São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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O crítico de cinema Jean-Claude Bernardet comenta livro sobre o grupo Teatro da Vertigem

O silêncio de Deus

Teatro da Vertigem - Trilogia Bíblica
Vários autores
Publifolha (Tel. 0/xx/11/3224-2196)
360 págs., R$ 49,00

JEAN-CLAUDE BERNARDET

"Teatro da Vertigem - Trilogia Bíblica" é uma documentação sobre o grupo teatral dirigido por Antônio Araújo, que marcou indiscutivelmente os últimos dez anos da vida teatral brasileira. Compõe-se dos textos dos três espetáculos, "O Paraíso Perdido", "O Livro de Jó" e "Apocalipse 1, 11", de depoimentos de integrantes do grupo, de críticas contemporâneas dos espetáculos. A documentação é precedida por três ensaios de Aimar Labaki, Silvana Garcia e Sílvia Fernandes; são ensaios curtos que gostaríamos mais alentados, considerando a importância do trabalho estético, dramatúrgico, social e religioso realizado pelo Teatro da Vertigem.
Todos os ensaístas, de formas diversas, parecem expressar uma nostalgia que Antônio Araújo veio sanar: que o teatro saísse dos lugares bem-comportados, da caixa do palco italiano a que o teatro brasileiro se viu praticamente confinado a partir da virada dos anos 60 para os 70, e procurasse espaços não-convencionais, no caso uma igreja, um hospital e uma cadeia. Mas sair dos espaços oficiais do lazer teatral não significa encontrar lugares exóticos, e sim superar um entretenimento de emoções controladas para provocar no espectador não apenas uma intensidade emocional que o desestabilize, como um questionamento de seus sentimentos e valores morais e religiosos. Que o teatro se torne uma experiência de vida.
O espetáculo da igreja Santa Ifigênia [em Santa Cecília, região central de SP] é exemplar nesse sentido. Histórias do teatro nos ensinam que o espetáculo teatral nasceu de rituais religiosos. Pouco a pouco, os participantes dos rituais foram afastados e substituídos por representantes. O bode expiatório, que os fiéis malhavam com o sangue espirrando, foi colocado numa passarela. Os sacerdotes batiam no bode, o ritual tornava-se mais limpo e os fiéis viravam espectadores. Ao encenar "O Paraíso Perdido" numa igreja, com os espectadores dispersos pelo espaço da atuação e não mantidos diante dele a uma distância respeitosa, o Teatro da Vertigem volta aos primórdios.
A revolta de fundamentalistas católicos contra a encenação no templo remete a um fundo questionamento das origens do teatro e ao trabalho de higienização que distanciou rituais religiosos de práticas teatrais. A encenação na igreja questionava uma religião confortável e rotineira (o que em princípio uma religião não deveria ser). Essa situação nos coloca diante de uma questão iniludível: em nossa sociedade ocidental, entre a ausência de religiosidade e a rotina religiosa, há espaço para o sagrado? (Já tínhamos passado por isso com a interdição do filme "Je vous Salue Marie", de Jean-Luc Godard.) O Teatro da Vertigem faz esse questionamento sobre o sagrado entre nós de forma infinitamente mais incisiva do que qualquer sagrado turístico.
"O Paraíso Perdido" é a primeira parte do que se denominou a "Trilogia Bíblica". Sim, os espetáculos se inspiram em temas e textos bíblicos. Mas o que predomina na "Trilogia" é o tema da ausência. A ausência, a perda de Deus, o seu absurdo silêncio e o intenso desejo de reencontrá-lo, de se juntar a ele, é o que marca os três espetáculos. O Teatro da Vertigem não se dirige a pessoas religiosas nem aos ateus. Mas a todos. Os fiéis poderão, com ele, viver experiências que questionem e reavivem sua fé. Os ateus (é meu caso) poderão, pelo viés da experiência poética, vivenciar intuições religiosas.
Uma crítica russa, Vidas Siliunas, evoca a "amargura das perdas" a respeito de "O Livro de Jó". Sugestão que merece reflexão, pois ela remete a um universo imaginário mais amplo que o estritamente religioso. Sim, tanto este espetáculo como "O Paraíso Perdido" permitem ao espectador elaborar a dor de suas perdas.



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