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O crítico de cinema Jean-Claude Bernardet
comenta livro sobre o grupo Teatro da Vertigem
O silêncio de Deus
Teatro da Vertigem -
Trilogia Bíblica
Vários autores
Publifolha (Tel. 0/xx/11/3224-2196)
360 págs., R$ 49,00
JEAN-CLAUDE BERNARDET
"Teatro da Vertigem - Trilogia Bíblica" é uma documentação sobre o grupo teatral dirigido por Antônio Araújo, que
marcou indiscutivelmente os últimos dez
anos da vida teatral brasileira. Compõe-se dos textos dos três espetáculos, "O Paraíso Perdido", "O Livro de Jó" e "Apocalipse 1, 11", de depoimentos de integrantes do grupo, de críticas contemporâneas
dos espetáculos. A documentação é precedida por três ensaios de Aimar Labaki,
Silvana Garcia e Sílvia Fernandes; são ensaios curtos que gostaríamos mais alentados, considerando a importância do trabalho estético, dramatúrgico, social e religioso realizado pelo Teatro da Vertigem.
Todos os ensaístas, de formas diversas,
parecem expressar uma nostalgia que
Antônio Araújo veio sanar: que o teatro
saísse dos lugares bem-comportados, da
caixa do palco italiano a que o teatro brasileiro se viu praticamente confinado a
partir da virada dos anos 60 para os 70, e
procurasse espaços não-convencionais,
no caso uma igreja, um hospital e uma
cadeia. Mas sair dos espaços oficiais do
lazer teatral não significa encontrar lugares exóticos, e sim superar um entretenimento de emoções controladas para provocar no espectador não apenas uma intensidade emocional que o desestabilize,
como um questionamento de seus sentimentos e valores morais e religiosos. Que
o teatro se torne uma experiência de vida.
O espetáculo da igreja Santa Ifigênia
[em Santa Cecília, região central de SP] é
exemplar nesse sentido. Histórias do teatro nos ensinam que o espetáculo teatral
nasceu de rituais religiosos. Pouco a pouco, os participantes dos rituais foram
afastados e substituídos por representantes. O bode expiatório, que os fiéis malhavam com o sangue espirrando, foi colocado numa passarela. Os sacerdotes batiam
no bode, o ritual tornava-se mais limpo e
os fiéis viravam espectadores. Ao encenar
"O Paraíso Perdido" numa igreja, com os
espectadores dispersos pelo espaço da
atuação e não mantidos diante dele a
uma distância respeitosa, o Teatro da
Vertigem volta aos primórdios.
A revolta de fundamentalistas católicos
contra a encenação no templo remete a
um fundo questionamento das origens
do teatro e ao trabalho de higienização
que distanciou rituais religiosos de práticas teatrais. A encenação na igreja questionava uma religião confortável e rotineira (o que em princípio uma religião
não deveria ser). Essa situação nos coloca
diante de uma questão iniludível: em
nossa sociedade ocidental, entre a ausência de religiosidade e a rotina religiosa, há
espaço para o sagrado? (Já tínhamos passado por isso com a interdição do filme
"Je vous Salue Marie", de Jean-Luc Godard.) O Teatro da Vertigem faz esse
questionamento sobre o sagrado entre
nós de forma infinitamente mais incisiva
do que qualquer sagrado turístico.
"O Paraíso Perdido" é a primeira parte
do que se denominou a "Trilogia Bíblica". Sim, os espetáculos se inspiram em
temas e textos bíblicos. Mas o que predomina na "Trilogia" é o tema da ausência.
A ausência, a perda de Deus, o seu absurdo silêncio e o intenso desejo de reencontrá-lo, de se juntar a ele, é o que marca os
três espetáculos. O Teatro da Vertigem
não se dirige a pessoas religiosas nem aos
ateus. Mas a todos. Os fiéis poderão, com
ele, viver experiências que questionem e
reavivem sua fé. Os ateus (é meu caso)
poderão, pelo viés da experiência poética,
vivenciar intuições religiosas.
Uma crítica russa, Vidas Siliunas, evoca
a "amargura das perdas" a respeito de "O
Livro de Jó". Sugestão que merece reflexão, pois ela remete a um universo imaginário mais amplo que o estritamente religioso. Sim, tanto este espetáculo como
"O Paraíso Perdido" permitem ao espectador elaborar a dor de suas perdas.
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