São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Historiografia da arquitetura

ABILIO GUERRA

Os arquitetos Affonso Eduardo Reidy e João Filgueras Lima, o Lelé, entraram há pouco na série "Arquitetos Brasileiros". Os dois livros dão sequência à coleção iniciada com Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas e que merecerá em breve a solene companhia de Oscar Niemeyer. O sério trabalho de pesquisa e levantamento de fontes é atestado pela riqueza excepcional da documentação textual e iconográfica apresentada, que cobre parte substancial da obra dos arquitetos abordados.
Reidy, pertencente à primeira geração de arquitetos modernos brasileiros que se alinharam ao lado dos "LCs" -Le Corbusier e Lucio Costa- para a construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde (RJ), é autor de obras canônicas, quase todas elas na ex-capital federal -os conjuntos habitacionais de Pedregulho e da Gávea, o Aterro do Flamengo, o Museu de Arte Moderna, entre outras.
Lelé, arquiteto atuante, homenageado na última Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo e representante oficial do Brasil na atual Bienal de Veneza, concentra a maior parte de sua obra em Brasília e Salvador, onde se radicou há muito tempo. Destacam-se seus projetos para os hospitais da rede Sarah Kubitschek, o centro de exposições do Centro Administrativo da Bahia e a sede da Prefeitura de Salvador.
A abundância documental e a parcimônia dos textos introdutórios demonstram uma enorme confiança editorial na capacidade do leitor em processar a constelação de testemunhos, depoimentos, memoriais, desenhos e fotos, chegando por suas próprias conjecturas a uma inteligibilidade da obra. Vale salientar que as mencionadas introduções são muito desiguais, e a interessante, mas insuficiente, entrevista com Lelé e o correto texto de Nabil Bonduki sobre Reidy -sem dúvida, a melhor dentre elas- nem de longe se aproximam da fantasmagórica montagem de textos de Artigas, que abre o volume do arquiteto na coleção.

Vicissitudes pessoais
O desequilíbrio apontado não impede que algumas características fundamentais das atuações dos arquitetos sejam devidamente destacadas. Reidy aparece como o funcionário público exemplar, que dedicou quase toda sua vida profissional à materialização do ideário moderno nos âmbitos da arquitetura e do urbanismo, assim como a experimentação de Lelé com pré-fabricação está devidamente apresentada. Mas, em vez de centrar foco sobre a qualidade arquitetônico-urbanística das obras, a preocupação maior é com as vicissitudes pessoais, as relações de amizade e parentesco, a ação política, a preocupação social e os valores éticos.
Tais tópicos são relevantes para a qualificação da arquitetura quando devidamente enfocados, como se evidencia na citação de Max Bill salientando o sentido humano das habitações de Pedregulho. Contudo, com esse exagero quanto ao que é periférico, corre-se o risco de se deixar escapar considerações substantivas, como, por exemplo, a evidente filiação do brutalismo paulista -uma das mais importantes manifestações estéticas brasileiras das últimas décadas- aos projetos do Colégio Brasil-Paraguai, em Assunção, e do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, ambos de Affonso Reidy.
Nada disso teria muita importância se não intuíssemos que houve aqui um silêncio sintomático. E usamos o termo no seu sentido preciso, como manifestação de um mal-estar difuso, sensação que aumenta e se solidifica ao nos depararmos com uma interessante coincidência. Tanto o livro de Reidy como o de Lelé os aproximam da mesma dupla -Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Bonduki apresenta os três como os "pioneiros da renovação da arquitetura no Brasil", enquanto Lelé -nas palavras de Lucio Costa, em texto usado como prefácio- seria o "construtor" ao lado do "criador" (Niemeyer) e da "tradição" (ele próprio) da arquitetura brasileira.
As duas trincas, onde apenas um dos elementos é trocado, apontam para um "valor" -a brasilidade de nossa arquitetura- que é estranho ao âmbito estético, uma espécie de contaminação culturalista "demodé".
Podemos identificar aqui, nesse tópico específico, uma genealogia intelectual pouco visível, mas vigorosa, um rio caudaloso que flui de um livro de 1956 e lançado pela primeira vez em português há pouco tempo: "Arquitetura Moderna no Brasil", de Henrique Mindlin, publicado em inglês perto do início da construção de Brasília. Parido próximo ao fecho do período heróico da constituição de nossa arquitetura moderna, o livro de Mindlin tem como intenção flagrante a divulgação mundial de um modo específico de materializar os pressupostos modernos, ou seja, a brasilidade de nossa arquitetura.

Miscigenação racial
Não é à toa que em seu texto e no prefácio assinado por S. Giedion vamos encontrar reiteradas afirmações sobre as vicissitudes (quase todas positivas) de nossa arquitetura moderna, seu enraizamento em nosso passado cultural, sua capacidade de fusionar elementos da tradição construtiva colonial e aspectos técnicos e funcionais do ideário europeu. Para justificar tal especificidade, tanto Giedion como Mindlin vão sacar de noções como a miscigenação racial brasileira, a elasticidade mental de nosso povo, a integração com a natureza tropical... O mesmo Giedion que prefaciaria o livro sobre Reidy lançado na Alemanha em 1961!
Mindlin concebeu sua obra como suplemento do catálogo "Brazil Builds" (texto de Philip Goodwin, fotos de Kidder Smith), publicado pelo MoMA de Nova York, em 1943, por ocasião da exposição que apresentou para o público americano a trajetória de nossa arquitetura desde o período colonial, fatos que somados ao pavilhão brasileiro na exposição de Nova York, em 1942, formam o desvio americano que abrirá o caminho para o reconhecimento europeu de nossa arquitetura moderna. O "suplemento" de Mindlin, ao se filiar ao "Brazil Builds", herda deste aspectos estruturais, em especial a retórica que explora o liame espiritual entre as arquiteturas moderna e colonial, inflando a percepção de uma tradição nacional. Não custa lembrar ao leitor que tal invenção, apresentada como descoberta, foi lavra do mestre Lucio Costa, que passou toda a vida costurando e recosturando sua versão.
No livro de Mindlin a gênese de nossa arquitetura moderna é tratada como algo inquestionável. A finalidade do livro era cantar uma ode em homenagem à nossa arquitetura, enaltecê-la mais uma vez, dar-lhe uma amplitude ainda larga, espraiando para um número muito maior de autores e obras os epítetos anteriormente atribuídos apenas aos mestres. Nada mais natural, portanto, do que trazer mais uma vez à tona os argumentos de sempre, alinhando os novos espécimes arquitetônicos na pauta da tradição moderna brasileira. Tradição à qual pertencem Reidy e Lelé, como fazem questão de assinalar, ao alinhá-los no panteão com Costa e Niemeyer, os responsáveis pelos livros.
O problema é que a ausência de uma base política, social e tecnológica necessária à introdução da arquitetura moderna em nosso país foi um dos argumentos mais fortes para a sedimentação de uma visão mais ácida da crítica internacional em relação à arquitetura moderna brasileira.
O selo de "formalismo" dado às obras de Niemeyer e companheiros tinha como principal aliado, por ironia do destino, o próprio discurso hegemônico de atribuir à nossa arquitetura características inatas de nosso povo -uma espécie de flor rara que brota espontaneamente do próprio solo. A falta de clareza de que a arquitetura realizada no Brasil só poderia ser defendida com argumentos arquitetônicos permitiu que a crítica internacional -algumas vezes canhestra, apressada e caricata- retirasse quase por completo nossos representantes de seu manuais e de suas especulações.

Boas intenções
Armadilha intuída por Bonduki, que busca uma explicação mais abrangente para a obra de Reidy, mas sem evitar a contaminação ideológica ao qualificá-lo pelo atendimento das demandas dos oprimidos. Acontece que o verdadeiro estatuto do autor do MAM e de Pedregulho -um dos mais importantes arquitetos do século- jamais poderá se materializar com um discurso que destaca fundamentalmente sua estatura ética e princípios políticos, mesmo que estes sejam a mola propulsora de sua excepcional participação. E por um motivo muito simples: as boas intenções são condições necessárias, mas não suficientes, para uma arquitetura adequada às reais necessidades de uma sociedade.
Os lançamentos editoriais nos colocam diante de uma situação paradoxal: no momento em que a historiografia brasileira da arquitetura ameaça os primeiros passos na busca de respostas menos ideológicas, eis que acontecem os lançamentos, por um lado, de uma das obras mais significativas na montagem da visão mais edulcorada de nosso passado arquitetônico, onde todo tipo de conflito, dúvida ou desvio são esmagados pelo rolo compressor da tradição e, por outro, de catálogos laudatórios de dois nobres representantes desta mesma tradição forjada.
Se é inquestionável a qualidade da maior parte da arquitetura apresentada nos três volumes, do ponto de vista da crítica e da história da arquitetura, o mais importante é o visível descompasso entre a qualidade arquitetônica que sobrevive ao tempo -e que hoje novamente desperta interesse no exterior- e a explicação histórica insustentável que tenta justificá-la. Nessa fissura poderá se infiltrar o vento saudável da renovação, constituindo um ambiente fresco e propício a um acerto histórico tardio, mas necessário. Para isso, porém, é preciso ter coragem. Teremos?



Affonso Eduardo Reidy
Nabil Georges Bonduki (org.)
216 págs., R$ 70,00

João Filgueras Lima, Lelé
Giancarlo Latorraca (org.)
264 págs., R$ 70,00
Coleção Aquitetos Basileiros
Instituto Lina Bo e P.M. Bardi/ Editorial Blau (Tel. 0/xx/11/3744-9902)

Arquitetura Moderna no Brasil
Henrique E. Mindlin
Editora Aeroplano (Tel. 0/xx/21/ 529-6974)
270 págs., R$ 90,00



Abilio Guerra é professor de arquitetura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas) e editor da revista "Arquitextos".

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