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Um desafio à revolução cubana
DANIEL AARÃO REIS FILHO
Num fim de tarde de janeiro de 1957, sem consulta prévia, a revolução
entrou na vida de Dariel
Alarcón Ramírez, transfigurada
nos rostos barbudos e famintos de
dois homens: queriam comida.
Dariel, que tinha então apenas 17
anos, era um pequeno camponês,
dono de um lenço de terra, perdido nas lonjuras da Sierra Maestra,
província de Oriente, Cuba.
Cerca de dois meses assim se
passaram: Dariel, sempre sem
muito saber, se convertia num
ponto de apoio da guerrilha do
Movimento Revolucionário 26 de
Julho. Até que um dia veio a tormenta. Na esteira de denúncias,
chegaram os guardas rurais: arrasaram os plantios, mataram os
animais, queimaram a casa e mataram sua mulher de apenas 15
anos.
Nasceu ali um revolucionário,
embora sem convicções revolucionárias, sem nem mesmo saber
o sentido da palavra revolução,
sem saber ler ou escrever, mas enlouquecido de dor, ódio e desejo
de vingança. E foi crescendo com a
revolução, destacando-se como
guerrilheiro, participando de
combates encarniçados, sempre
sob a liderança de um comandante -mais que admirado, idolatrado: Camilo Cienfuegos. E parecia
não ter medo, como dele diria
mais tarde o exigente Che Guevara.
Em janeiro de 1959, a vitória fulminante da revolução surpreendeu Dariel, ou Lalito, como era
por todos conhecido, com apenas
18 anos. Ainda analfabeto, foi promovido a capitão, mas, envergonhado, escondia os galões nos bolsos e dava ordens como quem pede favores. E assim desempenhou
altas funções, como chefe de serviço no centro logístico do exército
rebelde, em San Ambrosio, e chefe
da polícia militar em Havana.
Entretanto, como uma força de
gravidade, o combate o chamava.
Para isto tinha as melhores qualidades. Coragem, força, agilidade,
sangue frio, audácia, determinação, excelente pontaria. Infiltrado
nas guerrilhas contra-revolucionárias de Escambray, que chegaram a reunir milhares de homens,
Lalito levou à perda um de seus
principais chefes, Arnoldo Martínez Andrade, morto em combate.
Mais tarde começou a ensinar a
outros aquilo que sabia fazer como poucos: luta guerrilheira. Na
província de Oriente, no centro de
Cuba, a ocidente, em Pinar del
Rio, Lalito esteve ensinando e
aprendendo com uma verdadeira
internacional revolucionária de
africanos e latino-americanos. No
currículo, cursos de tática guerrilheira, treinamento com armas,
preparação de explosivos, espionagem e contra-espionagem, autodefesa, primeiros socorros etc.
Na época, no dizer de um dirigente cubano, a ilha parecia transformada numa plataforma de foguetes, atirando-os em todas as
direções, sem saber exatamente
onde e como cairiam... Num destes foguetes partiu Lalito para travar estranhos combates no Congo.
Do país não tinha nenhuma informação: histórica, política ou geográfica. Mas lá esteve com o Che
durante longos 11 meses, batalhando por uma improvável revolução. Mais do que a derrota, o
abalo de uma primeira percepção
do absurdo: "Não sabíamos, por
assim dizer, o que fazíamos no
Congo e isto nos exasperava".
Menos de um ano depois, uma
outra e nova aventura revolucionária, mais uma vez em companhia de Guevara, agora na Bolívia.
Um plano épico, de construção de
um campo latino-americano de
treinamento guerrilheiro nos confins do Leste boliviano. Com o
Chile de retaguarda estratégica, a
guerrilha, a partir de julho de
1967, pegaria fogo em duas frentes
na Bolívia e se estenderia na direção da Argentina, sob o comando
do próprio Che, e ainda do Peru e
do Brasil. A América Latina em
brasas. E, para Lalito, um novo
nome de guerra: Benigno Soberón
Pérez.
Parecia uma colheita madura, ao
alcance das mãos, mas havia vermes naqueles frutos. O secretário-geral do Partido Comunista
Boliviano, que parecia de acordo
com os planos, roera a corda. Em
vez de mobilizar aliados, afugentava simpatizantes. Também contrariando os planos previstos, não
havia quase armas e munições,
nem víveres, nem medicamentos,
nem outros materiais absolutamente imprescindíveis a uma
guerrilha, como redes, lonas de
plástico e, sobretudo, um rádio
emissor, prometido, mas não entregue. Os guerrilheiros tinham se
metido na floresta para libertar o
povo boliviano do imperialismo,
da opressão e da miséria, mas "os
camponeses (quando não nos denunciavam) fugiam da gente como se fôssemos animais selvagens". A mesma pergunta feita no
Congo voltava agora como um
tormento: o que tínhamos ido fazer lá?
Era preciso começar tudo do zero. E o Che, soturno, reconhecendo o isolamento: "Nada me resta,
senão me tornar um animal da floresta entre os outros animais".
Como entender tanto descalabro? Tal improvisação? Tamanhos
erros? Uma armadilha?
Muitos daqueles homens, esquecidos e abandonados, sentiram
medrar a desconfiança e a roeram
por dentro. Quase todos a levaram
consigo para a morte. Mas o que
não estava em roteiro algum aconteceu: três escaparam para contar
a história: Urbano, Pombo e Benigno. Os dois primeiros preferiram o silêncio, às vezes, é verdade,
à custa de muito álcool. Mas Lalito/Benigno não descansou. Inquiriu, colheu indícios e depoimentos
e considera que reuniu evidências
de que a pressão soviética teria levado Fidel Castro e o Estado cubano a abandonarem Guevara e o
projeto guerrilheiro boliviano à
própria sorte.
Depois de voltar à Cuba, em
1968, Benigno ainda participaria
de muitas aventuras revolucionárias: reorganização da guerrilha
boliviana, missões especiais de espionagem e contra-espionagem,
treinamento de muitas centenas
de guerrilheiros, participação na
vanguarda do corpo expedicionário cubano em Angola. E ocuparia
outros cargos de extrema importância, como a chefia do batalhão
de segurança do comitê central e
do palácio do governo.
De todas estas passagens , um
"patchwork" impressionante de
denúncias sobre o processo de decomposição das elites dirigentes
cubanas: cinismo, corrupção, autoritarismo. Como fecho, o processo contra o herói da república
cubana, Arnaldo Ochoa. Como
Benigno, um jovem aderente (15
anos) de primeira hora à causa revolucionária. Uma trajetória brilhante, sempre na linha de frente,
desde Playa Girón, em 1961, até
Angola e Etiópia, na segunda metade dos anos 70. Fuzilado em
1989, depois de processo sumário,
acusado de corrupção, contrabando e tráfico de divisas.
Uma nova armadilha? É o que
afirma Benigno, que diz contar
apenas o que viveu. Um desafio
lançado à revolução cubana. Para
elucidar estas tramas, e dirimir as
dúvidas, é preciso abrir os arquivos e, sobretudo, instaurar um clima de liberdade onde possa ocorrer o debate contraditório, sem
restrições. Limpa e lisamente. Em
busca da verdade. Antigamente,
não era a verdade sempre revolucionária?
A OBRA
Vie et Mort de la Révolution Cubaine
Benigno Soberón Pérez
Tradução para o francês: Jean-Baptiste Grasset
Fayard, 298 págs., R$ 52,00
Encomendas à Livraria Francesa (Tel. 011/829-7956)
Daniel Aarão Reis Filho é professor de história
contemporânea da Universidade Federal Fluminense.
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