São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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Cuba 40 anos

ANDRÉ CAMPOS

Para aqueles que não viveram no centro do furacão da Guerra Fria, o depoimento de um garoto que, durante a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962, frequentava uma escola próxima a uma base militar em Baltimore, EUA, pode ser bastante revelador da paranóia daqueles tempos: "Quase todos os dias, uma sirene ordenava que nos refugiássemos no porão do edifício. Nunca sabíamos se aquilo era mais um dos exercícios de defesa civil ou se os mísseis soviéticos estavam de fato caindo sobre nós".
Trinta e seis anos depois da Crise dos Mísseis, a Guerra Fria e mesmo a União Soviética não existem mais. Entretanto, neste janeiro Fidel Castro comemorou os 40 anos da Revolução que o levou ao poder e alterou drasticamente os destinos de Cuba e da América Latina.
Intrigado com a sobrevivência do regime cubano, Moniz Bandeira pretende, neste livro, responder à pergunta: por que Cuba, apesar de cercada e isolada, resistiu durante 40 anos, enquanto na ex-República Democrática Alemã -onde a população alcançara o mais alto padrão de vida do Leste europeu- o povo não quis aquele modelo de socialismo real e o regime caiu com o fim da URSS? Para o autor, diferentemente da antiga RDA, onde a implantação do comunismo dividiu a nação e não ganhou legitimidade, a radicalização da Revolução Cubana, até a declaração de seu caráter socialista por Fidel, foi uma forma de assegurar a soberania nacional, sempre manietada pelos seus poderosos vizinhos do norte.
A tese de Bandeira é que a Revolução Cubana foi uma revolução autóctone e nacionalista e não inevitavelmente desembocaria num regime comunista. A implantação do comunismo em Cuba foi, neste sentido, muito mais o resultado da reação do governo revolucionário à política reacionária e intolerante dos EUA, que não aceitaram o princípio da autodeterminação dos povos e os atos de reforma social -como a reforma agrária- implementados pelo regime castrista. Moniz Bandeira afirma terem sido os acontecimentos históricos relacionados à Guerra Fria que acabaram por empurrar a Revolução Cubana para a órbita da URSS, fazendo de Cuba uma das mais importantes peças do xadrez político Leste-Oeste. O caráter originalmente nacionalista da Revolução Cubana não é uma tese nova. A novidade desse trabalho está na inserção que o autor faz da revolução num processo maior: dentro da tradição de luta nacional e democrática em Cuba, dentro de um panorama de crescente nacionalismo antiamericano na América Latina e no interior do jogo internacional da Guerra Fria.
Para isto, Moniz Bandeira vai buscar os diversos momentos do processo revolucionário em Cuba, desde a independência da ilha em 1898, passando pelos acontecimentos de 1933, quando, mediante uma revolta popular, o sargento Fulgencio Batista derrubou Carlos Manuel de Céspedes, substituído pelo presidente Ramón Grau de San Martin -o primeiro governante do país não manipulado pelos EUA.
Bandeira insere o processo cubano num contexto latino-americano onde vários movimentos de nacionalismo revolucionário ocorreram a partir da década de 1930. São exemplos disso a proclamação de uma efêmera república socialista no Chile, em 1931, o governo do general Lázaro Cárdenas, no México (1934-1940), o peronismo argentino (1945-1956), a revolução boliviana (1952-1964) e o regime reformista da Guatemala, instalado em 1944 e derrubado pela CIA em 1954.
Ao inserir a Revolução Cubana neste contexto latino-americano, Bandeira argumenta que esta não foi um fenômeno exclusivamente cubano, porém expressou o nacionalismo antiamericano comum aos povos latinos da América -daí a popularidade que a revolução e seus dirigentes conquistaram em todo o subcontinente. Para fundamentar seu argumento, o autor traça um amplo panorama da política externa norte-americana para a América Latina desde o início do século 19, juntamente com a reação dos diversos países latino-americanos à expansão ianque.
Outra contribuição original do autor foi seu esforço de incluir, na análise das relações internacionais relativas à Guerra Fria, o que ele denominou de "view from Brasília", em contraposição à predominante "view from Washington" existente na bibliografia sobre a questão. Para isto, Bandeira incluiu a decisiva participação dos países latino-americanos, especialmente o Brasil e o México, nas negociações internacionais que impediram a intervenção dos EUA em Cuba, sob a cobertura da OEA.
O conteúdo do livro, entretanto, é mais amplo do que os aspectos acima mencionados, abrangendo, entre outros temas, a tentativa fracassada de industrialização da ilha, mediante um processo de substituição de importações; os atritos entre o governo revolucionário e a URSS até a domesticação do castrismo e a implantação de um Estado totalitário inspirado no modelo soviético; o aprofundamento da socialização dos meios de produção por meio das sucessivas leis de expropriação; as tentativas de exportar a revolução e seus fracassos; o permanente conflito com os EUA e os diversos planos americanos contra Cuba; a presença cubana na África, já nos anos 80, e o significado da queda do Muro de Berlim e os esforços cubanos para buscar alternativas de sobrevivência após o fim da URSS.
A maior parte das fontes primárias utilizadas pelo autor consiste em documentos diplomáticos. O estudo do papel do Brasil dentro da OEA no caso cubano, pelo menos até 1964, quando o governo militar brasileiro rompeu relações com Cuba, tornou-se possível com a utilização de documentação do Itamaraty. Outras frontes brasileiras também foram exploradas, como os papéis encontrados nos arquivos privados de San Thiago Dantas, Afonso Arinos e Getúlio Vargas.
Em termos de fontes internacionais, Bandeira utilizou documentação depositada no National Archives e na John Fitzgerald Kennedy Library, nos EUA, no Rothschild Archive, em Londres, além de documentação originária da ex-República Federal da Alemanha e de organizações partidárias da antiga Alemanha comunista.
Entretanto, os arquivos do Ministério das Relações Exteriores e do Partido Comunista de Cuba não lhe foram abertos, apesar da sua reconhecida posição política de esquerda e de sua evidente simpatia pela revolução. O autor pôde apenas contar com entrevistas concedidas por alguns altos funcionários do regime, além de alguns documentos "selecionados" por um alto membro do Partido Comunista cubano. Moniz Bandeira faz, entretanto, questão de afirmar que seu livro não foi apenas o produto de seu trabalho enquanto intelectual, mas resultou também "da vivência pessoal... dos fatos e personagens, adquiridos ao longo destes 40 anos".
De um modo geral o livro é cativante e uma boa leitura, porém o texto é irregular e repetitivo. Eventualmente, o leitor pode perder-se no emaranhado de detalhes que, se enxugados, poderiam proporcionar uma leitura mais fluida e agradável. A narrativa atinge seu clímax entre os capítulos 6 e 9, onde o autor descreve os acontecimentos do período correspondente entre a derrocada da ditadura de Batista e a frustrada invasão da Baía dos Porcos.
Existem alguns pequenos erros de impressão que, se não comprometem gravemente o conteúdo, denunciam certa pressa da editora, com certeza para aproveitar o "timing" do aniversário da revolução. Um problema desagradável para o leitor é a ausência inexplicável de um índice de capítulos. Entretanto, o livro tem índice onomástico, um instrumento bastante útil e relativamente raro nos livros editados no Brasil.
Apesar destas observações, "De Martí a Fidel" merece ser lido, não apenas por aqueles interessados na Revolução Cubana, mas também pelos estudiosos da América Latina contemporânea, e torna-se valioso principalmente se levarmos em consideração a limitada bibliografia em português sobre a história de nosso continente.


A OBRA

De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina
Luiz Alberto Moniz Bandeira Civilização Brasileira (Tel. 021/263-2082) 687 págs., R$ 49,50




André Campos é professor de história na Universidade Federal Fluminense e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.



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