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A invenção da tradição
CILAINE ALVES CUNHA
Os efervescentes anos de
fundação da literatura
brasileira produziram
um intenso debate que
evidencia tanto as tentativas de
definir a cor local quanto os primeiros esforços de constituição da
história literária no país. Plasmados sob a forma de bosquejos, manuais de história, biografias, prefácios, ensaios, polêmicas e cartas,
alguns desses textos foram reproduzidos total ou parcialmente em
antologias, como em "Caminhos
do Pensamento Crítico", de Afrânio Coutinho, sendo que a maioria encontra-se ainda em sua edição original.
"Berço do Cânone" recupera,
desse material historiográfico,
apenas os prefácios e/ou introduções a antologias e manuais de história difundidas entre 1826 e 1864.
Regina Zilberman e Maria Eunice
Moreira selecionaram autores representativos, em sua maioria, da
cultura patrocinada pela corte (Januário da Cunha Barbosa, Joaquim Norberto/Emílio Adet, Pereira da Silva e Adolfo de Varnhagen), já que o recorte cronológico
não permitiu a inclusão do maranhense Sotero dos Reis ("Curso
de Literatura Portuguesa e Brasileira/1867-1873"). Do outro lado,
os revisores da concepção de história indianista estão representados por Macedo Soares e Quintino
Bocaiúva -em ensaios de pequena extensão-, enquanto os textos
selecionados de Almeida Garret e
do Cônego Fernandes Pinheiro
mantêm-se alheios a essa polarização.
No período contemplado por
"Berço do Cânone", a busca da
diferenciação local, embora unânime, não ocorreu de forma consensual, gerando controvérsias
quanto à eleição da figura do índio
como primeiro poeta brasileiro.
Tendo na linha de frente Gonçalves de Magalhães e Porto Alegre, entre outros, a teoria inicial
do nacionalismo postulou ainda,
num ecletismo à Cousin, uma ancestral e "instintiva" evolução da
inteligência e da literatura brasileiras, contidas, segundo eles, pelo
jugo português. Contando com o
abrigo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, prescreveram a representação da cor local
sob uma perspectiva eloquente e
entusiasta, ressaltando, por exemplo, um aspecto sublime na natureza. Defensores intransigentes da
modernização do país, esperavam, com isso, expressar a potencialidade da nação quanto ao futuro de sua civilização.
Na Europa, o período pós-napoleônico vivenciou, como se sabe,
um processo de conversão do nacionalismo revolucionário, democrático e ligado à idéia de povo-cidadão, ao patriotismo estatal. No
contexto escravagista brasileiro,
este já foi absorvido, desde o início, como instrumento eficaz tanto para que o governo monárquico se impusesse como administrador da política e dos conflitos intra-elite quanto para que a oligarquia dominante legitimasse as
prerrogativas do novo contrato
social excludente, firmado a seu
favor. Magalhães, por exemplo,
que não desconhecia a incompatibilidade entre sociedade desenvolvida e modo de produção compulsório, destaca reiteradamente os
nefastos efeitos decorrentes da escravidão da nação brasileira pela
portuguesa, num claro exercício
de deslocamento da discussão
acerca da permanência dos negros
em cativeiro.
Em que pese a contribuição do
resgate de autores e obras remotas
por aqueles pioneiros historiadores da literatura, a "invenção de
uma tradição" que justificasse a
"marcha" progressiva da raça
brasileira foi, antes de tudo, uma
exigência da cartilha liberal que
condicionou o desenvolvimento
de uma nação à existência de uma
burguesia culturalmente forte. Tal
qual estava posto naquele momento, o resgate dos heróis nacionais funcionou também como fator de arregimentação da elite
ilustrada, permitindo-lhe assegurar sua condição de agente "remodeladora" -nos termos de
Alfredo Bosi- do "corpo universal de idéias", indispensável à
centralização da economia cafeeira. Apoiados nas noções de "gênio" e "glória" nacionais, interpretados como missão pela pátria,
os historiadores do período inauguraram um cânone no qual incluíam uns aos outros na fase então chamada "reforma da poesia", alguns deles autores ainda
de uma única obra. Com isso, foram criando um sistema intelectual afirmativo da elite detentora
do poder e uma meritocracia letrada.
Durante a maturação dessa tendência, no auge da carreira de
Gonçalves Dias, a boemia literária
insurge-se sutilmente, mantendo
a noção de "evolução do espírito" nacional, mas ressaltando que
se tratava de um processo ainda
em seus primórdios. Certas idéias,
temas e recursos consagrados pelos primeiros românticos são inversamente explorados como objeto do estilo baixo. Assim, ao
"patriótico" anseio de glória nacional, Álvares de Azevedo e Luiz
Gama, entre outros, contrapõem
sarcástica e respectivamente "O
Poeta Moribundo" e "Arreda,
que Lá Vai um Vate".
Bernardo Guimarães, por sua
vez, desqualifica, em alguns de
seus bestialógicos, a atenção dos
poemas indianistas às formas clássicas da poética, anunciando, de
um lado, a "decrepitude" da estilização da figura do índio e, de outro, o fastio com o melodioso sentimental, como na sátira homônima a "Olhos Verdes", de Gonçalves Dias. Procurando romper com
o consenso estabelecido pelo cânone oficial, Macedo Soares classifica a lírica de indianista, mas
também de intimista, selvagem,
histórica, sertaneja e africana, enquanto Quintino Bocaiúva faz
questão de selecionar em sua antologia os "mendigos de uma fama inglória", "condenados ao
mutismo". No estilo da alegoria
debochada que foi peculiar a Álvares de Azevedo, seu ensaio "Literatura e Civilização em Portugal"
(1850) sintetiza, ao lado dos prefácios de Macedo e Bocaiúva, o pensamento dessa tendência.
Naquele espírito de criação dos
heróis da nova nação, a obra
"Suspiros Poéticos e Saudades"
(1836), de Gonçalves de Magalhães, será eleita pela maioria daqueles manuais de história como
inauguradora do romantismo e da
poesia brasileira. Entretanto, mesmo que tivesse saído à frente na
síntese da pauta nacionalista
-disseminada, aliás, desde 1826
por Ferdinand Dennis-, legislando em favor da "marcha evolutiva
do espírito nacional", da moral
cristã, do gênio e da glória nacionais, da tradição indianista e do
sistema cultural francês como
programa da "nova" poesia, Magalhães criou também aos especialistas no assunto o problema da
canonização de um poeta que tanto foi avesso à absorção, em profundidade, da concepção de arte
romântica, quanto apresentou
sempre um pobre engenho.
Seus "Suspiros Poéticos" deixam transparecer um desconcertante desajuste entre o sistema
neoclássico e a incorporação das
tópicas românticas. Sua interpretação do "gênio titânico" como
um ser dotado da capacidade de
transmitir a verdade divina, e não
como um errante da dúvida, decorre da manutenção do antigo
princípio de um fim moralizador
em arte, levando o eu lírico a se
inserir num plano intermediário
entre a esfera divina e a do indivíduo comum: "Eu sou órgão de
um Deus; um Deus me inspira;/
Seu intérprete sou; ó terra! ouvi-me".
A tendência para obedecer à externalidade da convenção predispõe o poeta a defender os princípios de sua teoria no interior dos
próprios poemas. A pauta nacionalista expõe-se, então, diretamente, com um mínimo de trabalho artístico, redundando num
pragmatismo devastador do lírico.
Em "Ruínas de Roma", numa
tentativa de prescrever o culto à
tradição o sujeito informa prosaicamente que a lua está sendo tomada como emblema da decadência, e o sol como dos anos áureos
da civilização. A partir de então,
compõe a desintegração do tempo
na arquitetura da cidade, mas numa eloquência tal que destoa da
ambiência em ruínas. Noutro momento, é o parco talento poético
que, ao procurar determinar a
subjetividade como centro criador, abala o lírico, quase não distanciando a fantasia da frivolidade: "Oh minha alma, tu és como a
lanterna/ do cemitério,/ Que ante
o altar, sobre uma esquife solta/
Palor funéreo".
Representativos daquele período denominado por Macedo anos
de "inteligências acima da linha
infantil", só interrompido pela
publicação, em 1847, de "Primeiros Cantos" de Gonçalves Dias,
"Suspiros Poéticos e Saudades"
traduz um momento em que as
mudanças socioeconômicas e políticas exigiam a reformulação dos
antigos valores, mas inviabilizavam as soluções formais que apenas o tempo e muita discussão
proporcionariam.
AS OBRAS
O Berço do Cânone
Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira (orgs.)
Mercado Aberto (Tel. 051/337-4833)
352 págs., R$ 26,00
Suspiros Poéticos e Saudades
Domingos Gonçalves de Magalhães
Ed. da Universidade de Brasília (Tel. 061/225-5611)
433 págs., R$ 30,00
Cilaine Alves Cunha é autora de "O Belo e o
Disforme: Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica" (Edusp).
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