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Novo romance revela amadurecimento de Milton Hatoum
A cidade flutuante
LEYLA PERRONE-MOISÉS
Valeu a pena esperar 11 anos pelo segundo romance de Milton Hatoum.
"Dois Irmãos" revela um notável amadurecimento do romancista, promissor em
"Relato de um Certo Oriente", e agora
dotado do domínio pleno de sua temática
e de seus meios.
Este romance tem muitas qualidades. A
mais sedutora talvez seja, como no anterior e mais do que naquele, a ambientação: Manaus, o clima, as cores e principalmente os odores ("um cheiro que
morreu nos tajás da minha moita"). Assim como a vegetação equatorial, na qual
as plantas estão permanentemente morrendo e florescendo, numa mistura de
podridão e verdor, a cidade de Milton
Hatoum é uma ruína pululante de vitalidade. O cheiro da floresta ali se mistura
com o cheiro de lodo. A Cidade Flutuante, bairro de palafitas cuja destruição é
narrada no fim do romance, poderia ser
uma metáfora dessa cidade suspensa na
memória do romancista, cidade cujas
misérias ele desejaria esquecer, e de cujos
encantos ele se mantém cativo.
As personagens do romance estão todas, de uma forma ou outra, presas a esse
fascínio. O "habitat" em que todos se movem, em gozo e sofrimento, é esse lugar
de calor e chuva, de águas caudalosas, de
frutas, pássaros e peixes nativos, cunhantãs e curumins. Esse é o universo do romancista Milton Hatoum, que não pode
ser rotulado de exótico porque só o é para
um olhar de fora, e não para quem, sendo
parte dele, o vê sem idealização, com melancólica lucidez.
Segredo e anúncio
Outra qualidade do romance é a construção da narrativa, esteada no segredo e
no anúncio. O leitor tem sua atenção presa, ao longo de todo o relato, a um segredo lentamente desvendado, e a um desastre final, várias vezes anunciado e sempre
adiado. O narrador é o detentor do segredo, parte integrante dele, e testemunha
de uma história que implica todas as personagens. Temos, assim, um triplo segredo. O primeiro, é a própria identidade do
narrador, que só se revela na pág. 73. O
segundo, levado até o fim do livro, através de indícios ambíguos, é o de sua origem paterna. O terceiro segredo é urdido
na própria trama narrativa, pelos anúncios de um desenlace que só conhecemos
nas últimas páginas.
Encantos da narratividade, que Aristóteles já descrevia como reconhecimento e
peripécia, e que atualmente redescobrimos como resposta a uma demanda permanente do ser humano. Rejeitada pelo
romance e pelo cinema experimentais da
modernidade, a fabulação sobreviveu,
através do século 20, nos gêneros menos
"nobres", como o filme comercial, a telenovela e a história em quadrinhos. Para
suprir esse anseio de narratividade, os leitores deste fim de século tornaram-se
grandes consumidores de relatos históricos e de biografias. Agora, vemos reaparecer, em vários países, romances que colocam as conquistas técnicas da narrativa
moderna a serviço da fabulação.
A fabulação romanesca requer personagens com espessura de experiência e
de sentimentos, e estas não faltam em
"Dois Irmãos". Elas são aí numerosas,
principais, secundárias e circunstanciais,
percorrendo toda a gama, desde aquelas
minuciosamente construídas até as simplesmente esboçadas, tipos manauaras,
seres "que piavam de tanta pobreza".
As personagens principais, como
anuncia o título, são dois irmãos gêmeos,
Yaqub e Omar. Milton Hatoum foi corajoso ao escolher esse tema. O tema dos
gêmeos, semelhantes ou dissemelhantes,
amigos ou inimigos, opostos ou complementares, tem sido fartamente explorado
em todos os tempos e todas as culturas e,
na nossa, em todos os gêneros, do mito
ao folhetim. Desde os míticos Dióscuros
gregos, passando pelo par Esaú e Jacó (da
Bíblia e de Machado de Assis) ou os "Irmãos Corsos", de Alexandre Dumas, até
chegar ao cinema e às novelas de televisão, variando do tom mórbido ao caricato, os gêmeos pareciam ser um tema ficcional esgotado. Ora, Hatoum soube revigorá-lo de maneira original.
Idênticos na aparência, Yaqub e Omar
têm personalidades e destinos muito diversos, sem que o romancista caia na facilidade de alegorizá-los de modo maniqueísta, como oposição do Bem ao Mal,
do positivo ao negativo, da felicidade à
infelicidade e, portanto, sem apontar para uma síntese. Yaqub é vítima de um duplo trauma: o de ser relegado ao segundo
plano, no afeto materno e o de ter sido
mandado para o Líbano quando criança.
De volta a Manaus, ele será um homem
sombrio e fechado, um calculista que
perseguirá objetivos práticos. Mudando-se para São Paulo, torna-se engenheiro
bem-sucedido.
Rivalidade e rancores
Omar, o preferido da mãe, é mau aluno,
baderneiro e, mais tarde, ocioso e boêmio. O único ponto que os irmana é a
afeição pelas mesmas mulheres: a mãe, a
irmã, uma vizinha, a empregada. Mas esses afetos são também a causa da rivalidade e dos rancores, que provocam constantes enfrentamentos. O mais complexo
desses sentimentos (porque nele reside o
segredo da narrativa e da narração) é o
que os liga à empregada Domingas, índia
adotada pela família e pelo filho desta,
Nael, ambos relegados aos "quartinhos
dos fundos". Embora baseada igualmente na concorrência, essa afeição impede
que Yaqub seja caracterizado como frio e
mau ou Omar como totalmente irresponsável. Domingas, a empregada de coração simples, é o eixo afetivo sobre o
qual os irmãos buscam equilibrar-se. A
imagem da gangorra aparece em vários
pontos do relato, evidenciando uma oscilação jamais resolvida, a favor ou contra
um dos gêmeos. Assim como Zana põe
os filhos na gangorra de seu afeto (pág.
127), o narrador-personagem se sente
numa gangorra quando tenta julgar os
gêmeos (pág. 114).
Transcorrendo entre o período da Segunda Guerra até os anos da ditadura militar, a história dos dois irmãos conta, em
filigrana, a história da Amazônia e do
Brasil. As peripécias existenciais de suas
personagens têm como pano de fundo
ativo e influente as mudanças por que
passa Manaus: as privações da cidade, já
decadente, durante a guerra; a fundação
de Brasília vista de longe; a ocupação da
cidade pelos militares, "monstro verde"
mais assustador do que a floresta; a repressão e a violência; o progresso duvidoso, porque desigual. As transformações
do comércio, desde a lojinha modesta do
antigo mascate, passando pela imitação
do "milagre econômico" do sul, até a proliferação dos badulaques globalizados e a
compra da loja por um indiano inescrupuloso, vão sendo discretamente registradas pelo narrador, como um subtema
musical numa melodia sabiamente orquestrada. A visada política não é direta,
explícita, mas assume a via indireta, que é
a da literatura.
"Cousas futuras!", era a enigmática previsão da sibila machadiana, em "Esaú e
Jacó". O futuro dos gêmeos de Machado,
pelo menos no nível da trama, é feliz.
Ambos acabam tendo um papel político
ativo na jovem República, e Natividade, a
mãe, vê realizado seu sonho de reconciliar os filhos. Mas a incerteza de uma harmonia final permanece, já que os gêmeos,
depois, voltam a se desentender. No Brasil moderno de "Dois Irmãos", a síntese
não ocorre nem no nível da trama (a mãe
morre sem ver os filhos reconciliados).
Por caminhos opostos, o do trabalho
desenvolvimentista ou o do ócio macunaímico, Yaqub e Omar chegam à infelicidade pessoal: "A loucura da paixão de
Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos nesse mundo não foram
menos danosas que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição
calculada" (pág. 263). Nenhuma utopia
emerge dessa história: "E o futuro, ou a
idéia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos
longe da era industrial e mais longe ainda
do nosso passado glorioso" (pág. 126).
Entretanto o futuro é "essa falácia que
persiste". O pessimismo do romancista é
evidente, mas o fato de este assumir a tarefa de o colocar em palavras, encarnando-se num narrador escritor, é prova suficiente de que ele não leva esse pessimismo até o ceticismo. Os olhos do romancista são, como os da personagem Halim,
"não tão acesos, mas tampouco baços".
Memória e esquecimento
Inevitavelmente atado à realidade amazônica, o livro de Hatoum, como todas as
boas obras literárias, tem uma dimensão
universal, por ser também, e sobretudo,
um livro sobre a memória e o esquecimento, a vingança e o perdão. Todas as
personagens estão enredadas em lembranças, e as principais têm um desejo de
vingança, que deveria transformar-se em
perdão. O narrador é o herdeiro que assume esses sentimentos: "Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive sede
de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia do rio".
Ele também quer vingar-se: "Mas vingar-me de quem?". O perdão fica em suspenso, na última palavra do livro.
Sem ceder a modismos superficiais, o
romance de Hatoum é, em sua temática e
em sua forma, muito atual. O livro tem
muitas semelhanças com os de certos autores pós-coloniais indianos, sobretudo
com "O Deus das Pequenas Coisas", de
Arundhati Roy. Malgrado as diferenças
históricas, os mundos retratados nesses
romances acabam por assemelhar-se.
São mundos arruinados pela colonização, desfigurados pela globalização, onde
as casas familiares se esvaziam e desmoronam, deixando apenas, na memória,
pequenos paraísos naturais, jardins ou
quintais da infância, com seus cheiros,
sabores e cores, "pequenas coisas" cuja
preservação é assumida pelos escritores
como uma missão, uma reserva, uma tênue possibilidade de futuro. A última palavra do livro de Roy é "amanhã".
Apesar de habitados por personagens
de diversas origens étnicas e geográficas,
o que vemos nessas histórias, quer elas
mostrem o pós-colonialismo ou o pós-imigração, não é aquilo que os países ricos cultivam como "multiculturalismo".
O multiculturalismo é o elogio da diferença étnica e cultural que, ao mesmo
tempo, sustenta as economias desses países, necessitados de mão de obra estrangeira, e mantém a desigualdade Norte-Sul. No Brasil, como na Índia, países em
que a desigualdade social se sobrepõe,
perfidamente, à diferença étnica ou de
casta, o que se busca é um lugar na nova
(des)ordem mundial e uma problemática
transculturação local. A peculiaridade
brasileira retratada no romance é a de reproduzir, invertida em latitude, a desigualdade Norte-Sul: calor e atraso econômico na Manaus de Omar, frio e desenvolvimento na São Paulo de Yaqub.
Enquanto o problema econômico não
se resolve, efetua-se uma miscigenação
étnica e cultural. Os imigrantes do romance de Hatoum são menos libaneses
do que manauaras. O Líbano acaba sendo, no texto, mais "exótico" do que a
Amazônia; é uma referência longínqua,
imobilizada em imagens quase estereotipadas: as montanhas, o céu azul, os cedros, os rebanhos de carneiros. A culinária de Galib -tucunará com molho de
gergelim, recheado com farofa e azeitonas- é transcultural como as conversas
em seu restaurante, onde o português se
mistura com o árabe, o francês e o espanhol. Essa riqueza linguística também
contribui para o estilo de Hatoum, que
harmoniza o som de palavras árabes com
o som das palavras brasileiras e tupis,
sem cair num preciosismo verbal gratuito. Pelo contrário, a linguagem do romance é, ao mesmo tempo, rica e limpa,
mais enxuta e mais eficiente do que no
primeiro livro do autor.
Reconhecidas todas essas qualidades
de "Dois Irmãos", apenas um pequeno
reparo poderia ser feito, no que se refere à
arquitetura da narrativa. Conduzida com
maestria por mais de 200 páginas, no fim
do livro o andamento da trama começa a
girar em círculo, com idas e vindas das
personagens (até dos mortos, na memória do narrador), e excesso de motivações, no caso de Omar (implicações políticas somadas às psicológicas). Parece-me que a trama ganharia mais intensidade sem essas complicações finais. Mas esse pequeno defeito não prejudica a força
total do romance.
Dois Irmãos
Milton Hatoum
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/
3846-0801)
266 págs., R$ 24,00
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP e autora de "Altas Literaturas" (Companhia
das Letras).
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