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Constância dos selvagens não estava onde os missionários a procuravam
Vingança e canibalismo
A Inconstância da Alma
Selvagem e Outros Ensaios
de Antropologia
Eduardo Viveiros de Castro
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
552 págs., R$ 45,00
JULIO CEZAR MELATTI
O volume recentemente lançado por
Eduardo Viveiros de Castro não é a simples reunião de alguns de seus artigos já
publicados. Mais que coletânea, pode-se
considerá-lo um livro, pois muitos dos
textos nele incluídos foram não somente
selecionados por seu autor conforme as
principais teses que atualmente sustenta
como também modificados, acrescidos e
até fundidos de modo a lhes dar mais destaque. Com exceção do primeiro capítulo, que resulta da combinação de três artigos publicados no final dos anos 70, e do
nono, até aqui inédito, os outros são textos divulgados a partir de 1992.
Viveiros de Castro, no "Prólogo", dá a
referência original de cada um e indica
como e quanto o modificou em sua reelaboração. Da década de 80 nada incluiu,
talvez porque boa parte do que fez nesse
período está representada por seu livro
"Araweté - Os Deuses Canibais" (Zahar,
1986), sua tese de doutorado, resultante
de pesquisa de campo no médio Xingu.
O título de capa é do terceiro capítulo,
que toma por mote o trecho de um sermão em que Antônio Vieira contrasta as
estátuas de murta, facilmente recortadas,
mas que rapidamente se desfazem com o
crescimento da planta, com as estátuas de
mármore, entalhadas em material resistente, porém duráveis. Às primeiras faz
corresponder a disposição dos índios para com as crenças e práticas cristãs, tão ligeiros em aceitá-las quanto em abandoná-las. Às segundas, a daqueles povos por
muito tempo avessos à pregação, mas
que, uma vez convertidos, se mantêm firmes na nova fé.
O que Eduardo Viveiros de Castro
mostra nesse ensaio é que a constância da
alma selvagem não estava onde Vieira e
os missionários dos séculos 16 e 17 procuravam, mas sim no imperativo da vingança, cultivado desde os ritos de nascimento, que os movia à guerra contra os
inimigos, proporcionando-lhes prisioneiros a serem abatidos na praça da aldeia, com aquisição de nomes e renome,
ou, em caso de derrota, colocando-os nas
mãos de seus contrários, os únicos capazes de lhes dar a mais digna das mortes e
o mais adequado dos ritos funerários, a
antropofagia.
Imortalidade feminina
No exame das reações dos indígenas litorâneos às imposições com que o colonizador ia dando fim ao seu mundo, Viveiros de Castro põe em evidência que
para eles era mais fácil abandonar o canibalismo do que a vingança. Menos prioritária, a antropofagia era entretanto um
meio de fazer um maior número de pessoas, tanto da aldeia anfitriã quanto das
convidadas, a participarem da vingança e
se assumirem também como possíveis alvos do ódio dos inimigos. Mas talvez fosse ainda mais que isso, pois Viveiros de
Castro nela vislumbra alguma relação
com a possibilidade de as mulheres alcançarem a imortalidade, apenas garantida aos matadores. Sugere também a necessidade de uma atenção maior à bebida
fermentada, menos focalizada pelos cronistas, produto feminino indispensável
no rito antropofágico.
Enfim, a principal característica da cultura dos tupis litorâneos seria a necessidade do outro para se realizarem plenamente, fosse pela guerra aos inimigos nativos, fosse pelas novas relações com os
conquistadores europeus. Viveiros de
Castro sabe muito bem lidar com essa
orientação para o exterior, pois a encontrou pessoalmente nos arawetés, índios
tupis como os antigos habitantes do litoral, mas que transferiram o canibalismo e
o inimigo por excelência para a camada
celeste. Além de darem ensejo à reformulação de algumas das interpretações de
Florestan Fernandes em sua memorável
pesquisa sobre os antigos tupis litorâneos, ou tupinambás no sentido amplo,
os arawetés conduziram Viveiros de Castro para a identificação do matador com
a vítima (quarto capítulo), a tomar o inimigo como o devir e associar o exterior à
afinidade.
Ao examinar a etnografia disponível
dos demais povos indígenas da Amazônia, tanto os falantes de línguas do tronco
tupi quanto os de outras, que são a maioria, Viveiros de Castro se deu conta de
que também eles, por trás das diferentes
maneiras de dispor os termos de parentesco e da presença ou não de grupos de
afiliação por linha paterna ou materna,
têm algo em comum com os arawetés no
modo de viverem e pensarem a afinidade. Ajuda-nos a compreender sua argumentação a distinção que faz entre três
aspectos da afinidade: o efetivo, o virtual
e o potencial.
A afinidade efetiva, a de percepção mais
imediata para nós ocidentais, seria constituída pelas relações entre pessoas ligadas por um casamento em vigor: marido,
sogra, nora, cunhado etc. A virtual, pelas
relações entre os primos cruzados (cujos
pais são irmãos de sexos opostos) ou,
ampliando-se mais o conceito, parentes
cruzados (de modo a incluir também
aqueles de diferentes gerações conectados por um terceiro de sexo oposto ao da
ascendente), entre os quais se espera que
se façam os casamentos. A distinção entre os cruzados e os demais, os paralelos,
pode ser estendida a todo o campo social
considerado mediante um certo cálculo
genealógico.
Consanguíneos
Finalmente, a afinidade potencial, de
teor mais simbólico, caracterizaria as relações com os inimigos, os habitantes de
outras camadas do cosmos, os animais,
os parceiros comerciais extratribais, os
amigos formais, com os quais o casamento de fato nunca acontece.
Ora, nas sociedades amazônicas, o casamento se faz com aqueles que residem
muito próximo e os afins efetivos que dele resultam tendem a ser assimilados aos
consanguíneos. Apesar disso, os termos
de parentesco se aplicam a todos os seus
membros, distribuindo-os em dois conjuntos opostos, os consanguíneos e os
afins (dualidade sociológica correspondente à distinção genealógica entre paralelos e cruzados), uma característica dos
sistemas chamados dravidianos, porque
estudados primeiramente na Índia meridional.
Diante dessa situação à primeira vista
contraditória, Viveiros de Castro recorre
ao conceito de oposição hierárquica, que
Louis Dumont propusera no estudo das
castas indianas, mas não considerara ao
abordar o sistema dravidiano. E assim fazendo, mostra que, se no âmbito do grupo local, a afinidade (efetiva) é englobada
pela consanguinidade, nos contextos genéricos é a afinidade (potencial) que engloba a consanguinidade. Ou, usando
uma conceituação linguística, a primeira
seria a categoria ou qualidade relacional
não-marcada. A afinidade seria o estado
fundamental do campo relacional, e a
consanguinidade, apenas não-afinidade.
A primeira seria o dado, a segunda, o
construído.
Provavelmente foi o estudo do parentesco amazônico, sobretudo as reflexões
sobre o primado da afinidade, especialmente a potencial, que conduziu Viveiros
de Castro à reflexão sobre o perspectivismo. Essa é a denominação que ele aplica à
admissão, pelos povos indígenas, de que
cada classe dos seres que povoam o universo, principalmente cada espécie animal, sobretudo dentre aquelas mais notáveis como predadoras ou suas presas, se
considera, mas não as demais, como os
seres humanos. Assim como para nós,
ocidentais, os seres humanos distinguiram-se dos animais sem deixar de sê-lo e
com eles continuam a partilhar todo um
fundo biogenético, para os indígenas
houve um estado primordial, nos tempos
míticos, em que todos os seres eram humanos, podendo transitar por diferentes
formas que finalmente se fixaram.
Perspectivismo e animismo
Mas todas as espécies continuam a
manter um caráter humano. São humanos os seres que se põem no ponto de vista do sujeito. O perspectivismo, que complementa e ultrapassa o animismo na sua
moderna acepção, corresponderia a uma
postura multinaturalista, em contraste
com o multiculturalismo daqueles ocidentais que se conduzem pelo relativismo cultural. O dar-se conta do perspectivismo indígena permite a Viveiros de
Castro reconsiderar a atividade do xamã,
o único capaz de comunicar-se com animais e espíritos tal como qualquer homem podia fazê-lo nos tempos míticos.
Ou ainda tomar o corpo como aquilo
que distingue os animais entre si e dos
homens. Seus diferentes corpos esconderiam algo que têm em comum com os homens. Daí os indígenas se vestirem com
máscaras, adereços e pinturas, e não se
despirem, para se identificarem com um
animal. Também sua conversão religiosa
(ou cultural) estaria menos atenta à doutrina que aos gestos e cuidados corporais.
Xamã e corpo sugerem ao leitor prestar
atenção a dois outros capítulos. Num deles, o xamanismo é chamado a ocupar,
como sacrifício, o lugar que Florestan
Fernandes havia concedido ao rito tupinambá de execução do prisioneiro.
No outro, referente à cosmologia dos
yawalapítis, povo alto-xinguano que serviu de tema a sua dissertação de mestrado, Viveiros de Castro trabalha, entre outras questões, com a construção do corpo, trazendo uma importante contribuição a um tema que começara a ser levantado pelos estudiosos dos jês do Brasil
central, tanto que o famoso artigo "A
Construção da Pessoa na Sociedade Indígena Brasileira", de 1979 ("Boletim do
Museu Nacional"), que propunha um
novo enfoque menos inspirado nas etnografias e interpretações dos africanistas,
Viveiros de Castro o assina com Roberto
DaMatta e Anthony Seeger, etnólogos de
dois povos jês, os apinayés e os suyás, respectivamente.
Se, para a pesquisa dos yawalapítis, Viveiros de Castro levou questões levantadas entre os jês, com os arawetés vai encontrar um modo de vida ainda mais
contrastável com os destes, principalmente a idéia do outro como devir.
Os arawetés vão levá-lo a dialogar com
outros pesquisadores dos tupis, principalmente Florestan Fernandes, mas vão
conduzi-lo também a uma discussão
com as outras etnografias amazônicas,
no que tange ao parentesco e à afinidade.
Esse interesse geral pela Amazônia é o
que explica a presença no seu volume de
um artigo em que faz uma avaliação dos
modernos estudos da região, não somente relativos à organização social, mas
também à arqueologia, ecologia e história indígena. Finalmente, seu interesse
pelo perspectivismo amplia ainda mais
seu horizonte geográfico e já não se refere
apenas aos indígenas amazônicos, mas
aos ameríndios.
Em suma, o volume, que termina com
uma entrevista, é como que uma antologia comentada das etnografias e das contribuições teóricas de Viveiros de Castro.
Por isso, parece um tanto deslocado o
verbete sobre o conceito de sociedade
que escreveu para a "Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology", organizada por A. Barnard e J. Spencer, demasiado geral para se vislumbrar qualquer
relação imediata com as principais questões trabalhadas por ele ao longo de sua
carreira.
Dono de um estilo vivo e de uma redação esmerada, sente-se nos textos de Viveiros de Castro o cuidado em escolher as
palavras e as frases certas em tudo aquilo
que quer expressar. Se é um crítico que
nada deixa passar, sabe reconhecer e admirar os grandes autores em que se inspira, as contribuições dos etnólogos que
têm recentemente estudado os povos indígenas da Amazônia e os colegas, seus
ex-alunos, com quem mantém assíduo
diálogo.
Julio Cezar Melatti é professor de antropologia
na Universidade de Brasília.
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