São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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Historiador descreve festa sangrenta do século 16

Carnaval de tamancos

O Carnaval de Romans
Emmanuel le Roy Ladurie
Tradução: Maria Lúcia Machado
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3167-0801)
544 págs., R$ 45,00

MARY DEL PRIORE

Nos últimos anos, inúmeros estudiosos vêm se debruçando sobre o tema da festa. Perguntam-se: seria a festa um momento privilegiado em que se rompe a ordem burguesa? Seria remédio contra os males da rebelião? Todas as acima seriam válidas? Muito se escreveu sobre a questão e, na busca de uma resposta, mais de duas décadas nos separam da publicação original do "O Carnaval de Romans". Este Carnaval precedeu uma outra festa, festa para o leitor na forma de um dos mais belos livros escritos na década de 1970: "Montaillou ou Povoado Occitânico" (Cia. das Letras). O autor, professor do renomado Collège de France, em Paris, e antigo administrador-geral da Biblioteca Nacional, teve um desses raros prazeres entre historiadores: o de ver uma de suas obras acadêmicas transformada em best-seller. O historiador, no caso Emmanuel le Roy Ladurie, viveu uma aventura intelectual bastante ligada aos seus interesses de pesquisa.
Decepcionado pelo marxismo e iniciado por Fernand Braudel à história social e econômica, Ladurie buscou, na segunda metade dos anos 60, o que considerava "um certo cientificismo" nos métodos e abordagem da história quantitativa. Com o fim dos grupos de pesquisa na École des Hautes Études, ele se lançou numa trajetória individual que irá render "Montaillou", em 1975, e "O Carnaval de Romans", em 1979.
Em ambas as obras, ele operou a passagem lenta, porém inexorável, da história quantitativa à história política.
Apesar das ligações com a Escola dos Annalles, dos quais se considera um dos fundadores e da profunda simpatia pelas "mentalidades" sobre as quais segue trabalhando, Ladurie se interessa, também, por fatos. Fatos simbólicos, matriciais ou materiais, capazes de interferir nas relações entre os homens. Ou entre os homens e a terra. Nos últimos anos, vem se dedicando a confeccionar capítulos de coleções sobre a história da França moderna, além de se debruçar sobre estudos de linhagens, como a da família Platter.
Mas a pergunta diante de um livro escrito há mais de 20 anos, e seguido de tantas outras publicações, é: ele pode ter envelhecido como um bom vinho? Que Carnaval foi esse? O Carnaval foi um mascarado pretexto para um dos mais sangrentos conflitos da segunda metade do século 16, na região do Delfinado. Para observá-lo, Ladurie nos faz visitar as planícies e colinas que abraçam o Ródano, ouvindo ao longe o som dos campanários que marcavam o cotidiano das cidades da região. Caminhando do geral para o particular, ele descreve a conjuntura político-social da cidade de Romans, auscultando sua geografia, demografia, atividades produtivas rurais e urbanas.
Rodeadas de muralhas e em contraste com a tranquilidade dos campos de trigo, as comunidades urbanas se dividiam entre a azáfama de comerciar a produção rural, a produção manufaturada de tecido e o empréstimo de todo o gênero: dinheiro, grãos ou gado. Longe da doçura de uma pintura de paisagem, Ladurie nos faz ver que o barulho da colméia acobertava o afiar de facas e espadas. Ao examinar tão cuidadosamente o cenário, ele acaba por revelar uma "situação revolucionária" que empurrava camponeses contra nobres, burgueses contra camponeses, pequenos artesãos contra comerciantes ricos, aristocracia cortesã, próxima do poder, e aristocracia rural e, portanto, periférica.
Por meio do problema tributário, desenhavam-se as contradições particulares dessa época: contraste entre o mundo camponês de economia familiar, em que grassavam tendências à pauperização, e o mundo dos notáveis citadinos, responsáveis por um capitalismo à sua moda, na base de pilhagem de terras. A injustiça fiscal tem aí um papel catalisador. A gota d'água nessa sopa feita de raiva e medo eclode no dia de são Brás, divindade têxtil, agrária e musical, dia misto de desfile militar com festa popular.

Turbulências
Para a festa, elege-se um capitão da milícia têxtil. O escolhido é Jean Serve, dito Paumier, homem de origem camponesa, que tendo somado fortuna e prestígio entre tecelões, seria capaz de reunir em batalhões todos os da cidade e das cercanias. Segundo uma testemunha, Paumier não perde tempo em "comandar com indiscrição e bestialidade". Ele invade o Conselho de Romans, substitui juízes, oficiais e nobres, por sapateiros e outros pequenos artesãos, requisita as chaves da cidade e comanda mil camponeses que invadem uma audiência municipal pedindo o adiamento da cobrança de impostos e a verificação das contas do orçamento municipal. A essas turbulências somam-se outras. Pilhagens e incêndios de castelos anunciam "jacqueries", obrigando Catarina de Médicis, em visita à região, a negociar com líderes populares. Em Romans, tropas de vagabundos "paumieristas" achacam e intimidam enquanto exércitos de artesãos e camponeses elegem seus capitães ameaçando com greve e paralisia das atividades.
No momento em que se acende o carnaval de Romans, inflama-se toda a região. Sob os desfiles e fantasias, escondem-se as verdadeiras intenções de inverter a ordem. Enrolado numa pele de urso e encarnando uma virilidade selvagem, Paulmier ameaçava as autoridades, dizendo-lhes que ninguém poderia governá-lo. Danças da morte traziam mensagens: a de espadas anunciava a violência contida enquanto "danças do fim do trigo" exibiam as pontas agressivas de malhos e ancinhos. Lutas paródicas entre líderes de bairros serviam para organizar as milícias que, mascaradas e ao som de tambores, matar-se-iam entre si.
O carnaval de Romans é marcado por choques armados que terminam no assassinato frio e brutal do "urso" Paumier. Na terça-feira gorda, feitas as contas, tudo voltava a ser como antes. Os ricos e nobres seguiriam escorchando os pobres. As tensões entre protestantes e católicos continuaram a dividir formas de ser e pensar, azeitando ódios. As forcas se encarregariam de pacificar ânimos, resguardando as "pessoas honradas" e eliminando os últimos "paumieristas". O silêncio burguês se instalava, lavando o sangue das fantasias e das ruas.
Essa é a história que grosso modo conduz a narrativa do livro. A tese que, contudo, atravessa "O Carnaval de Romans" é a de que a emergência do Estado se reforça a partir do Renascimento com o aprofundamento do fisco e a multiplicação de funcionários e oficiais capazes de azeitar a máquina.
Contrariamente à sociedade feudal que funcionaria, no entender de Ladurie, de maneira autônoma, o absolutismo corresponderia, sobretudo na França, na assunção da sociedade pelo Estado, que lhe penetra todos os poros, impondo-lhe, rudemente, corvéias, dízimos, talhas e outros impostos vexatórios. Confrontos sangrentos onde se esmagam camponeses como bagos de uva vêm a ser consequência desse quadro, cuja vitória tem o sabor azedo dos maus vinhos.
Quanto ao vinho que nos serve Ladurie neste "Carnaval", ele tem, certamente, inúmeras qualidades. Encorpado como um velho Bourgogne, o texto revela as filigranas com que Ladurie exerce seu ofício de historiador. Ele sabe fazer falar as fontes documentais, operando com lucidez o misto de inteligência e amizade com que trata a matéria.
Tal operação lhe permite reconstituir nos detalhes, as conexões que unem a conjuntura e o fato, suas coerências e causas. A harmonização entre história e a antropologia, visível quando descreve fantasias, músicas e danças, resulta dos cuidados que toma com conceitos historicamente constituídos, atento aos campos semânticos em que tais conceitos circulam ou são utilizados.
Mas, também, como num velho Bourgogne, o leitor encontrará no seu texto algo de mineral e pedregoso que, apesar da impecável tradução, o impede de deslizar na narrativa. Os quadros nos quais pinta as particularidades de Romans, da sociedade e de suas tensões, são por vezes carregados de minúcias, compreensíveis apenas para quem conhece bem a história da França moderna. O excesso de detalhes quebra o fio da argumentação.
Constituído por unidades onde passa do cenário urbano aos personagens, destes às greves, destas à festa e ao massacre, e deste a uma discussão mais teórica sobre rebeliões, Ladurie termina por esgotar as condições que engendram o fato político, mas também o interesse do leitor. Poderíamos dizer que, tal como num velho Bourgogne, as cores da narrativa já passaram do grená ao laranja, mostrando que, se o lento envelhecimento do livro não empana a tese central sobre as relações entre o Estado e a sociedade, ele acaba por dar um gostinho mofado à leitura.


Mary del Priore é professora de história na USP.

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