São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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O silêncio

Nesse sentido, o espetáculo atinge o espectador mais profundamente quando ele é menos específico em seus temas. "O Livro de Jó", ao não especificar o tema da Aids, ao ter-se limitado a uma discreta e breve referência pontual (algum material do hospital Emilio Ribas mencionado no comentário de Sábato Magaldi) e ao ter trabalhado sobre a ausência de Deus, as chagas, o sangue, o ambiente hospitalar, permitiu uma ampla circulação pelo imaginário das perdas, seus sentimentos, suas dores, suas restrições. Já especificações mais precisas, como no "Apocalipse 1, 11" a referência, entre outras, à "República Federativa do Brasil" feita pelo personagem Talidomida do Brasil, tem um efeito sem dúvida mais panfletário, mas restringe o imaginário e o trabalho emocional e afetivo do espectador.
Os ensaístas a que me referia acima parecem manifestar sua preferência pelos dois primeiros espetáculos.
"O Paraíso Perdido" (dramaturgia a cargo de Sérgio de Carvalho) é menos dramático e mais encantatório. Marcelo Coelho critica sua dramaturgia fraca e "carente de inspiração", enquanto Sábato Magaldi destaca que nele predomina a linguagem gestual. Acrescenta-se que a acústica não deixava ao espectador um acesso fácil ao texto, e o trabalho de voz foi mais elaborado no espetáculo seguinte.

O Deus oculto
Quanto a este, "O Livro de Jó" (dramaturgia de Luis Alberto de Abreu), parece haver alguma concordância, em considerá-lo, no tocante à dramaturgia, o ápice da "Trilogia". O texto solidamente construído coloca um personagem amante a Deus, humilhado, despojado de tudo e coberto de chagas, numa situação em que ele implora alguma explicação pela sua infelicidade, alguma manifestação de Deus, algum indício de compreensão. E Deus se mantém escondido num silêncio impenetrável e incompreensível.
O personagem é levado a uma situação-limite de um radicalismo talvez nunca visto no teatro brasileiro. Incessantemente ele pergunta, nenhuma resposta. "Se Deus não há, -a quem clamar?": sem resposta. Mariangela Alves de Lima escreve: "O teatro, essencialmente, vive nesse intervalo entre a pergunta e a resposta".
Seguindo essa conceituação do teatro, se a resposta não vier, a pergunta passa a girar em falso, o intervalo se dilata insuportavelmente, o que pode levar não só o personagem como o espectador a um estado de sufoco (crises de choros e desmaios ocorreram mais de uma vez durante ou após apresentações de "O Livro de Jó"). E Jó afirma: "Não vou morrer antes de Sua resposta, Senhor!". Não há compromisso possível, não há panos quentes. Levada a esse extremo, a experiência teatral torna-se questão de vida ou morte. E Deus acabará se manifestando diante de um Jó agônico, de modo tão arbitrário e incompreensível como fora seu silêncio.
Essa incompreensibilidade radical, conseguimos vivenciá-la por meio do personagem e da notável interpretação de Matheus Nachtergaele. Há outro personagem que serve de contraponto a Jó, é a Matriarca. É ela que diz: "Não respondo a quem não ouve, -Não suplico a quem não há". A Matriarca coloca o personagem de Jó em perspectiva, contribuindo para lhe dar mais estofo. E ela é também uma mediação para o espectador alcançar a experiência de Jó.
As coisas organizam-se diferentemente em "Apocalipse 1, 11" (dramaturgia a cargo de Fernando Bonassi) quanto à estrutura dramática e à do personagem. Vários ensaístas fazem discretas restrições a essa estrutura. Por exemplo, Aimar Labaki fala de "uma experiência cênica que não encontra uma síntese". Esse é um dos pontos mais interessantes levantados pelo conjunto de textos reunidos no livro.
João está em busca da Nova Jerusalém, a cidade santa onde não haverá morte, dor nem luto. Mas ele só encontrará a degradação de Babilônia. Encontrará ou, mais exatamente, assistirá, pois o Anjo Poderoso lhe diz: "Eu quero que você testemunhe umas coisas... É bom que você fique atento... Ele, a testemunha fiel...".
Vários críticos apontam com razão para essa construção do personagem: um anjo "concede a ele a graça de ver e testemunhar... João se transforma numa figura muda, sempre presente e que, aparentemente, apenas vê" (no excelente comentário de Macksen Luiz).
Ou: "João é convocado para registrar as visões", na expressão de Mariangela Alves de Lima. No final do espetáculo, após ter assistido às visões da degradação babilônica, João se encontra com Jesus, do qual se distancia: "Eu gosto muito de você, mas... tá muito... tá muito difícil...". Ao distanciar-se de Cristo, João encontra a superação: ele que no início afirmava: "Eu tenho tanto medo", no final sai de cena dizendo: "Eu não tenho mais medo! .... As coisas antigas todas vão indo embora...".

Da esperança à desilusão
Entre o início e o final do espetáculo, João se mantém (ou é mantido) como espectador, de forma que não acompanhamos a trajetória que ele percorre da busca esperançosa à desilusão e, finalmente, à superação, a qual, certamente por esse motivo, tem pouca força dramática. Assim, após ter anunciado que não tinha mais medo, João sai pela porta do presídio em direção à rua, um pouco como acontecia no final de filmes dos anos 60, quando personagens pegavam a estrada na esperança de encontrar um futuro melhor.
Diferentemente do que acontecia em "O Livro de Jó" e porque o personagem se mantém ausente durante grande parte do espetáculo, os espectadores assistem diretamente, e não pela mediação do personagem de João, à degradação babilônica. Com o afastamento do personagem, os espectadores não têm como elaborar devidamente a experiência de João. Não resta dúvida de que eles ficam submetidos a poderosos estímulos que não os deixam indiferentes, nem psicológica nem fisicamente, estímulos tão violentos, aliás, que podem provocar insônia ou pesadelos, como ocorreu com algumas pessoas. Mas resulta uma experiência poética e religiosa menos elaborada do que a de "O Livro de Jó".
Quando assisti ao "Apocalipse 1, 11", as circunstâncias do trânsito pelo espaço fizeram com que em duas ocasiões, por tempo bastante longo, eu tenha ficado ao lado do ator que interpretava João. João testemunhava a degradação e a violência, sentado, olhando à margem da representação. Lágrimas deslizavam sobre suas faces. Essa foi a maior dor que senti durante todo o espetáculo. Aí estava o núcleo do espetáculo, um núcleo mantido quase em segredo.


Jean-Claude Bernardet é escritor, roteirista e crítico de cinema, autor de, entre outros livros, "O Vôo dos Anjos" (ed. Brasiliense).

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