas ao excluído social e à irregularidade
formal. Quando define sua poesia
como "rimas de tarelo, sem metro, sem cadência e sem bitola"
(verso interpretado pela crítica
como autoconfissão de incapacidade poética), reitera a proposta
romântica de desorganizar a forma, opondo-se aos versos perfeitos das "almas fementidas".
Entre suas "personae" satíricas,
o negro de "Lá Vai Verso" retrata-se como um "bestunto", incorporando as vozes da sociedade que o
compõem como carente de juízo.
Assumindo com orgulho sua condição, o enunciador questiona os
altos feitos da "gente luminosa",
de uma elite (seja ela militar, jurídica ou letrada) moldada pelo tráfico da pátria, na qual predominam aves de rapina.
A nova edição dessas sátiras recolheu poemas dispersos em jornais da época e inseriu, em notas
de rodapé, suas alterações para a
edição de 1861.
Primeiras Trovas Burlescas
Luiz Gama
Organização e introdução:
Ligia F. Ferreira
Martins Fontes
(Tel. 0/xx/11/ 239-3677)
296 págs., R$ 27,50
Cilaine Alves é autora de "O Belo e o
Disforme" (Edusp).
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