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O silêncio
Nesse sentido, o espetáculo
atinge o espectador mais profundamente quando ele é menos específico em seus temas. "O Livro
de Jó", ao não especificar o tema
da Aids, ao ter-se limitado a uma
discreta e breve referência pontual (algum material do hospital
Emilio Ribas mencionado no comentário de Sábato Magaldi) e ao
ter trabalhado sobre a ausência de
Deus, as chagas, o sangue, o ambiente hospitalar, permitiu uma
ampla circulação pelo imaginário
das perdas, seus sentimentos,
suas dores, suas restrições. Já especificações mais precisas, como
no "Apocalipse 1, 11" a referência,
entre outras, à "República Federativa do Brasil" feita pelo personagem Talidomida do Brasil, tem
um efeito sem dúvida mais panfletário, mas restringe o imaginário e o trabalho emocional e afetivo do espectador.
Os ensaístas a que me referia
acima parecem manifestar sua
preferência pelos dois primeiros
espetáculos.
"O Paraíso Perdido" (dramaturgia a cargo de Sérgio de Carvalho) é menos dramático e mais
encantatório. Marcelo Coelho critica sua dramaturgia fraca e "carente de inspiração", enquanto
Sábato Magaldi destaca que nele
predomina a linguagem gestual.
Acrescenta-se que a acústica não
deixava ao espectador um acesso
fácil ao texto, e o trabalho de voz
foi mais elaborado no espetáculo
seguinte.
O Deus oculto
Quanto a este, "O Livro de Jó"
(dramaturgia de Luis Alberto de
Abreu), parece haver alguma concordância, em considerá-lo, no
tocante à dramaturgia, o ápice da
"Trilogia". O texto solidamente
construído coloca um personagem amante a Deus, humilhado,
despojado de tudo e coberto de
chagas, numa situação em que ele
implora alguma explicação pela
sua infelicidade, alguma manifestação de Deus, algum indício de
compreensão. E Deus se mantém
escondido num silêncio impenetrável e incompreensível.
O personagem é levado a uma
situação-limite de um radicalismo talvez nunca visto no teatro
brasileiro. Incessantemente ele
pergunta, nenhuma resposta. "Se
Deus não há, -a quem clamar?":
sem resposta. Mariangela Alves
de Lima escreve: "O teatro, essencialmente, vive nesse intervalo entre a pergunta e a resposta".
Seguindo essa conceituação do
teatro, se a resposta não vier, a
pergunta passa a girar em falso, o
intervalo se dilata insuportavelmente, o que pode levar não só o
personagem como o espectador a
um estado de sufoco (crises de
choros e desmaios ocorreram
mais de uma vez durante ou após
apresentações de "O Livro de
Jó"). E Jó afirma: "Não vou morrer antes de Sua resposta, Senhor!". Não há compromisso
possível, não há panos quentes.
Levada a esse extremo, a experiência teatral torna-se questão de
vida ou morte. E Deus acabará se
manifestando diante de um Jó
agônico, de modo tão arbitrário e
incompreensível como fora seu
silêncio.
Essa incompreensibilidade radical, conseguimos vivenciá-la
por meio do personagem e da notável interpretação de Matheus
Nachtergaele. Há outro personagem que serve de contraponto a
Jó, é a Matriarca. É ela que diz:
"Não respondo a quem não ouve,
-Não suplico a quem não há". A
Matriarca coloca o personagem
de Jó em perspectiva, contribuindo para lhe dar mais estofo. E ela é
também uma mediação para o espectador alcançar a experiência
de Jó.
As coisas organizam-se diferentemente em "Apocalipse 1, 11"
(dramaturgia a cargo de Fernando Bonassi) quanto à estrutura
dramática e à do personagem. Vários ensaístas fazem discretas restrições a essa estrutura. Por exemplo, Aimar Labaki fala de "uma
experiência cênica que não encontra uma síntese". Esse é um
dos pontos mais interessantes levantados pelo conjunto de textos
reunidos no livro.
João está em busca da Nova Jerusalém, a cidade santa onde não
haverá morte, dor nem luto. Mas
ele só encontrará a degradação de
Babilônia. Encontrará ou, mais
exatamente, assistirá, pois o Anjo
Poderoso lhe diz: "Eu quero que
você testemunhe umas coisas... É
bom que você fique atento... Ele, a
testemunha fiel...".
Vários críticos apontam com
razão para essa construção do
personagem: um anjo "concede a
ele a graça de ver e testemunhar...
João se transforma numa figura
muda, sempre presente e que,
aparentemente, apenas vê" (no
excelente comentário de Macksen
Luiz).
Ou: "João é convocado para registrar as visões", na expressão de
Mariangela Alves de Lima. No final do espetáculo, após ter assistido às visões da degradação babilônica, João se encontra com Jesus, do qual se distancia: "Eu gosto muito de você, mas... tá muito...
tá muito difícil...". Ao distanciar-se de Cristo, João encontra a superação: ele que no início afirmava:
"Eu tenho tanto medo", no final
sai de cena dizendo: "Eu não tenho mais medo! .... As coisas antigas todas vão indo embora...".
Da esperança à desilusão
Entre o início e o final do espetáculo, João se mantém (ou é mantido) como espectador, de forma
que não acompanhamos a trajetória que ele percorre da busca esperançosa à desilusão e, finalmente, à superação, a qual, certamente por esse motivo, tem pouca força dramática. Assim, após
ter anunciado que não tinha mais
medo, João sai pela porta do presídio em direção à rua, um pouco
como acontecia no final de filmes
dos anos 60, quando personagens
pegavam a estrada na esperança
de encontrar um futuro melhor.
Diferentemente do que acontecia em "O Livro de Jó" e porque o
personagem se mantém ausente
durante grande parte do espetáculo, os espectadores assistem diretamente, e não pela mediação
do personagem de João, à degradação babilônica. Com o afastamento do personagem, os espectadores não têm como elaborar
devidamente a experiência de
João. Não resta dúvida de que eles
ficam submetidos a poderosos estímulos que não os deixam indiferentes, nem psicológica nem fisicamente, estímulos tão violentos, aliás, que podem provocar insônia ou pesadelos, como ocorreu com algumas pessoas. Mas
resulta uma experiência poética e
religiosa menos elaborada do que
a de "O Livro de Jó".
Quando assisti ao "Apocalipse
1, 11", as circunstâncias do trânsito pelo espaço fizeram com que
em duas ocasiões, por tempo bastante longo, eu tenha ficado ao lado do ator que interpretava João.
João testemunhava a degradação
e a violência, sentado, olhando à
margem da representação. Lágrimas deslizavam sobre suas faces.
Essa foi a maior dor que senti durante todo o espetáculo. Aí estava
o núcleo do espetáculo, um núcleo mantido quase em segredo.
Jean-Claude Bernardet é escritor, roteirista e crítico de cinema, autor de, entre outros livros, "O Vôo dos Anjos" (ed. Brasiliense).
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