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Historiador descreve festa sangrenta do século 16
Carnaval de tamancos
O Carnaval de Romans
Emmanuel le Roy Ladurie
Tradução: Maria Lúcia Machado
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3167-0801)
544 págs., R$ 45,00
MARY DEL PRIORE
Nos últimos anos, inúmeros estudiosos
vêm se debruçando sobre o tema da festa.
Perguntam-se: seria a festa um momento
privilegiado em que se rompe a ordem
burguesa? Seria remédio contra os males
da rebelião? Todas as acima seriam válidas? Muito se escreveu sobre a questão e,
na busca de uma resposta, mais de duas
décadas nos separam da publicação original do "O Carnaval de Romans". Este
Carnaval precedeu uma outra festa, festa
para o leitor na forma de um dos mais belos livros escritos na década de 1970:
"Montaillou ou Povoado Occitânico"
(Cia. das Letras). O autor, professor do
renomado Collège de France, em Paris, e
antigo administrador-geral da Biblioteca
Nacional, teve um desses raros prazeres
entre historiadores: o de ver uma de suas
obras acadêmicas transformada em best-seller. O historiador, no caso Emmanuel
le Roy Ladurie, viveu uma aventura intelectual bastante ligada aos seus interesses
de pesquisa.
Decepcionado pelo marxismo e iniciado por Fernand Braudel à história social e
econômica, Ladurie buscou, na segunda
metade dos anos 60, o que considerava
"um certo cientificismo" nos métodos e
abordagem da história quantitativa. Com
o fim dos grupos de pesquisa na École des
Hautes Études, ele se lançou numa trajetória individual que irá render "Montaillou", em 1975, e "O Carnaval de Romans", em 1979.
Em ambas as obras, ele operou a passagem lenta, porém inexorável, da história
quantitativa à história política.
Apesar das ligações com a Escola dos
Annalles, dos quais se considera um dos
fundadores e da profunda simpatia pelas
"mentalidades" sobre as quais segue trabalhando, Ladurie se interessa, também,
por fatos. Fatos simbólicos, matriciais ou
materiais, capazes de interferir nas relações entre os homens. Ou entre os homens e a terra. Nos últimos anos, vem se
dedicando a confeccionar capítulos de
coleções sobre a história da França moderna, além de se debruçar sobre estudos
de linhagens, como a da família Platter.
Mas a pergunta diante de um livro escrito há mais de 20 anos, e seguido de tantas outras publicações, é: ele pode ter envelhecido como um bom vinho? Que
Carnaval foi esse? O Carnaval foi um
mascarado pretexto para um dos mais
sangrentos conflitos da segunda metade
do século 16, na região do Delfinado. Para
observá-lo, Ladurie nos faz visitar as planícies e colinas que abraçam o Ródano,
ouvindo ao longe o som dos campanários
que marcavam o cotidiano das cidades
da região. Caminhando do geral para o
particular, ele descreve a conjuntura político-social da cidade de Romans, auscultando sua geografia, demografia, atividades produtivas rurais e urbanas.
Rodeadas de muralhas e em contraste
com a tranquilidade dos campos de trigo,
as comunidades urbanas se dividiam entre a azáfama de comerciar a produção
rural, a produção manufaturada de tecido e o empréstimo de todo o gênero: dinheiro, grãos ou gado. Longe da doçura
de uma pintura de paisagem, Ladurie nos
faz ver que o barulho da colméia acobertava o afiar de facas e espadas. Ao examinar tão cuidadosamente o cenário, ele
acaba por revelar uma "situação revolucionária" que empurrava camponeses
contra nobres, burgueses contra camponeses, pequenos artesãos contra comerciantes ricos, aristocracia cortesã, próxima do poder, e aristocracia rural e, portanto, periférica.
Por meio do problema tributário, desenhavam-se as contradições particulares
dessa época: contraste entre o mundo
camponês de economia familiar, em que
grassavam tendências à pauperização, e o
mundo dos notáveis citadinos, responsáveis por um capitalismo à sua moda, na
base de pilhagem de terras. A injustiça
fiscal tem aí um papel catalisador. A gota
d'água nessa sopa feita de raiva e medo
eclode no dia de são Brás, divindade têxtil, agrária e musical, dia misto de desfile
militar com festa popular.
Turbulências
Para a festa, elege-se um capitão da milícia têxtil. O escolhido é Jean Serve, dito
Paumier, homem de origem camponesa,
que tendo somado fortuna e prestígio entre tecelões, seria capaz de reunir em batalhões todos os da cidade e das cercanias. Segundo uma testemunha, Paumier
não perde tempo em "comandar com indiscrição e bestialidade". Ele invade o
Conselho de Romans, substitui juízes,
oficiais e nobres, por sapateiros e outros
pequenos artesãos, requisita as chaves da
cidade e comanda mil camponeses que
invadem uma audiência municipal pedindo o adiamento da cobrança de impostos e a verificação das contas do orçamento municipal. A essas turbulências
somam-se outras. Pilhagens e incêndios
de castelos anunciam "jacqueries", obrigando Catarina de Médicis, em visita à região, a negociar com líderes populares.
Em Romans, tropas de vagabundos
"paumieristas" achacam e intimidam enquanto exércitos de artesãos e camponeses elegem seus capitães ameaçando com
greve e paralisia das atividades.
No momento em que se acende o carnaval de Romans, inflama-se toda a região. Sob os desfiles e fantasias, escondem-se as verdadeiras intenções de inverter a ordem. Enrolado numa pele de
urso e encarnando uma virilidade selvagem, Paulmier ameaçava as autoridades,
dizendo-lhes que ninguém poderia governá-lo. Danças da morte traziam mensagens: a de espadas anunciava a violência contida enquanto "danças do fim do
trigo" exibiam as pontas agressivas de
malhos e ancinhos. Lutas paródicas entre
líderes de bairros serviam para organizar
as milícias que, mascaradas e ao som de
tambores, matar-se-iam entre si.
O carnaval de Romans é marcado por
choques armados que terminam no assassinato frio e brutal do "urso" Paumier.
Na terça-feira gorda, feitas as contas, tudo voltava a ser como antes. Os ricos e
nobres seguiriam escorchando os pobres.
As tensões entre protestantes e católicos
continuaram a dividir formas de ser e
pensar, azeitando ódios. As forcas se encarregariam de pacificar ânimos, resguardando as "pessoas honradas" e eliminando os últimos "paumieristas". O
silêncio burguês se instalava, lavando o
sangue das fantasias e das ruas.
Essa é a história que grosso modo conduz a narrativa do livro. A tese que, contudo, atravessa "O Carnaval de Romans"
é a de que a emergência do Estado se reforça a partir do Renascimento com o
aprofundamento do fisco e a multiplicação de funcionários e oficiais capazes de
azeitar a máquina.
Contrariamente à sociedade feudal que
funcionaria, no entender de Ladurie, de
maneira autônoma, o absolutismo corresponderia, sobretudo na França, na assunção da sociedade pelo Estado, que lhe
penetra todos os poros, impondo-lhe, rudemente, corvéias, dízimos, talhas e outros impostos vexatórios. Confrontos
sangrentos onde se esmagam camponeses como bagos de uva vêm a ser consequência desse quadro, cuja vitória tem o
sabor azedo dos maus vinhos.
Quanto ao vinho que nos serve Ladurie
neste "Carnaval", ele tem, certamente,
inúmeras qualidades. Encorpado como
um velho Bourgogne, o texto revela as filigranas com que Ladurie exerce seu ofício de historiador. Ele sabe fazer falar as
fontes documentais, operando com lucidez o misto de inteligência e amizade
com que trata a matéria.
Tal operação lhe permite reconstituir
nos detalhes, as conexões que unem a
conjuntura e o fato, suas coerências e
causas. A harmonização entre história e a
antropologia, visível quando descreve
fantasias, músicas e danças, resulta dos
cuidados que toma com conceitos historicamente constituídos, atento aos campos semânticos em que tais conceitos circulam ou são utilizados.
Mas, também, como num velho Bourgogne, o leitor encontrará no seu texto algo de mineral e pedregoso que, apesar da
impecável tradução, o impede de deslizar
na narrativa. Os quadros nos quais pinta
as particularidades de Romans, da sociedade e de suas tensões, são por vezes carregados de minúcias, compreensíveis
apenas para quem conhece bem a história da França moderna. O excesso de detalhes quebra o fio da argumentação.
Constituído por unidades onde passa
do cenário urbano aos personagens, destes às greves, destas à festa e ao massacre,
e deste a uma discussão mais teórica sobre rebeliões, Ladurie termina por esgotar as condições que engendram o fato
político, mas também o interesse do leitor. Poderíamos dizer que, tal como num
velho Bourgogne, as cores da narrativa já
passaram do grená ao laranja, mostrando
que, se o lento envelhecimento do livro
não empana a tese central sobre as relações entre o Estado e a sociedade, ele acaba por dar um gostinho mofado à leitura.
Mary del Priore é professora de história na USP.
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