São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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A evolução da lógica

NEWTON DA COSTA

Susan Haack é filósofa inglesa muito conceituada, hoje radicada nos Estados Unidos. Tratou, em numerosos livros e artigos, dos mais variados temas; em particular, seus trabalhos no campo da filosofia da lógica são excelentes, tendo grande repercussão entre os especialistas.
A lógica evoluiu de modo extraordinário nos últimos 150 anos, tornando-se, por assim dizer, uma nova ciência. São três os traços marcantes dessa evolução.
1) Ela progrediu de tal maneira que se converteu em disciplina matematicamente não trivial; possui, no presente, alto nível técnico, ao contrário do que ocorreu nos mais de dois milênios de sua história anterior, quando não passava de um jogo de trivialidades do ponto de vista matemático.
2) Surgiram novos sistemas lógicos, diversos do clássico ou tradicional (de inspiração aristotélica). Dentre tais sistemas, alguns foram edificados como complementos da lógica tradicional (por exemplo, as lógicas modais clássicas, as lógicas clássicas do tempo e as lógicas combinatórias); outros constituem-se, pelo menos sob certas interpretações, em lógicas alternativas da clássica (lógica intuicionista, lógica intuicionista modal, lógicas polivalentes, lógicas polivalentes modais, lógica deôntica paraconsistente etc.).
3) A eclosão de uma quantidade quase incrível de aplicações dos sistemas lógicos em praticamente todos os ramos do conhecimento, não apenas como órgão de inferência, mas como instrumento de indagação. Isso se deu, por exemplo, em filosofia, matemática, computação, direito, linguística, ciências naturais (física, genética, química) e tecnologia em geral (inteligência artificial, robótica, engenharia de produção, administração de empresas, controle de tráfego, programação flexível).
É claro que uma semelhante revolução da lógica conduziu a uma renovação de sua filosofia. Tornou-se, de fato, imprescindível analisar o significado das lógicas não clássicas (se são, por exemplo, apenas cálculos abstratos ou se podem ser julgadas como lógicas no sentido próprio de sistemas reais de inferência em certos contextos, fornecendo ao mesmo tempo sua estrutura lógico-formal), discutir os conceitos de verdade e de validade lógica e procurar avaliar a natureza dos termos lógicos e de seus significados.
Convém sublinhar uma das características das lógicas de índole não clássica. Para fixar idéias, concentremo-nos na chamada lógica paraconsistente, que, falando por alto, admite contradições (pares de sentenças, uma das quais é a negação da outra) como logicamente aceitáveis. Diversos autores a cultivam e defendem a tese de que há contradições verdadeiras (em algum sentido). Porém essa lógica possui interpretação bem diferente: pode ser concebida como estudando tão-somente sistemas de sentenças que podem encerrar contradições e coleções de regras de inferência que permitem operar com eles, sem o perigo de ser possível deduzir-se qualquer coisa (como acontece com a lógica tradicional e várias outras). Logo, uma lógica é susceptível de ser tratada como alternativa (rival) da clássica ou como seu complemento: a distinção entre lógica rival e lógica complementar da clássica não se afigura como de completa incompatibilidade.
Duas categorias de lógica são investigadas por Haack com algum detalhe: a lógica modal clássica e a lógica polivalente. Referência é feita à lógica intuicionista, sobretudo pelo seu caráter peculiar. A exposição é esclarecedora e as ponderações críticas encontram-se muito bem fundamentadas.
Haack não deixa de lado as questões metafísicas e epistemológicas relativas à lógica, concebida como instrumento de inferência e de análise lógico-estrutural. Partindo de uma visão pluralista, como o próprio título do livro indica, a autora discute, de modo original e interessante, numerosos problemas de filosofia da lógica. Examina a noção de sentido, de validade lógica, de argumento, de conectivo e de quantificador. Daí passa para as conceituações de termos e de sentenças (enunciados e proposições).
Um dos temas nucleares de sua exposição diz respeito às teorias da verdade. Haack discorre sobre as teorias da correspondência, da coerência, da redundância, bem como das pragmáticas. Particular atenção é dada à teoria semântica de Tarski. Também são considerados diversos paradoxos e suas principais soluções.
A tese central de Haack é a do falibilismo no campo da lógica. Ao contrário do que geralmente se pensa, a lógica pode sofrer revisões e modificações essenciais, dependendo de circunstâncias variadas, como o tipo de contexto específico ao qual está sendo aplicada e o grau de sua evolução conceitual. Não se trata aqui de lógica definida como sistema abstrato e formal _similar às geometrias do matemático puro_, mas de lógica tida como órgão formal de inferência e de analise estrutural. Essa tese encontra-se muito bem fundamentada nesta obra e se evidencia, para nós, como correta.
Trata-se de um livro primoroso, de estilo claro e preciso, e perfeitamente planejado do ponto de vista didático. Ademais, a tradução é esmerada e reproduz com exatidão o pensamento da autora.


Newton C.A. da Costa é professor do departamento de filosofia da USP e autor, entre outros livros, de "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).



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