São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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Um desafio à revolução cubana

DANIEL AARÃO REIS FILHO

Num fim de tarde de janeiro de 1957, sem consulta prévia, a revolução entrou na vida de Dariel Alarcón Ramírez, transfigurada nos rostos barbudos e famintos de dois homens: queriam comida. Dariel, que tinha então apenas 17 anos, era um pequeno camponês, dono de um lenço de terra, perdido nas lonjuras da Sierra Maestra, província de Oriente, Cuba.
Cerca de dois meses assim se passaram: Dariel, sempre sem muito saber, se convertia num ponto de apoio da guerrilha do Movimento Revolucionário 26 de Julho. Até que um dia veio a tormenta. Na esteira de denúncias, chegaram os guardas rurais: arrasaram os plantios, mataram os animais, queimaram a casa e mataram sua mulher de apenas 15 anos.
Nasceu ali um revolucionário, embora sem convicções revolucionárias, sem nem mesmo saber o sentido da palavra revolução, sem saber ler ou escrever, mas enlouquecido de dor, ódio e desejo de vingança. E foi crescendo com a revolução, destacando-se como guerrilheiro, participando de combates encarniçados, sempre sob a liderança de um comandante -mais que admirado, idolatrado: Camilo Cienfuegos. E parecia não ter medo, como dele diria mais tarde o exigente Che Guevara.
Em janeiro de 1959, a vitória fulminante da revolução surpreendeu Dariel, ou Lalito, como era por todos conhecido, com apenas 18 anos. Ainda analfabeto, foi promovido a capitão, mas, envergonhado, escondia os galões nos bolsos e dava ordens como quem pede favores. E assim desempenhou altas funções, como chefe de serviço no centro logístico do exército rebelde, em San Ambrosio, e chefe da polícia militar em Havana.
Entretanto, como uma força de gravidade, o combate o chamava. Para isto tinha as melhores qualidades. Coragem, força, agilidade, sangue frio, audácia, determinação, excelente pontaria. Infiltrado nas guerrilhas contra-revolucionárias de Escambray, que chegaram a reunir milhares de homens, Lalito levou à perda um de seus principais chefes, Arnoldo Martínez Andrade, morto em combate.
Mais tarde começou a ensinar a outros aquilo que sabia fazer como poucos: luta guerrilheira. Na província de Oriente, no centro de Cuba, a ocidente, em Pinar del Rio, Lalito esteve ensinando e aprendendo com uma verdadeira internacional revolucionária de africanos e latino-americanos. No currículo, cursos de tática guerrilheira, treinamento com armas, preparação de explosivos, espionagem e contra-espionagem, autodefesa, primeiros socorros etc.
Na época, no dizer de um dirigente cubano, a ilha parecia transformada numa plataforma de foguetes, atirando-os em todas as direções, sem saber exatamente onde e como cairiam... Num destes foguetes partiu Lalito para travar estranhos combates no Congo. Do país não tinha nenhuma informação: histórica, política ou geográfica. Mas lá esteve com o Che durante longos 11 meses, batalhando por uma improvável revolução. Mais do que a derrota, o abalo de uma primeira percepção do absurdo: "Não sabíamos, por assim dizer, o que fazíamos no Congo e isto nos exasperava".
Menos de um ano depois, uma outra e nova aventura revolucionária, mais uma vez em companhia de Guevara, agora na Bolívia. Um plano épico, de construção de um campo latino-americano de treinamento guerrilheiro nos confins do Leste boliviano. Com o Chile de retaguarda estratégica, a guerrilha, a partir de julho de 1967, pegaria fogo em duas frentes na Bolívia e se estenderia na direção da Argentina, sob o comando do próprio Che, e ainda do Peru e do Brasil. A América Latina em brasas. E, para Lalito, um novo nome de guerra: Benigno Soberón Pérez.
Parecia uma colheita madura, ao alcance das mãos, mas havia vermes naqueles frutos. O secretário-geral do Partido Comunista Boliviano, que parecia de acordo com os planos, roera a corda. Em vez de mobilizar aliados, afugentava simpatizantes. Também contrariando os planos previstos, não havia quase armas e munições, nem víveres, nem medicamentos, nem outros materiais absolutamente imprescindíveis a uma guerrilha, como redes, lonas de plástico e, sobretudo, um rádio emissor, prometido, mas não entregue. Os guerrilheiros tinham se metido na floresta para libertar o povo boliviano do imperialismo, da opressão e da miséria, mas "os camponeses (quando não nos denunciavam) fugiam da gente como se fôssemos animais selvagens". A mesma pergunta feita no Congo voltava agora como um tormento: o que tínhamos ido fazer lá?
Era preciso começar tudo do zero. E o Che, soturno, reconhecendo o isolamento: "Nada me resta, senão me tornar um animal da floresta entre os outros animais".
Como entender tanto descalabro? Tal improvisação? Tamanhos erros? Uma armadilha?
Muitos daqueles homens, esquecidos e abandonados, sentiram medrar a desconfiança e a roeram por dentro. Quase todos a levaram consigo para a morte. Mas o que não estava em roteiro algum aconteceu: três escaparam para contar a história: Urbano, Pombo e Benigno. Os dois primeiros preferiram o silêncio, às vezes, é verdade, à custa de muito álcool. Mas Lalito/Benigno não descansou. Inquiriu, colheu indícios e depoimentos e considera que reuniu evidências de que a pressão soviética teria levado Fidel Castro e o Estado cubano a abandonarem Guevara e o projeto guerrilheiro boliviano à própria sorte.
Depois de voltar à Cuba, em 1968, Benigno ainda participaria de muitas aventuras revolucionárias: reorganização da guerrilha boliviana, missões especiais de espionagem e contra-espionagem, treinamento de muitas centenas de guerrilheiros, participação na vanguarda do corpo expedicionário cubano em Angola. E ocuparia outros cargos de extrema importância, como a chefia do batalhão de segurança do comitê central e do palácio do governo.
De todas estas passagens , um "patchwork" impressionante de denúncias sobre o processo de decomposição das elites dirigentes cubanas: cinismo, corrupção, autoritarismo. Como fecho, o processo contra o herói da república cubana, Arnaldo Ochoa. Como Benigno, um jovem aderente (15 anos) de primeira hora à causa revolucionária. Uma trajetória brilhante, sempre na linha de frente, desde Playa Girón, em 1961, até Angola e Etiópia, na segunda metade dos anos 70. Fuzilado em 1989, depois de processo sumário, acusado de corrupção, contrabando e tráfico de divisas.
Uma nova armadilha? É o que afirma Benigno, que diz contar apenas o que viveu. Um desafio lançado à revolução cubana. Para elucidar estas tramas, e dirimir as dúvidas, é preciso abrir os arquivos e, sobretudo, instaurar um clima de liberdade onde possa ocorrer o debate contraditório, sem restrições. Limpa e lisamente. Em busca da verdade. Antigamente, não era a verdade sempre revolucionária?


A OBRA

Vie et Mort de la Révolution Cubaine
Benigno Soberón Pérez Tradução para o francês: Jean-Baptiste Grasset Fayard, 298 págs., R$ 52,00 Encomendas à Livraria Francesa (Tel. 011/829-7956)




Daniel Aarão Reis Filho é professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense.



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