São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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A invenção da tradição

CILAINE ALVES CUNHA

Os efervescentes anos de fundação da literatura brasileira produziram um intenso debate que evidencia tanto as tentativas de definir a cor local quanto os primeiros esforços de constituição da história literária no país. Plasmados sob a forma de bosquejos, manuais de história, biografias, prefácios, ensaios, polêmicas e cartas, alguns desses textos foram reproduzidos total ou parcialmente em antologias, como em "Caminhos do Pensamento Crítico", de Afrânio Coutinho, sendo que a maioria encontra-se ainda em sua edição original.
"Berço do Cânone" recupera, desse material historiográfico, apenas os prefácios e/ou introduções a antologias e manuais de história difundidas entre 1826 e 1864. Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira selecionaram autores representativos, em sua maioria, da cultura patrocinada pela corte (Januário da Cunha Barbosa, Joaquim Norberto/Emílio Adet, Pereira da Silva e Adolfo de Varnhagen), já que o recorte cronológico não permitiu a inclusão do maranhense Sotero dos Reis ("Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira/1867-1873"). Do outro lado, os revisores da concepção de história indianista estão representados por Macedo Soares e Quintino Bocaiúva -em ensaios de pequena extensão-, enquanto os textos selecionados de Almeida Garret e do Cônego Fernandes Pinheiro mantêm-se alheios a essa polarização.
No período contemplado por "Berço do Cânone", a busca da diferenciação local, embora unânime, não ocorreu de forma consensual, gerando controvérsias quanto à eleição da figura do índio como primeiro poeta brasileiro.
Tendo na linha de frente Gonçalves de Magalhães e Porto Alegre, entre outros, a teoria inicial do nacionalismo postulou ainda, num ecletismo à Cousin, uma ancestral e "instintiva" evolução da inteligência e da literatura brasileiras, contidas, segundo eles, pelo jugo português. Contando com o abrigo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, prescreveram a representação da cor local sob uma perspectiva eloquente e entusiasta, ressaltando, por exemplo, um aspecto sublime na natureza. Defensores intransigentes da modernização do país, esperavam, com isso, expressar a potencialidade da nação quanto ao futuro de sua civilização.
Na Europa, o período pós-napoleônico vivenciou, como se sabe, um processo de conversão do nacionalismo revolucionário, democrático e ligado à idéia de povo-cidadão, ao patriotismo estatal. No contexto escravagista brasileiro, este já foi absorvido, desde o início, como instrumento eficaz tanto para que o governo monárquico se impusesse como administrador da política e dos conflitos intra-elite quanto para que a oligarquia dominante legitimasse as prerrogativas do novo contrato social excludente, firmado a seu favor. Magalhães, por exemplo, que não desconhecia a incompatibilidade entre sociedade desenvolvida e modo de produção compulsório, destaca reiteradamente os nefastos efeitos decorrentes da escravidão da nação brasileira pela portuguesa, num claro exercício de deslocamento da discussão acerca da permanência dos negros em cativeiro.
Em que pese a contribuição do resgate de autores e obras remotas por aqueles pioneiros historiadores da literatura, a "invenção de uma tradição" que justificasse a "marcha" progressiva da raça brasileira foi, antes de tudo, uma exigência da cartilha liberal que condicionou o desenvolvimento de uma nação à existência de uma burguesia culturalmente forte. Tal qual estava posto naquele momento, o resgate dos heróis nacionais funcionou também como fator de arregimentação da elite ilustrada, permitindo-lhe assegurar sua condição de agente "remodeladora" -nos termos de Alfredo Bosi- do "corpo universal de idéias", indispensável à centralização da economia cafeeira. Apoiados nas noções de "gênio" e "glória" nacionais, interpretados como missão pela pátria, os historiadores do período inauguraram um cânone no qual incluíam uns aos outros na fase então chamada "reforma da poesia", alguns deles autores ainda de uma única obra. Com isso, foram criando um sistema intelectual afirmativo da elite detentora do poder e uma meritocracia letrada.
Durante a maturação dessa tendência, no auge da carreira de Gonçalves Dias, a boemia literária insurge-se sutilmente, mantendo a noção de "evolução do espírito" nacional, mas ressaltando que se tratava de um processo ainda em seus primórdios. Certas idéias, temas e recursos consagrados pelos primeiros românticos são inversamente explorados como objeto do estilo baixo. Assim, ao "patriótico" anseio de glória nacional, Álvares de Azevedo e Luiz Gama, entre outros, contrapõem sarcástica e respectivamente "O Poeta Moribundo" e "Arreda, que Lá Vai um Vate".
Bernardo Guimarães, por sua vez, desqualifica, em alguns de seus bestialógicos, a atenção dos poemas indianistas às formas clássicas da poética, anunciando, de um lado, a "decrepitude" da estilização da figura do índio e, de outro, o fastio com o melodioso sentimental, como na sátira homônima a "Olhos Verdes", de Gonçalves Dias. Procurando romper com o consenso estabelecido pelo cânone oficial, Macedo Soares classifica a lírica de indianista, mas também de intimista, selvagem, histórica, sertaneja e africana, enquanto Quintino Bocaiúva faz questão de selecionar em sua antologia os "mendigos de uma fama inglória", "condenados ao mutismo". No estilo da alegoria debochada que foi peculiar a Álvares de Azevedo, seu ensaio "Literatura e Civilização em Portugal" (1850) sintetiza, ao lado dos prefácios de Macedo e Bocaiúva, o pensamento dessa tendência.
Naquele espírito de criação dos heróis da nova nação, a obra "Suspiros Poéticos e Saudades" (1836), de Gonçalves de Magalhães, será eleita pela maioria daqueles manuais de história como inauguradora do romantismo e da poesia brasileira. Entretanto, mesmo que tivesse saído à frente na síntese da pauta nacionalista -disseminada, aliás, desde 1826 por Ferdinand Dennis-, legislando em favor da "marcha evolutiva do espírito nacional", da moral cristã, do gênio e da glória nacionais, da tradição indianista e do sistema cultural francês como programa da "nova" poesia, Magalhães criou também aos especialistas no assunto o problema da canonização de um poeta que tanto foi avesso à absorção, em profundidade, da concepção de arte romântica, quanto apresentou sempre um pobre engenho.
Seus "Suspiros Poéticos" deixam transparecer um desconcertante desajuste entre o sistema neoclássico e a incorporação das tópicas românticas. Sua interpretação do "gênio titânico" como um ser dotado da capacidade de transmitir a verdade divina, e não como um errante da dúvida, decorre da manutenção do antigo princípio de um fim moralizador em arte, levando o eu lírico a se inserir num plano intermediário entre a esfera divina e a do indivíduo comum: "Eu sou órgão de um Deus; um Deus me inspira;/ Seu intérprete sou; ó terra! ouvi-me".
A tendência para obedecer à externalidade da convenção predispõe o poeta a defender os princípios de sua teoria no interior dos próprios poemas. A pauta nacionalista expõe-se, então, diretamente, com um mínimo de trabalho artístico, redundando num pragmatismo devastador do lírico. Em "Ruínas de Roma", numa tentativa de prescrever o culto à tradição o sujeito informa prosaicamente que a lua está sendo tomada como emblema da decadência, e o sol como dos anos áureos da civilização. A partir de então, compõe a desintegração do tempo na arquitetura da cidade, mas numa eloquência tal que destoa da ambiência em ruínas. Noutro momento, é o parco talento poético que, ao procurar determinar a subjetividade como centro criador, abala o lírico, quase não distanciando a fantasia da frivolidade: "Oh minha alma, tu és como a lanterna/ do cemitério,/ Que ante o altar, sobre uma esquife solta/ Palor funéreo".
Representativos daquele período denominado por Macedo anos de "inteligências acima da linha infantil", só interrompido pela publicação, em 1847, de "Primeiros Cantos" de Gonçalves Dias, "Suspiros Poéticos e Saudades" traduz um momento em que as mudanças socioeconômicas e políticas exigiam a reformulação dos antigos valores, mas inviabilizavam as soluções formais que apenas o tempo e muita discussão proporcionariam.


AS OBRAS

O Berço do Cânone
Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira (orgs.) Mercado Aberto (Tel. 051/337-4833) 352 págs., R$ 26,00

Suspiros Poéticos e Saudades
Domingos Gonçalves de Magalhães Ed. da Universidade de Brasília (Tel. 061/225-5611) 433 págs., R$ 30,00




Cilaine Alves Cunha é autora de "O Belo e o Disforme: Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica" (Edusp).



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