São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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Constância dos selvagens não estava onde os missionários a procuravam

Vingança e canibalismo

A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia
Eduardo Viveiros de Castro
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
552 págs., R$ 45,00

JULIO CEZAR MELATTI

O volume recentemente lançado por Eduardo Viveiros de Castro não é a simples reunião de alguns de seus artigos já publicados. Mais que coletânea, pode-se considerá-lo um livro, pois muitos dos textos nele incluídos foram não somente selecionados por seu autor conforme as principais teses que atualmente sustenta como também modificados, acrescidos e até fundidos de modo a lhes dar mais destaque. Com exceção do primeiro capítulo, que resulta da combinação de três artigos publicados no final dos anos 70, e do nono, até aqui inédito, os outros são textos divulgados a partir de 1992.
Viveiros de Castro, no "Prólogo", dá a referência original de cada um e indica como e quanto o modificou em sua reelaboração. Da década de 80 nada incluiu, talvez porque boa parte do que fez nesse período está representada por seu livro "Araweté - Os Deuses Canibais" (Zahar, 1986), sua tese de doutorado, resultante de pesquisa de campo no médio Xingu.
O título de capa é do terceiro capítulo, que toma por mote o trecho de um sermão em que Antônio Vieira contrasta as estátuas de murta, facilmente recortadas, mas que rapidamente se desfazem com o crescimento da planta, com as estátuas de mármore, entalhadas em material resistente, porém duráveis. Às primeiras faz corresponder a disposição dos índios para com as crenças e práticas cristãs, tão ligeiros em aceitá-las quanto em abandoná-las. Às segundas, a daqueles povos por muito tempo avessos à pregação, mas que, uma vez convertidos, se mantêm firmes na nova fé.
O que Eduardo Viveiros de Castro mostra nesse ensaio é que a constância da alma selvagem não estava onde Vieira e os missionários dos séculos 16 e 17 procuravam, mas sim no imperativo da vingança, cultivado desde os ritos de nascimento, que os movia à guerra contra os inimigos, proporcionando-lhes prisioneiros a serem abatidos na praça da aldeia, com aquisição de nomes e renome, ou, em caso de derrota, colocando-os nas mãos de seus contrários, os únicos capazes de lhes dar a mais digna das mortes e o mais adequado dos ritos funerários, a antropofagia.

Imortalidade feminina
No exame das reações dos indígenas litorâneos às imposições com que o colonizador ia dando fim ao seu mundo, Viveiros de Castro põe em evidência que para eles era mais fácil abandonar o canibalismo do que a vingança. Menos prioritária, a antropofagia era entretanto um meio de fazer um maior número de pessoas, tanto da aldeia anfitriã quanto das convidadas, a participarem da vingança e se assumirem também como possíveis alvos do ódio dos inimigos. Mas talvez fosse ainda mais que isso, pois Viveiros de Castro nela vislumbra alguma relação com a possibilidade de as mulheres alcançarem a imortalidade, apenas garantida aos matadores. Sugere também a necessidade de uma atenção maior à bebida fermentada, menos focalizada pelos cronistas, produto feminino indispensável no rito antropofágico.
Enfim, a principal característica da cultura dos tupis litorâneos seria a necessidade do outro para se realizarem plenamente, fosse pela guerra aos inimigos nativos, fosse pelas novas relações com os conquistadores europeus. Viveiros de Castro sabe muito bem lidar com essa orientação para o exterior, pois a encontrou pessoalmente nos arawetés, índios tupis como os antigos habitantes do litoral, mas que transferiram o canibalismo e o inimigo por excelência para a camada celeste. Além de darem ensejo à reformulação de algumas das interpretações de Florestan Fernandes em sua memorável pesquisa sobre os antigos tupis litorâneos, ou tupinambás no sentido amplo, os arawetés conduziram Viveiros de Castro para a identificação do matador com a vítima (quarto capítulo), a tomar o inimigo como o devir e associar o exterior à afinidade.
Ao examinar a etnografia disponível dos demais povos indígenas da Amazônia, tanto os falantes de línguas do tronco tupi quanto os de outras, que são a maioria, Viveiros de Castro se deu conta de que também eles, por trás das diferentes maneiras de dispor os termos de parentesco e da presença ou não de grupos de afiliação por linha paterna ou materna, têm algo em comum com os arawetés no modo de viverem e pensarem a afinidade. Ajuda-nos a compreender sua argumentação a distinção que faz entre três aspectos da afinidade: o efetivo, o virtual e o potencial.
A afinidade efetiva, a de percepção mais imediata para nós ocidentais, seria constituída pelas relações entre pessoas ligadas por um casamento em vigor: marido, sogra, nora, cunhado etc. A virtual, pelas relações entre os primos cruzados (cujos pais são irmãos de sexos opostos) ou, ampliando-se mais o conceito, parentes cruzados (de modo a incluir também aqueles de diferentes gerações conectados por um terceiro de sexo oposto ao da ascendente), entre os quais se espera que se façam os casamentos. A distinção entre os cruzados e os demais, os paralelos, pode ser estendida a todo o campo social considerado mediante um certo cálculo genealógico.

Consanguíneos
Finalmente, a afinidade potencial, de teor mais simbólico, caracterizaria as relações com os inimigos, os habitantes de outras camadas do cosmos, os animais, os parceiros comerciais extratribais, os amigos formais, com os quais o casamento de fato nunca acontece.
Ora, nas sociedades amazônicas, o casamento se faz com aqueles que residem muito próximo e os afins efetivos que dele resultam tendem a ser assimilados aos consanguíneos. Apesar disso, os termos de parentesco se aplicam a todos os seus membros, distribuindo-os em dois conjuntos opostos, os consanguíneos e os afins (dualidade sociológica correspondente à distinção genealógica entre paralelos e cruzados), uma característica dos sistemas chamados dravidianos, porque estudados primeiramente na Índia meridional.
Diante dessa situação à primeira vista contraditória, Viveiros de Castro recorre ao conceito de oposição hierárquica, que Louis Dumont propusera no estudo das castas indianas, mas não considerara ao abordar o sistema dravidiano. E assim fazendo, mostra que, se no âmbito do grupo local, a afinidade (efetiva) é englobada pela consanguinidade, nos contextos genéricos é a afinidade (potencial) que engloba a consanguinidade. Ou, usando uma conceituação linguística, a primeira seria a categoria ou qualidade relacional não-marcada. A afinidade seria o estado fundamental do campo relacional, e a consanguinidade, apenas não-afinidade. A primeira seria o dado, a segunda, o construído.
Provavelmente foi o estudo do parentesco amazônico, sobretudo as reflexões sobre o primado da afinidade, especialmente a potencial, que conduziu Viveiros de Castro à reflexão sobre o perspectivismo. Essa é a denominação que ele aplica à admissão, pelos povos indígenas, de que cada classe dos seres que povoam o universo, principalmente cada espécie animal, sobretudo dentre aquelas mais notáveis como predadoras ou suas presas, se considera, mas não as demais, como os seres humanos. Assim como para nós, ocidentais, os seres humanos distinguiram-se dos animais sem deixar de sê-lo e com eles continuam a partilhar todo um fundo biogenético, para os indígenas houve um estado primordial, nos tempos míticos, em que todos os seres eram humanos, podendo transitar por diferentes formas que finalmente se fixaram.

Perspectivismo e animismo
Mas todas as espécies continuam a manter um caráter humano. São humanos os seres que se põem no ponto de vista do sujeito. O perspectivismo, que complementa e ultrapassa o animismo na sua moderna acepção, corresponderia a uma postura multinaturalista, em contraste com o multiculturalismo daqueles ocidentais que se conduzem pelo relativismo cultural. O dar-se conta do perspectivismo indígena permite a Viveiros de Castro reconsiderar a atividade do xamã, o único capaz de comunicar-se com animais e espíritos tal como qualquer homem podia fazê-lo nos tempos míticos.
Ou ainda tomar o corpo como aquilo que distingue os animais entre si e dos homens. Seus diferentes corpos esconderiam algo que têm em comum com os homens. Daí os indígenas se vestirem com máscaras, adereços e pinturas, e não se despirem, para se identificarem com um animal. Também sua conversão religiosa (ou cultural) estaria menos atenta à doutrina que aos gestos e cuidados corporais.
Xamã e corpo sugerem ao leitor prestar atenção a dois outros capítulos. Num deles, o xamanismo é chamado a ocupar, como sacrifício, o lugar que Florestan Fernandes havia concedido ao rito tupinambá de execução do prisioneiro.
No outro, referente à cosmologia dos yawalapítis, povo alto-xinguano que serviu de tema a sua dissertação de mestrado, Viveiros de Castro trabalha, entre outras questões, com a construção do corpo, trazendo uma importante contribuição a um tema que começara a ser levantado pelos estudiosos dos jês do Brasil central, tanto que o famoso artigo "A Construção da Pessoa na Sociedade Indígena Brasileira", de 1979 ("Boletim do Museu Nacional"), que propunha um novo enfoque menos inspirado nas etnografias e interpretações dos africanistas, Viveiros de Castro o assina com Roberto DaMatta e Anthony Seeger, etnólogos de dois povos jês, os apinayés e os suyás, respectivamente.
Se, para a pesquisa dos yawalapítis, Viveiros de Castro levou questões levantadas entre os jês, com os arawetés vai encontrar um modo de vida ainda mais contrastável com os destes, principalmente a idéia do outro como devir.
Os arawetés vão levá-lo a dialogar com outros pesquisadores dos tupis, principalmente Florestan Fernandes, mas vão conduzi-lo também a uma discussão com as outras etnografias amazônicas, no que tange ao parentesco e à afinidade. Esse interesse geral pela Amazônia é o que explica a presença no seu volume de um artigo em que faz uma avaliação dos modernos estudos da região, não somente relativos à organização social, mas também à arqueologia, ecologia e história indígena. Finalmente, seu interesse pelo perspectivismo amplia ainda mais seu horizonte geográfico e já não se refere apenas aos indígenas amazônicos, mas aos ameríndios.
Em suma, o volume, que termina com uma entrevista, é como que uma antologia comentada das etnografias e das contribuições teóricas de Viveiros de Castro. Por isso, parece um tanto deslocado o verbete sobre o conceito de sociedade que escreveu para a "Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology", organizada por A. Barnard e J. Spencer, demasiado geral para se vislumbrar qualquer relação imediata com as principais questões trabalhadas por ele ao longo de sua carreira.
Dono de um estilo vivo e de uma redação esmerada, sente-se nos textos de Viveiros de Castro o cuidado em escolher as palavras e as frases certas em tudo aquilo que quer expressar. Se é um crítico que nada deixa passar, sabe reconhecer e admirar os grandes autores em que se inspira, as contribuições dos etnólogos que têm recentemente estudado os povos indígenas da Amazônia e os colegas, seus ex-alunos, com quem mantém assíduo diálogo.


Julio Cezar Melatti é professor de antropologia na Universidade de Brasília.

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