São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Novo romance revela amadurecimento de Milton Hatoum
A cidade flutuante

LEYLA PERRONE-MOISÉS

Valeu a pena esperar 11 anos pelo segundo romance de Milton Hatoum. "Dois Irmãos" revela um notável amadurecimento do romancista, promissor em "Relato de um Certo Oriente", e agora dotado do domínio pleno de sua temática e de seus meios.
Este romance tem muitas qualidades. A mais sedutora talvez seja, como no anterior e mais do que naquele, a ambientação: Manaus, o clima, as cores e principalmente os odores ("um cheiro que morreu nos tajás da minha moita"). Assim como a vegetação equatorial, na qual as plantas estão permanentemente morrendo e florescendo, numa mistura de podridão e verdor, a cidade de Milton Hatoum é uma ruína pululante de vitalidade. O cheiro da floresta ali se mistura com o cheiro de lodo. A Cidade Flutuante, bairro de palafitas cuja destruição é narrada no fim do romance, poderia ser uma metáfora dessa cidade suspensa na memória do romancista, cidade cujas misérias ele desejaria esquecer, e de cujos encantos ele se mantém cativo.
As personagens do romance estão todas, de uma forma ou outra, presas a esse fascínio. O "habitat" em que todos se movem, em gozo e sofrimento, é esse lugar de calor e chuva, de águas caudalosas, de frutas, pássaros e peixes nativos, cunhantãs e curumins. Esse é o universo do romancista Milton Hatoum, que não pode ser rotulado de exótico porque só o é para um olhar de fora, e não para quem, sendo parte dele, o vê sem idealização, com melancólica lucidez.

Segredo e anúncio
Outra qualidade do romance é a construção da narrativa, esteada no segredo e no anúncio. O leitor tem sua atenção presa, ao longo de todo o relato, a um segredo lentamente desvendado, e a um desastre final, várias vezes anunciado e sempre adiado. O narrador é o detentor do segredo, parte integrante dele, e testemunha de uma história que implica todas as personagens. Temos, assim, um triplo segredo. O primeiro, é a própria identidade do narrador, que só se revela na pág. 73. O segundo, levado até o fim do livro, através de indícios ambíguos, é o de sua origem paterna. O terceiro segredo é urdido na própria trama narrativa, pelos anúncios de um desenlace que só conhecemos nas últimas páginas.
Encantos da narratividade, que Aristóteles já descrevia como reconhecimento e peripécia, e que atualmente redescobrimos como resposta a uma demanda permanente do ser humano. Rejeitada pelo romance e pelo cinema experimentais da modernidade, a fabulação sobreviveu, através do século 20, nos gêneros menos "nobres", como o filme comercial, a telenovela e a história em quadrinhos. Para suprir esse anseio de narratividade, os leitores deste fim de século tornaram-se grandes consumidores de relatos históricos e de biografias. Agora, vemos reaparecer, em vários países, romances que colocam as conquistas técnicas da narrativa moderna a serviço da fabulação.
A fabulação romanesca requer personagens com espessura de experiência e de sentimentos, e estas não faltam em "Dois Irmãos". Elas são aí numerosas, principais, secundárias e circunstanciais, percorrendo toda a gama, desde aquelas minuciosamente construídas até as simplesmente esboçadas, tipos manauaras, seres "que piavam de tanta pobreza".
As personagens principais, como anuncia o título, são dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar. Milton Hatoum foi corajoso ao escolher esse tema. O tema dos gêmeos, semelhantes ou dissemelhantes, amigos ou inimigos, opostos ou complementares, tem sido fartamente explorado em todos os tempos e todas as culturas e, na nossa, em todos os gêneros, do mito ao folhetim. Desde os míticos Dióscuros gregos, passando pelo par Esaú e Jacó (da Bíblia e de Machado de Assis) ou os "Irmãos Corsos", de Alexandre Dumas, até chegar ao cinema e às novelas de televisão, variando do tom mórbido ao caricato, os gêmeos pareciam ser um tema ficcional esgotado. Ora, Hatoum soube revigorá-lo de maneira original.
Idênticos na aparência, Yaqub e Omar têm personalidades e destinos muito diversos, sem que o romancista caia na facilidade de alegorizá-los de modo maniqueísta, como oposição do Bem ao Mal, do positivo ao negativo, da felicidade à infelicidade e, portanto, sem apontar para uma síntese. Yaqub é vítima de um duplo trauma: o de ser relegado ao segundo plano, no afeto materno e o de ter sido mandado para o Líbano quando criança. De volta a Manaus, ele será um homem sombrio e fechado, um calculista que perseguirá objetivos práticos. Mudando-se para São Paulo, torna-se engenheiro bem-sucedido.

Rivalidade e rancores
Omar, o preferido da mãe, é mau aluno, baderneiro e, mais tarde, ocioso e boêmio. O único ponto que os irmana é a afeição pelas mesmas mulheres: a mãe, a irmã, uma vizinha, a empregada. Mas esses afetos são também a causa da rivalidade e dos rancores, que provocam constantes enfrentamentos. O mais complexo desses sentimentos (porque nele reside o segredo da narrativa e da narração) é o que os liga à empregada Domingas, índia adotada pela família e pelo filho desta, Nael, ambos relegados aos "quartinhos dos fundos". Embora baseada igualmente na concorrência, essa afeição impede que Yaqub seja caracterizado como frio e mau ou Omar como totalmente irresponsável. Domingas, a empregada de coração simples, é o eixo afetivo sobre o qual os irmãos buscam equilibrar-se. A imagem da gangorra aparece em vários pontos do relato, evidenciando uma oscilação jamais resolvida, a favor ou contra um dos gêmeos. Assim como Zana põe os filhos na gangorra de seu afeto (pág. 127), o narrador-personagem se sente numa gangorra quando tenta julgar os gêmeos (pág. 114).
Transcorrendo entre o período da Segunda Guerra até os anos da ditadura militar, a história dos dois irmãos conta, em filigrana, a história da Amazônia e do Brasil. As peripécias existenciais de suas personagens têm como pano de fundo ativo e influente as mudanças por que passa Manaus: as privações da cidade, já decadente, durante a guerra; a fundação de Brasília vista de longe; a ocupação da cidade pelos militares, "monstro verde" mais assustador do que a floresta; a repressão e a violência; o progresso duvidoso, porque desigual. As transformações do comércio, desde a lojinha modesta do antigo mascate, passando pela imitação do "milagre econômico" do sul, até a proliferação dos badulaques globalizados e a compra da loja por um indiano inescrupuloso, vão sendo discretamente registradas pelo narrador, como um subtema musical numa melodia sabiamente orquestrada. A visada política não é direta, explícita, mas assume a via indireta, que é a da literatura.
"Cousas futuras!", era a enigmática previsão da sibila machadiana, em "Esaú e Jacó". O futuro dos gêmeos de Machado, pelo menos no nível da trama, é feliz. Ambos acabam tendo um papel político ativo na jovem República, e Natividade, a mãe, vê realizado seu sonho de reconciliar os filhos. Mas a incerteza de uma harmonia final permanece, já que os gêmeos, depois, voltam a se desentender. No Brasil moderno de "Dois Irmãos", a síntese não ocorre nem no nível da trama (a mãe morre sem ver os filhos reconciliados).
Por caminhos opostos, o do trabalho desenvolvimentista ou o do ócio macunaímico, Yaqub e Omar chegam à infelicidade pessoal: "A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos nesse mundo não foram menos danosas que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada" (pág. 263). Nenhuma utopia emerge dessa história: "E o futuro, ou a idéia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da era industrial e mais longe ainda do nosso passado glorioso" (pág. 126). Entretanto o futuro é "essa falácia que persiste". O pessimismo do romancista é evidente, mas o fato de este assumir a tarefa de o colocar em palavras, encarnando-se num narrador escritor, é prova suficiente de que ele não leva esse pessimismo até o ceticismo. Os olhos do romancista são, como os da personagem Halim, "não tão acesos, mas tampouco baços".

Memória e esquecimento
Inevitavelmente atado à realidade amazônica, o livro de Hatoum, como todas as boas obras literárias, tem uma dimensão universal, por ser também, e sobretudo, um livro sobre a memória e o esquecimento, a vingança e o perdão. Todas as personagens estão enredadas em lembranças, e as principais têm um desejo de vingança, que deveria transformar-se em perdão. O narrador é o herdeiro que assume esses sentimentos: "Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia do rio". Ele também quer vingar-se: "Mas vingar-me de quem?". O perdão fica em suspenso, na última palavra do livro.
Sem ceder a modismos superficiais, o romance de Hatoum é, em sua temática e em sua forma, muito atual. O livro tem muitas semelhanças com os de certos autores pós-coloniais indianos, sobretudo com "O Deus das Pequenas Coisas", de Arundhati Roy. Malgrado as diferenças históricas, os mundos retratados nesses romances acabam por assemelhar-se. São mundos arruinados pela colonização, desfigurados pela globalização, onde as casas familiares se esvaziam e desmoronam, deixando apenas, na memória, pequenos paraísos naturais, jardins ou quintais da infância, com seus cheiros, sabores e cores, "pequenas coisas" cuja preservação é assumida pelos escritores como uma missão, uma reserva, uma tênue possibilidade de futuro. A última palavra do livro de Roy é "amanhã".
Apesar de habitados por personagens de diversas origens étnicas e geográficas, o que vemos nessas histórias, quer elas mostrem o pós-colonialismo ou o pós-imigração, não é aquilo que os países ricos cultivam como "multiculturalismo". O multiculturalismo é o elogio da diferença étnica e cultural que, ao mesmo tempo, sustenta as economias desses países, necessitados de mão de obra estrangeira, e mantém a desigualdade Norte-Sul. No Brasil, como na Índia, países em que a desigualdade social se sobrepõe, perfidamente, à diferença étnica ou de casta, o que se busca é um lugar na nova (des)ordem mundial e uma problemática transculturação local. A peculiaridade brasileira retratada no romance é a de reproduzir, invertida em latitude, a desigualdade Norte-Sul: calor e atraso econômico na Manaus de Omar, frio e desenvolvimento na São Paulo de Yaqub.
Enquanto o problema econômico não se resolve, efetua-se uma miscigenação étnica e cultural. Os imigrantes do romance de Hatoum são menos libaneses do que manauaras. O Líbano acaba sendo, no texto, mais "exótico" do que a Amazônia; é uma referência longínqua, imobilizada em imagens quase estereotipadas: as montanhas, o céu azul, os cedros, os rebanhos de carneiros. A culinária de Galib -tucunará com molho de gergelim, recheado com farofa e azeitonas- é transcultural como as conversas em seu restaurante, onde o português se mistura com o árabe, o francês e o espanhol. Essa riqueza linguística também contribui para o estilo de Hatoum, que harmoniza o som de palavras árabes com o som das palavras brasileiras e tupis, sem cair num preciosismo verbal gratuito. Pelo contrário, a linguagem do romance é, ao mesmo tempo, rica e limpa, mais enxuta e mais eficiente do que no primeiro livro do autor.
Reconhecidas todas essas qualidades de "Dois Irmãos", apenas um pequeno reparo poderia ser feito, no que se refere à arquitetura da narrativa. Conduzida com maestria por mais de 200 páginas, no fim do livro o andamento da trama começa a girar em círculo, com idas e vindas das personagens (até dos mortos, na memória do narrador), e excesso de motivações, no caso de Omar (implicações políticas somadas às psicológicas). Parece-me que a trama ganharia mais intensidade sem essas complicações finais. Mas esse pequeno defeito não prejudica a força total do romance.



Dois Irmãos
Milton Hatoum
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/ 3846-0801) 266 págs., R$ 24,00



Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de "Altas Literaturas" (Companhia das Letras).



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