|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Historiografia da arquitetura
ABILIO GUERRA
Os arquitetos Affonso Eduardo
Reidy e João Filgueras Lima, o Lelé, entraram há pouco na série
"Arquitetos Brasileiros". Os dois
livros dão sequência à coleção iniciada com Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas e que merecerá em breve a solene companhia de Oscar
Niemeyer. O sério trabalho de
pesquisa e levantamento de fontes é atestado pela riqueza excepcional da documentação textual e
iconográfica apresentada, que cobre parte substancial da obra dos
arquitetos abordados.
Reidy, pertencente à primeira
geração de arquitetos modernos
brasileiros que se alinharam ao lado dos "LCs" -Le Corbusier e
Lucio Costa- para a construção
do edifício do Ministério da Educação e Saúde (RJ), é autor de
obras canônicas, quase todas elas
na ex-capital federal -os conjuntos habitacionais de Pedregulho e
da Gávea, o Aterro do Flamengo,
o Museu de Arte Moderna, entre
outras.
Lelé, arquiteto atuante, homenageado na última Bienal Internacional de Arquitetura de São
Paulo e representante oficial do
Brasil na atual Bienal de Veneza,
concentra a maior parte de sua
obra em Brasília e Salvador, onde
se radicou há muito tempo. Destacam-se seus projetos para os
hospitais da rede Sarah Kubitschek, o centro de exposições do
Centro Administrativo da Bahia e
a sede da Prefeitura de Salvador.
A abundância documental e a
parcimônia dos textos introdutórios demonstram uma enorme
confiança editorial na capacidade
do leitor em processar a constelação de testemunhos, depoimentos, memoriais, desenhos e fotos,
chegando por suas próprias conjecturas a uma inteligibilidade da
obra. Vale salientar que as mencionadas introduções são muito
desiguais, e a interessante, mas insuficiente, entrevista com Lelé e o
correto texto de Nabil Bonduki
sobre Reidy -sem dúvida, a melhor dentre elas- nem de longe
se aproximam da fantasmagórica
montagem de textos de Artigas,
que abre o volume do arquiteto
na coleção.
Vicissitudes pessoais
O desequilíbrio apontado não
impede que algumas características fundamentais das atuações
dos arquitetos sejam devidamente destacadas. Reidy aparece como o funcionário público exemplar, que dedicou quase toda sua
vida profissional à materialização
do ideário moderno nos âmbitos
da arquitetura e do urbanismo,
assim como a experimentação de
Lelé com pré-fabricação está devidamente apresentada. Mas, em
vez de centrar foco sobre a qualidade arquitetônico-urbanística
das obras, a preocupação maior é
com as vicissitudes pessoais, as
relações de amizade e parentesco,
a ação política, a preocupação social e os valores éticos.
Tais tópicos são relevantes para
a qualificação da arquitetura
quando devidamente enfocados,
como se evidencia na citação de
Max Bill salientando o sentido humano das habitações de Pedregulho. Contudo, com esse exagero
quanto ao que é periférico, corre-se o risco de se deixar escapar
considerações substantivas, como, por exemplo, a evidente filiação do brutalismo paulista
-uma das mais importantes manifestações estéticas brasileiras
das últimas décadas- aos projetos do Colégio Brasil-Paraguai,
em Assunção, e do Museu de Arte
Moderna no Rio de Janeiro, ambos de Affonso Reidy.
Nada disso teria muita importância se não intuíssemos que
houve aqui um silêncio sintomático. E usamos o termo no seu
sentido preciso, como manifestação de um mal-estar difuso, sensação que aumenta e se solidifica
ao nos depararmos com uma interessante coincidência. Tanto o
livro de Reidy como o de Lelé os
aproximam da mesma dupla
-Oscar Niemeyer e Lucio Costa.
Bonduki apresenta os três como
os "pioneiros da renovação da arquitetura no Brasil", enquanto
Lelé -nas palavras de Lucio Costa, em texto usado como prefácio- seria o "construtor" ao lado
do "criador" (Niemeyer) e da
"tradição" (ele próprio) da arquitetura brasileira.
As duas trincas, onde apenas
um dos elementos é trocado,
apontam para um "valor" -a
brasilidade de nossa arquitetura- que é estranho ao âmbito estético, uma espécie de contaminação culturalista "demodé".
Podemos identificar aqui, nesse
tópico específico, uma genealogia
intelectual pouco visível, mas vigorosa, um rio caudaloso que flui
de um livro de 1956 e lançado pela
primeira vez em português há
pouco tempo: "Arquitetura Moderna no Brasil", de Henrique
Mindlin, publicado em inglês perto do início da construção de Brasília. Parido próximo ao fecho do
período heróico da constituição
de nossa arquitetura moderna, o
livro de Mindlin tem como intenção flagrante a divulgação mundial de um modo específico de
materializar os pressupostos modernos, ou seja, a brasilidade de
nossa arquitetura.
Miscigenação racial
Não é à toa que em seu texto e
no prefácio assinado por S. Giedion vamos encontrar reiteradas
afirmações sobre as vicissitudes
(quase todas positivas) de nossa
arquitetura moderna, seu enraizamento em nosso passado cultural, sua capacidade de fusionar
elementos da tradição construtiva
colonial e aspectos técnicos e funcionais do ideário europeu. Para
justificar tal especificidade, tanto
Giedion como Mindlin vão sacar
de noções como a miscigenação
racial brasileira, a elasticidade
mental de nosso povo, a integração com a natureza tropical... O
mesmo Giedion que prefaciaria o
livro sobre Reidy lançado na Alemanha em 1961!
Mindlin concebeu sua obra como suplemento do catálogo "Brazil Builds" (texto de Philip Goodwin, fotos de Kidder Smith), publicado pelo MoMA de Nova
York, em 1943, por ocasião da exposição que apresentou para o
público americano a trajetória de
nossa arquitetura desde o período
colonial, fatos que somados ao
pavilhão brasileiro na exposição
de Nova York, em 1942, formam o
desvio americano que abrirá o caminho para o reconhecimento
europeu de nossa arquitetura moderna. O "suplemento" de Mindlin, ao se filiar ao "Brazil Builds",
herda deste aspectos estruturais,
em especial a retórica que explora
o liame espiritual entre as arquiteturas moderna e colonial, inflando a percepção de uma tradição
nacional. Não custa lembrar ao
leitor que tal invenção, apresentada como descoberta, foi lavra do
mestre Lucio Costa, que passou
toda a vida costurando e recosturando sua versão.
No livro de Mindlin a gênese de
nossa arquitetura moderna é tratada como algo inquestionável. A
finalidade do livro era cantar uma
ode em homenagem à nossa arquitetura, enaltecê-la mais uma
vez, dar-lhe uma amplitude ainda
larga, espraiando para um número muito maior de autores e obras
os epítetos anteriormente atribuídos apenas aos mestres. Nada
mais natural, portanto, do que
trazer mais uma vez à tona os argumentos de sempre, alinhando
os novos espécimes arquitetônicos na pauta da tradição moderna
brasileira. Tradição à qual pertencem Reidy e Lelé, como fazem
questão de assinalar, ao alinhá-los
no panteão com Costa e Niemeyer, os responsáveis pelos livros.
O problema é que a ausência de
uma base política, social e tecnológica necessária à introdução da
arquitetura moderna em nosso
país foi um dos argumentos mais
fortes para a sedimentação de
uma visão mais ácida da crítica
internacional em relação à arquitetura moderna brasileira.
O selo de "formalismo" dado às
obras de Niemeyer e companheiros tinha como principal aliado,
por ironia do destino, o próprio
discurso hegemônico de atribuir
à nossa arquitetura características
inatas de nosso povo -uma espécie de flor rara que brota espontaneamente do próprio solo. A
falta de clareza de que a arquitetura realizada no Brasil só poderia
ser defendida com argumentos
arquitetônicos permitiu que a crítica internacional -algumas vezes canhestra, apressada e caricata- retirasse quase por completo
nossos representantes de seu manuais e de suas especulações.
Boas intenções
Armadilha intuída por Bonduki, que busca uma explicação
mais abrangente para a obra de
Reidy, mas sem evitar a contaminação ideológica ao qualificá-lo
pelo atendimento das demandas
dos oprimidos. Acontece que o
verdadeiro estatuto do autor do
MAM e de Pedregulho -um dos
mais importantes arquitetos do
século- jamais poderá se materializar com um discurso que destaca fundamentalmente sua estatura ética e princípios políticos,
mesmo que estes sejam a mola
propulsora de sua excepcional
participação. E por um motivo
muito simples: as boas intenções
são condições necessárias, mas
não suficientes, para uma arquitetura adequada às reais necessidades de uma sociedade.
Os lançamentos editoriais nos
colocam diante de uma situação
paradoxal: no momento em que a
historiografia brasileira da arquitetura ameaça os primeiros passos na busca de respostas menos
ideológicas, eis que acontecem os
lançamentos, por um lado, de
uma das obras mais significativas
na montagem da visão mais edulcorada de nosso passado arquitetônico, onde todo tipo de conflito,
dúvida ou desvio são esmagados
pelo rolo compressor da tradição
e, por outro, de catálogos laudatórios de dois nobres representantes
desta mesma tradição forjada.
Se é inquestionável a qualidade
da maior parte da arquitetura
apresentada nos três volumes, do
ponto de vista da crítica e da história da arquitetura, o mais importante é o visível descompasso
entre a qualidade arquitetônica
que sobrevive ao tempo -e que
hoje novamente desperta interesse no exterior- e a explicação
histórica insustentável que tenta
justificá-la. Nessa fissura poderá
se infiltrar o vento saudável da renovação, constituindo um ambiente fresco e propício a um
acerto histórico tardio, mas necessário. Para isso, porém, é preciso ter coragem. Teremos?
Affonso Eduardo Reidy
Nabil Georges Bonduki (org.)
216 págs., R$ 70,00
João Filgueras Lima, Lelé
Giancarlo Latorraca (org.)
264 págs., R$ 70,00
Coleção Aquitetos Basileiros
Instituto Lina Bo e P.M. Bardi/
Editorial Blau
(Tel. 0/xx/11/3744-9902)
Arquitetura Moderna
no Brasil
Henrique E. Mindlin
Editora Aeroplano
(Tel. 0/xx/21/ 529-6974)
270 págs., R$ 90,00
Abilio Guerra é professor de arquitetura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas) e editor da revista "Arquitextos".
Texto Anterior: Leyla Perrone-Moisés: A cidade flutuante Próximo Texto: Raquel Rolnik: O cidadão privado Índice
|